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A REPRESENTAÇÃO FÍLMICA

vida cotidiana no cinema documentário

A REPRESENTAÇÃO FÍLMICA

A autonomia estética – enquanto um condicionante da consciência burguesa de liberdade –, impulsionada pelo desenvolvimento das for- ças produtivas, permite ao cinema constituir-se enquanto arte. Nem o embrionário atributo científico de evidência objetiva nas tomadas, tam- pouco a reprodução fílmica de peças de teatro garantiam a especificida- dee do cinema como linguagem artística. Potencializar o cunho estético do filme dar-se-ia, sobretudo, pelo avanço de instrumentos que possi- bilitassem a experimentação das formas cinéticas do filme, tornando a imagem passível de apreciação artística. Nesse sentido, a imagem que ganha reverência por ilustrar a vida em movimento tornar-se-ia uma imagética, e a expressão do mundo objetivo, uma representação.

Deste modo, o cinema não é só um produto material propiciado pelo desenvolvimento tecnológico, como também um instrumento que

A fu nç ão d a m on ta gem n a r epr es en ta ção fíl m ic a 89 sofre com as modificações conjunturais da modernidade. O pressupos-

to da liberdade formal é apropriado como uma condicionante elemen- tar para o estabelecimento do atributo artístico, ao contrário da gênese de outras linguagens artísticas. Com efeito, o naturalismo e a reprodu- ção da empiria no filme estão na contramão da estética cinematográfica, cujo desenvolvimento da técnica permite a emergência da subjetivida- de criativa do autor. Lukács (1982b) pondera que a estética cinematográ- fica está relacionada ao alcance técnico que o cinema pode atingir.1 O

nível estético do cinema, segundo o autor, é atingido pela duplicação da mimese, isto é, a realidade apresentada na película não se constitui como uma reprodução objetivada, e sim enquanto uma refiguração da realidade. Logo, uma forma tecnológica primária ainda não é estética, tendo em vista que constrói um reflexo visual da realidade. No entanto, Lukács (1982b) não pretende fazer uma análise dos meios técnicos no cinema, tampouco superestimá-los, apenas situar o grau de importân- cia de instrumentos que permitem ilustrar o mundo objetivo de uma maneira que só o cinema é capaz.

O que nos interessa aqui não é a análise das diversas ques- tões técnicas, e sim o fato de que por essas vias se produz um mundo sui generis, visível, sensível e significativo, cujas leis propriamente estéticas para o reflexo da reali- dade têm que se distinguir e se discutir.2 (LUKÁCS, 1982b,

p. 177, tradução nossa)

A discussão de Lukács (1982b) é central para o entendimento da re- presentação fílmica sob o formato de uma obra de arte, na medida em que a realidade é apresentada à luz de uma leitura criativa do cineasta. Por outro lado, o interesse sociológico do autor no que diz respeito à

1  Muitas das explanações de Lukács (1982b) relacionadas à importância da tecnologia ao desenvolvi- mento do cinema justificam-se pela posição contrária de Benjamin (1985b) à técnica. Lukács chama de atitudes românticas a consideração de Benjamin segundo a qual a utilização de instrumentos técni- cos acarreta na perda de aura, isto é, no caráter único que a obra possui, dando exemplos de obras que passaram pela reprodutibilidade técnica, mas não perderam a essência de unicidade.

2  Lo que nos interesa aqui no es el análisis de lãs diversas cuestiones técnicas, sino el hecho de que por esas vias se produce um mundo sui generis, visible, sensible y significativo, cuyas leyes estéticas propias para el reflejo de la realidad tienem que distinguirse y discutirse. (LUKÁCS, 1982b, p. 177)

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detecção da mimese dupla no filme face o caminho da refiguração ou representação da realidade está, outrossim, na autenticidade objetiva que o filme desperta. Autenticidade que não se reduz à reprodução da realidade, mas à possibilidade da expressão estética que subtrai uma espécie de objetividade indeterminada presente em outras esferas ar- tísticas. O cinema está intrinsecamente próximo à vida, evidenciando situações efetivamente características de um mundo movido por ten- sões, conflitos e contradições, ao passo que as preocupações da essência definidora das artes plásticas, poesia e literatura estão situadas numa máxima espiritual não compartilhada pelo aparelho que representa a vida em movimento.

O fato de que o filme não possa representar a espiritua- lidade mais alta e mais rica não é para ele, a partir deste ponto de vista, uma debilidade, senão um reforço, por- que no marco da emotividade, da perceptibilidade sensí- vel imediata, cada uma destas ideologias ou tendências pode conseguir uma marcada fisionomia. O cinema é pois um dos sintomas característicos do que em um dado momento move intimamente as massas, do modo como tomam posição espontânea ante os problemas sociais do momento.3 (LUKÁCS, 1982b, p. 261, tradução nossa)

Se numa discussão que abarca a totalidade do cinema a questão da autenticidade – no sentido da evocação imagética da realidade – torna- -se proeminente, indubitavelmente é potencializada quando o assunto se refere à especificidade do cinema documentário. Toda uma gama de elementos discutidos acima não é desprezada, exprimindo com contun- dência a veia da qual a narrativa se nutre. Em primeiro lugar, o documen- tário pode ser considerado uma obra de arte e, como tal, aspectos de uma subjetividade criadora emanam na produção do material. Em contrapar-

3  El hecho de que el film no pueda representar la espiritualidad más alta y más rica no és para él, desde este punto de vista, uma debilidad, sino más bien um refuerzo, porque em el marco de la emotividad, de la perceptibilidad sensible inmediata, cada una de estas ideologias o tendencias puede conseguir una fisionomia acusada. El cine es pues uno de los síntomas característicos de lo que em um momento dado mueve íntimamente a las massas, del modo como toman espontáneamente posición ante los problemas sociales del momento. (LUKÁCS, 1982b, p. 261)

A fu nç ão d a m on ta gem n a r epr es en ta ção fíl m ic a 91 tida, o produto do documentário se baseia num fenômeno histórico do

qual a sociedade reconhece e, em certo sentido, compartilha. Com efeito, o documentário é uma representação na medida em que a estética fílmi- ca opera na confluência de expressões subjetivas e objetivas, transmitin- do traços da realidade à luz da leitura criativa do cineasta.

A subjetividade que caracteriza o efeito estético aplicado ao cinema documentário não deve confrontar os traços objetivos mediados pela tomada de câmera. Contrariando o extremo realismo de Bazin (2006) –

segundo o qual a utilização de efeitos técnicos compromete a composi- ção da narrativa e, como tal, o aspecto de realidade pelo qual o cinema não pode se indispor –, a utilização de recursos técnicos e estéticos é o meio através do qual o documentarista se afirma enquanto um artista cujo material ilustra um mundo reconhecível. Com efeito, a expressão de autenticidade ganha forma num gênero capaz de representar fenô- menos pertencentes a uma coletividade. Segundo Nichols (2005), o documentário possui uma autonomia consolidada historicamente em razão da capacidade determinada de abordar o mundo em que vivemos e compartilhamos. Embora o autor torne fluidas fronteiras históricas entre os dois gêneros, na medida em que caracteriza todo filme de do- cumentário – a ficção como documentário de satisfação dos desejos e a não ficção como documentário de representação social –, o destaque dado ao significado documental da narrativa contempla o princípio que o legitima enquanto linguagem específica.

Nesse contexto, o princípio de representação do documentário co- meça a adquirir contornos de expressividade estética, na medida em que não se constitui como um mero documento objetivo e factual. O documentário interessa à Sociologia da Arte, sobretudo, pela força das representações que evidenciam uma realidade historicamente captada à luz de um discurso encadeado pelo cineasta, de modo a apresentar uma perspectiva própria do sujeito criador. Nichols (2005), ao anali- sar as narrativas representadas no documentário, destaca pelos menos três variantes: a apresentação de um retrato do mundo objetivo; a re- presentação do interesse de outros; a defesa de um ponto de vista. Esta argumentação, nascida no interior das teorias da comunicação, pode ser

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explorada sociologicamente à luz dos conceitos da díade objetividade/ subjetividade presente na análise do documentário enquanto obra de arte. O fato é que a mediação trazida pelo instrumento da câmera desve- la a realidade a partir de um sentido narrativo e propositivo.

Nos documentários, encontramos histórias ou argumen- tos, evocações ou descrições, que nos permitem ver o mundo de uma nova maneira. A capacidade da imagem fotográfica de reproduzir a aparência do que está diante da câmera compele-nos a acreditar que a imagem seja a própria realidade reapresentada diante de nós, ao mesmo tempo em que a história, ou o argumento, apresenta uma maneira distinta de observar essa realidade. (NICHOLS, 2005, p. 28)

Haja vista que o sentido de representação implica numa espécie de liberdade formal do cineasta, a película de caráter documental per- mite a expressão de uma voz, ou ponto de vista acerca do mundo. Ni- chols (2005) sustenta a condição do documentário em transmitir uma voz enquanto argumento sobre o mundo compartilhado, no sentido de repercutir uma representação do mundo em que vivemos à revelia de uma mera cópia ou reprodução de algo existente. Dessa forma, a re- presentação possibilita a indexação de imagens e sons de acordo com a perspectiva do cineasta, sustentando um argumento por intermédio de evidências factuais. O discurso, portanto, exprime uma voz como uma visão singular do mundo.

As considerações de Nichols (2005), contudo, deixam de exprimir o jogo dialético entre sujeito e objeto na construção de uma representação documental, e passam a sobrepor o argumento ou retórica sobre o pró- prio o mundo. O aparente tom subjetivista do autor pretende elevar a pri- meiro plano essa perspectiva do cineasta sobre o mundo, o que não con- diz efetivamente com a totalidade das representações que evidenciam a emergência de uma realidade objetiva da qual o sujeito criativo não pode escamotear. Por mais que o avanço técnico permita a manipulação ima- gética do cineasta, o mundo ilustrado é visualmente imperativo.

A fu nç ão d a m on ta gem n a r epr es en ta ção fíl m ic a 93 No entanto, o aspecto subjetivista de Nichols (2005) torna-se ínfi-

mo quando comparado à análise de Ramos (2008). Este concede uma dimensão importante ao documentário ao defini-lo como uma narra- tiva que estabelece asserções sobre o mundo. De fato, a perspectiva da representação implica numa postura discursiva do cineasta sobre ele- mentos significativos presentes na realidade objetiva, os quais passam por um tratamento criativo permitido pela liberdade formal adquirida na modernidade. Contudo, Ramos apresenta o documentário como um enunciado sobre o mundo que nos é exterior. Diferentemente de Ni- chols (2005), que pondera a capacidade da narrativa de argumentar so- bre o mundo compartilhado, Ramos (2008) subsume os traços objetivos da realidade à consciência do cineasta, comprometendo o conteúdo de verdade expresso na obra.

Dentro desse eixo comum, podemos afirmar que o do- cumentário é uma narrativa basicamente composta por imagens-câmera, acompanhadas muitas vezes de ima- gens de animação, carregadas de ruídos, música e fala (mas, no início de sua história, mudas), para os quais olhamos (nós, espectadores) em busca de asserções so- bre o mundo que nos é exterior, seja esse mundo coisa ou pessoa. (RAMOS, 2008, p. 22)

O caráter eminentemente subjetivo emprestado a um gênero que sempre buscou a autenticidade das representações é potencializado à medida que abre concessões para que o espectador defina as imagens que são exibidas.4 Ou seja, caso o espectador acredite com veemência

que o conteúdo imagético exibido não estabelece asserções sobre o mundo, existe a possibilidade daquelas representações não serem ca- racterizadas como um documentário.

4  Essa dimensão fenomenológica está também presente em Carrol (2005), visto que apresenta o do- cumentário como cinema de asserção pressuposta. Isto é, a asserção pressuposta é definida por uma intenção assertiva por parte do cineasta de que o público adote conscientemente uma postura assertiva acerca do conteúdo discursivo, resultante da validação dessa intenção assertiva. Logo, o reconhecimento do caráter documental parte da subjetividade do seu espectador.

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Nesse contexto, diversas noções que conjugam o mundo empíri- co e sua correspondência estética são esvaziadas de sentido analítico. Conceitos de realidade, objetividade e verdade, segundo o autor, são desconstruídos dando lugar à interpretação do cineasta a respeito da cotidianidade. Ramos (2008) reduz, portanto, a força das representa- ções que evidenciam um mundo repleto de contradições, conflitos e momentos objetivos corroborados historicamente à postura interpre- tativa do cineasta. Com efeito, estabelecer que a vida representada na tela é somente interpretação significa desvanecer a imanência de fatos que estão presentes independentemente da manipulação do cineasta. Logicamente que os efeitos técnicos possibilitados pela montagem con- tribuem incisivamente para uma organização lógica das imagens que podem modificar ou inverter o sentido de um fenômeno, mas a veraci- dade de um fato histórico emerge independente da astúcia e da eficácia dos meios estéticos disponíveis.

Nichols (1997), num estudo anterior que aborda a representação da realidade do documentário, pondera com contundência o domínio do documentário, estilhaçando possíveis reducionismos subjetivistas. “O que o documentarista não pode controlar plenamente é seu tema bá- sico: a história”.5 (NICHOLS, 1997, p. 43, tradução nossa) Isso significa

que o cineasta possui um relativo poder de controle acerca das imagens captadas, contudo, não possui o poder de mudar a história. É nesse sen- tido que o autor define o princípio de representação sobre o qual o do- cumentário está assentado: o controle é o momento subjetivo e o toque artístico aplicado à película, e a história é a conformação objetiva nas tomadas que não pode ser modificada pelo simples fato de se constituir como conteúdo sedimentado.

O controle e a manipulação das tomadas são possibilidades esté- ticas historicamente construídas e aplicadas ao cinema documentário. O conceito de representação, tão caro a uma Sociologia da Arte, adveio exatamente da constatação do desenvolvimento das forças produtivas, que proporcionou o avanço técnico dos meios de captação em dire-

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a década de 1920 é um marco fundamental na transformação de um instrumento que inicialmente se propunha servir apenas como um ob- servador fidedigno da realidade para uma máquina carregada de pressu- postos modernos, cuja autonomia estética reverbera em leituras criati- vas do mundo.

A massiva sedução que o cinema proporcionava no início do sécu- lo XX pautava-se na reprodução de elementos objetivos que se asseme- lhavam à própria vida cotidiana. As pessoas se reconheciam através da mediação de um aparelho que transmitia o cotidiano tal qual aparecia objetivamente, inexistindo qualquer tratamento estético em seus fo- togramas. Foi nesse contexto que o chamado “cinema de atualidades” se consolidou, com base na reprodução material da realidade. Segun- do Nichols (2005), as películas correspondentes ao cinema primitivo carregavam uma dimensão científica de utilização das tomadas, mas careciam de um espetáculo conveniente à arte. Ademais, reproduziam plasticamente o mundo objetivo sem a voz que garante a especificidade do discurso documental.

Mas a voz do cineasta estava outra vez perceptivelmente silenciosa. A descoberta de um mundo de celulóide no- tavelmente semelhante ao mundo físico convidava-nos a contemplar o que a câmera podia exibir. O ponto de vis- ta distintivo do cineasta ficava em segundo lugar. Louis Lumière enviou dezenas de operadores de câmera mundo afora, armados com seu recém patenteado cinematógrafo (uma invenção que não só filmava como uma câmera mo- derna, como também servia para revelar e projetar o fil- me!). Lembramos os nomes de apenas um punhado deles. Importava mais o que filmavam do que como filmavam. (NICHOLS, 2005, p. 121)

Essa citação de Nichols (2005) tem relevância, sobretudo, no que concerne à negligência em relação aos aspectos formais. A obsessão em reproduzir os dados objetivos do mundo não se tornou, de imediato, um avanço na capacidade de apreensão ou, até mesmo, em liberdade na construção lógico-formal de uma película que poderia proporcionar

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caminhos para evidência significativa de representações e, assim, abrir espaços para o estético.

A constituição do documentário permitiu a introdução de inova- ções, experimentações e artifícios técnicos na produção, colagem e con- fecção das películas. Os Construtivistas Russos foram determinantes na década de 1920 para a aplicação de pressupostos teórico-metodológicos no cinema, possibilitando uma virada estilística de filmes de reprodu- ção mecânica da realidade para o documentário de representação social da realidade. O elemento preponderante para essa transformação – in- clusive para a leitura filosófica e científica do cinema – foi o desenvol- vimento da montagem.

A representação fílmica passava a articular a expressão objetiva da realidade com os aspectos subjetivos do olhar cinematográfico. Neste sentido, o olho da câmera atuava reciprocamente com o ponto de vista humano num amálgama responsável em fazer brotar um cinema do- cumentário passível de experimentar a aparência, no sentido de pro- duzir uma leitura complexa da realidade a qual um mero cinema de reprodução não poderia atingir. Nichols (2005) converge com a pers- pectiva que abordamos, na medida em que atribui ao cruzamento do documentário com vanguardas modernistas a emergência do ponto de vista ou voz do documentário. O modernismo, portanto, possui parce- las de contribuição no que concerne ao abandono de uma neutralidade outrora sustentada. “Foi no âmago da vanguarda que se formou a idéia de um ponto de vista ou voz diferente, que rejeitasse a subordinação da perspectiva à exibição de atrações ou a criação de mundos fictícios.” (NICHOLS, 2005, p. 124)

Com efeito, o documentário garantia o estatuto estético sem preci- sar recorrer à estratégia ficcional de criação de um mundo imaginário. Embora o tratamento criativo implique numa postura deveras ideológi- ca por parte dos seus cineastas proeminentes, a representação fílmica permitiu a evidência do mundo empírico com o seu devido conteúdo de verdade, as contradições, os conflitos e embates inerentes ao cotidia- no. A representação continuou mostrando um mundo compartilhado socialmente, cujos procedimentos técnicos podiam edulcorar e esca-

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historicamente. A montagem – no documentário –, enquanto um pro- cedimento emblemático para a liberdade formal do cineasta, ganhou destaque justamente pela possibilidade de ilustrar o mundo de uma ma- neira que as pessoas ainda não haviam concebido ou imaginado, con- tudo, não criou e não produziu um mundo que não seja reconhecível e compartilhado pela coletividade.

Montagem e representação

Lukács (1982b), ao analisar o filme em sua época, estabeleceu a imbri- cação do técnico e estético no cinema. A montagem desenvolvida pelos russos explora a subjetividade criativa do cineasta, permitindo o vis- lumbre de representações que não são uma mera reprodução da vida. A dupla mímesis de Lukács (1982b), constatação do caráter de refiguração da realidade para a qual o cinema está assentado, só se tornou possí- vel na narrativa documentária em virtude de procedimentos técnicos que possibilitaram a autonomia do artista na experimentação formal. Nesse contexto se estabelece a importância da montagem no desenvol- vimento do documentário, sobretudo em sua característica elementar de representação.

A montagem organiza e sistematiza os planos fílmicos. Numa re- produção mecânica e fotográfica da realidade, a ação temporal se desen- rola tal qual a duração objetiva da vida. Na representação, por seu turno, o curso temporal da vida sofre cortes contínuos no sentido de produzir um movimento peculiar que garante a sua especificidade em relação ao empírico. Lukács (1982b) não denuncia de modo fortuito o perigo do na- turalismo oferecido pela base fotográfica. O caráter artístico do cinema se constitui pelo fragmento de realidade despertado sob a ordenação e, sobretudo, pelo procedimento de montagem. Segundo o autor, a mon- tagem é um princípio estético e ideológico, cujo efeito criador produz refigurações da realidade que sustentam a credibilidade ou a falseabili- dade. Contudo, o mais fundamental do procedimento de montagem é o seu alcance estético.

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Pois no cinema a informação, o documento, a pedago- gia, a publicística, etc., aparecem tão naturalmente, pas- sam tão imperceptivelmente a integrar a conformação artística, que não parece possível estabelecer uma fron-