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DO PAQUETE “BRÉSIL” AO BRASIL DE HUMBERTO MAURO

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 109-114)

CINEMA DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO

DO PAQUETE “BRÉSIL” AO BRASIL DE HUMBERTO MAURO

Foi pelas mãos dos irmãos Afonso e Paschoal Segreto que o fazer cinema- tográfico nasceu no Brasil, e como em outras partes do mundo, o cine- ma aqui também começou como não ficção. “A bordo do paquete francês ‘Brésil’ nasceu o cinema brasileiro” (GOMES, 1996, p. 21), é assim que Pau- lo Emílio Sales Gomes descreve, em seu célebre ensaio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, a aventura de Afonso Segreto nas filmagens do primeiro filme brasileiro. Aqueles astutos empresários do entretenimen- to sabiam a importância de associar produção e exibição. Em sociedade com Cunha Sales, inauguraram em 1897 a primeira sala fixa de cinema no Brasil: era o Salão Paris, no Rio de Janeiro, e foram, até 1903, os únicos produtores dessas pequenas atualidades brasileiras. Na década de 1920, três filmes marcaram a estética do cinema mudo no Brasil, ampliando o formato cinematográfico brasileiro para além das atualidades.

Em 1922 completava-se 100 anos da independência do Brasil, e para comemorar tal data, o governo do então presidente Epitácio Pessoa criou uma comissão para organizar a festa do Centenário de Independência. Entre as atrações do evento, o cinema não poderia faltar. Neste ano, conta Paulo Emílio Sales Gomes (1996), não houve cinegrafista no país que não recebesse pedidos para o evento. Foi o caso de Silvino Santos, que sob encomenda de J.G. Araújo, um mecenas raro na história cine- matográfica brasileira, realizou No País das Amazonas (lançado em 1922, mesmo ano de Nanook of the North). O projeto seria uma propaganda da

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grandeza econômica da região amazônica. O pioneirismo de Santos era tanto que para filmar na selva chegou a desenvolver negativos quimi- camente resistentes às condições climáticas do lugar. (LABAKI, 2006)

Assim como Nanook, o filme brasileiro é minucioso na representa- ção dos meios de produção da região. É dividido em sequências, cada uma estruturando um tipo de exploração da natureza. Entretanto, se- gundo Amir Labaki (2006), No país das Amazonas não alcança a curva dramática dos filmes de Flaherty, mesmo assim o filme conheceu o su- cesso em circuito comercial, frente às plateias brasileiras.

Quase duas décadas antes, nos primeiros anos do século XX, o go- verno da jovem república brasileira iniciou um trabalho de integração nacional através do mapeamento de todas as regiões do país, bus- cando centralizar todo o poder no Estado- Nação. O Estado ideal era agregador, protetor e construído de acordo com as teorias positivistas adotadas na época. Um dos projetos incluídos nesses planos governa- mentais era a Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, chefiada pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon. O intuito dessa comissão era estabelecer uma comunicação entre os estados do Norte (Mato Grosso até o Amazonas) e a capital fe- deral, como também demarcar fronteiras estratégicas do Brasil. Além disso, a comissão também recebe notoriedade por seu contato com tri- bos indígenas da região, o que levou à criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O conjunto de todas essas ações recebeu o nome genérico de Comissão Rondon.

O Major Luiz Thomas Reis toma parte da Comissão Rondon como o homem da câmera no registro das expedições do Marechal Cândido Rondon. Fernando de Tacca (2004, p. 370) descreve as imagens da Co- missão “como autoafirmação, marketing e mostra da ação estratégica de ocupação de nossas fronteiras”. Os filmes de Reis criavam a imagem de um índio genérico e receptivo ao contato com o homem branco, além de fazer um registro etnográfico dos costumes das regiões por onde pas- sava. Essas viagens resultaram em uma série de curtas-metragens, uma parte deles se perdeu, mas cinco foram reunidos em um único filme chamado Ao redor do Brasil.

Pa no ra ma d o c in ema d oc um en tá ri o br as ile ir o 109 O filme chegou às telas brasileiras em 1932 e escandalizou o público

com as cenas de nudez dos índios. O documentário tinha uma orienta- ção didática: a partir de um desenho do mapa do Brasil, as regiões eram localizadas para o público. O discurso do Estado é amplamente divul- gado, dando a ideia de que se estava levando civilização e salvação ao povo indígena, que estava muito contente com isto (mesmo não haven- do felicidade aparente nas imagens do diretor). O filme colocou Reis no patamar dos pioneiros mundiais do cinema etnográfico. Labaki (2006, p. 29) destaca que “seu estilo progrediu com o tempo de mero registro a estudadas composições de sequências.” Mesmo assim, estava longe do tratamento criativo e imaginativo da proposta estética Flahertyana.

Talvez o filme mudo brasileiro que tenha chegado mais perto do tra- tamento criativo encontrado em escolas documentais pelo mundo te- nha sido São Paulo, a Symphonia da Metrópole (1929). Dirigido por Adal- berto Kemeny e Rudolph Lex Lusting, o longa-metragem se inspira nas sinfonias de metrópole realizadas por cineastas em outros países, como o alemão Berlim, sinfonia da metrópole e o próprio Um homem com uma Câmera de Vertov. O filme forja 24 horas na vida da cidade, organizado a partir de uma sequência de intertítulos. Como no documentário de Vertov, o foco do filme brasileiro é o trabalho e o trabalhador no dia a dia dessa metrópole que já possuía mais de um milhão de habitantes. Essa única grande obra dos dois diretores foi resgatada na década de 1990 em uma versão restaurada pela Cinemateca Brasileira, com trilha sonora composta por Lívio Tratenberg e Wilson Sukovsky. (LABAKI, 2006)

O documentário mudo ocupa, a partir de 1898, com quase exclu- sividade, as telas nacionais, até o surgimento do cinema sonoro entre o final da década de 1920 e início dos anos de 1930. O advento do som no cinema brasileiro aconteceu junto com a percepção estatal da im- portância desse meio como ferramenta educacional e de propaganda. Sheila Schvarzman (2004, p. 265) afirma que no início da década de 1930 o cinema é compreendido como um meio repleto de possibili- dades, mas é preciso ser controlado com sabedoria, com isso o Estado impõe “medidas que incentivem a produção e exibição de um ‘bom’ ci- nema nacional.”

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O papel da censura toma forma nesse momento, a tendência de maior intervenção do Estado a partir de revolução de 1930 atinge tam- bém a produção cultural. Sidney Ferreira Leite (2005) aponta na política intervencionista de Vargas semelhanças com o fascismo de Mussolini. Com essa política, o governo brasileiro aceitou as demandas de produ- tores e educadores da época, que pediam uma intervenção protecionista no cinema nacional, e em troca só eram liberados pela censura filmes que estivessem de acordo com o discurso social e político vigente.

Em 1932 foi implantada a lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais. Estes eram filmes curtos e educativos, pré-avaliados pela Co- missão de Censura. O decreto nº 21.240, de 4 de Abril de 1932, citado por Schvarzman (2004, p. 268), dá as seguintes atribuições a este tipo de filme:

São considerados educativos, a juízo da Comissão, não só filmes que tenham por objetivo divulgar conhecimentos científicos, como aqueles cujo entrecho musical ou figu- rado se desenvolver em torno de motivos artísticos ten- dentes a revelar ao público os grandes aspectos da natu- reza ou da cultura.

Este mesmo decreto coincidiu com o momento em que o governo abriu as portas do país para a importação de filmes estrangeiros. E aí es- tava a grande reviravolta da política intervencionista de Vargas: ao mes- mo tempo em que incentiva a exibição de filmes nacionais, a invasão de filmes estrangeiros nas salas de cinema torna financeiramente impossí- vel no Brasil a produção desses filmes por realizadores independentes. Logo, a produção de filmes educativos é transferida quase por completo para o Estado.

Nesse contexto, em 1936, o Ministério da Educação e Saúde cria, sob a tutela do antropólogo Roquette Pinto, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Atrás das câmeras do INCE estava Humberto Mauro, cineasta mineiro que começou sua carreira fazendo filmes de cavação.1

1  A cavação consistia em realizar filmes institucionais e cinejornais, denominados “filmes naturais”, e, com os lucros obtidos nesses projetos, realizar projetos cinematográficos pessoais: filmes de ficção. (LEITE, 2005 p. 32)

Pa no ra ma d o c in ema d oc um en tá ri o br as ile ir o 111 Depois de algumas tentativas de trabalho financeiramente fracassadas

em estúdios brasileiros da época, Mauro é contratado pelo INCE para dar vida às temáticas nacionalistas escolhidas por Roquette Pinto. As produções do Instituto são divididas em duas fases: de 1936 a 1947, com Roquete Pinto no comando, e de 1947 a 1964, após a aposentadoria do antropólogo, quando Humberto Mauro passa a ter mais autonomia den- tro da instituição.

A primeira fase do INCE (de 1936 a 1947) tem uma concepção dife- rente do viés do cinema educativo da escola inglesa de Grierson. Segun- do Fernão Ramos (2005), a produção do instituto brasileiro não dialo- gava com a cinematografia de vanguarda e tem um aspecto cientificista e culturalista em suas temáticas e estética. Sheila Schvarzman (2004) confirma a observação de Ramos (2005) ao apontar que os assuntos de caráter científico predominam em relação aos outros temas abordados nos filmes do instituto, sendo que, dos 239 filmes, 95 foram dirigidos por Humberto Mauro neste período. Eram curtas-metragens pensados para ressaltar as contribuições científicas brasileiras, assim como a di- versidade excepcional da fauna e flora do país.

Entre as temáticas mais significativas nesse ciclo de filmes, Schvarz- man (2004) indica “Vultos” sobre figuras marcantes da história e cultu- ra brasileira (12 filmes); “Cultura Popular e Folclore”, que eram tomados pela vertente erudita (11 filmes); a “Educação Física” (8 filmes); e filmes “Oficiais” (23 filmes) sobre eventos políticos do país, estes últimos reali- zados até 1940, quando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) decidiu tomar para si as produções sobre o tema.

A segunda fase das produções do INCE se dá após a 2ª Guerra Mun- dial, pós-Estado Novo e com a aposentadoria do então diretor do Insti- tuto, Roquette Pinto. A preocupação política do governo em relação ao cinema diminui e o ideal educativo de Roquette Pinto pouco a pouco é substituído por uma preocupação puramente documental. Schvarzman (2004) explica que este novo ideário não foi algo pré-concebido, mas foi sendo construído filme a filme e também com a ajuda de fatores exter- nos, como a encomenda da série Educação Rural, por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sobre as cidades

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históricas mineiras, e Brasilianas, que reúne filmes sobre carros de boi, engenhos e usinas.

Neste momento, Humberto Mauro tinha mais autonomia, não só quanto às temáticas dos filmes como também na elaboração estética dos mesmos. Mauro dizia buscar “o encantamento do mundo” (LABAKI, 2006, p. 40), e o Brasil dessa nova fase remetia às memórias do diretor: era um Brasil rural, romântico e mineiro.

Os filmes [de Humberto Mauro] com seus sons e ritmos constituem um inventário para a eternidade; trazem como aspiração a possibilidade de reter o tempo nas ima- gens, de num mesmo movimento reproduzir o passado, produzir o presente e projetar o futuro, pois constituem simultaneamente memória e utopia. (SCHVARZMAN, 2004, p. 289)

Humberto Mauro era o diretor cinematográfico contratado pela casa, mas não era o único a realizar documentários para o INCE, de modo que a instituição também financiava e apoiava produções de ou- tros diretores. Na segunda fase do Instituto, a nova concepção de temas para documentários contribuiu para que Humberto Mauro apostasse na ideia do paraibano Linduarte Noronha, e em 1959 emprestou a câmera do INCE para as filmagens de Aruanda, documentário de estreia de No- ronha. Na verdade era a estreia cinematográfica de toda a equipe do cur- ta-metragem, composta, além de Linduarte, por Rucker Vieira (diretor de Fotografia), João Ramiro Melo (co-roteirista e assistente de direção) e o documentarista estudado nessa pesquisa, Vladimir Carvalho, aqui como co-roteirista e assistente de direção.

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