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O FILME ENQUANTO DOCUMENTÁRIO

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 194-200)

a história mediada pelo cinema

O FILME ENQUANTO DOCUMENTÁRIO

Cabra marcado para morrer é um trabalho pertencente ao gênero docu- mentário. Neste sentido, define-se como uma representação cinemato- gráfica destinada ao relato de fatos reais e não ficcionais. Por esta razão, comumente se atribui, de maneira equivocada, aos trabalhos enquadra- dos neste gênero, uma vinculação direta com a realidade e, em consequ- ência, com a verdade. Parte-se do pressuposto da isenção de valores dos responsáveis pela sua realização, tanto no que se refere à sua concepção quanto à sua produção, quer seja de autoria individual ou coletiva. Desse modo, o documentário seria uma narrativa real e verdadeira.

Nesses termos, os filmes assim produzidos estariam isentos de dis- cussões e questionamentos a respeito dos seus conteúdos. Tais ques- tões recairiam apenas sobre as suas características técnicas, a exemplo do tempo de duração, da montagem, da iluminação, dos enquadramen- tos utilizados, da qualidade da trilha sonora e assim por diante. Pensado dessa maneira, Cabra marcado para morrer poderia ser compreendido apenas como um documentário sobre as lutas sociais no meio rural do nordeste brasileiro.

Essa concepção não nos parece correta. Podemos aceitar que o do- cumentário se refira a uma realidade material ou simbólica, mas, em hipótese alguma, que mantenha uma vinculação direta com a realidade ou que se constitua em um trabalho isento de valores. Por outro lado, também nos parece consistir um grande equívoco dissociar os recursos técnicos dos conteúdos que integram uma realização cinematográfica, qualquer que seja o seu gênero. (AUMONT; MARIE, 2009)

Entendemos que toda representação do real se origina dos valores, sentimentos, ideias e ideais que indivíduos e grupos são portadores, conforme a posição que ocupam na estrutura social. Por outro lado, parece-nos inexistir um vínculo direto dessas representações com a re- alidade. A recriação dos mais variados aspectos da sociedade humana é mediada por concepções e ideologias existentes em uma totalidade social, dentro de um período histórico determinado.

Assim, tais elaborações são, ao mesmo tempo, condicionadas tanto pelo acervo social e cultural acumulado quanto pela capacidade de cria-

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e grupos em resposta aos problemas que enfrentam na vida social. Na medida em que as realidades históricas se mostram permeadas por assi- metrias inerentes à distribuição desigual dos recursos produtivos e sim- bólicos necessários à organização e subsistência dos grupos sociais, a produção cultural tende a refletir as diversas contradições que se mani- festam por meio das tensões e dos conflitos presentes nestas realidades.

Dessa maneira, podemos admitir, também, que diferentes represen- tações da mesma realidade social são influenciadas pelo pertencimento de seus autores a grupos sociais distintos, e, via de regra, elaboradas em defesa de seus interesses e do seu modo de vida. A construção de um produto cultural envolve, por conseguinte, não só os pressupostos polí- ticos de uma visão de mundo adotada por seus autores, como também os recursos técnicos necessários à viabilização coerente e consistente das ideias que se propõem a comunicar.

Cabra marcado para morrer é um documentário que exemplifica muito bem essas questões. A decisão de realizar este filme partiu de um processo de observação da realidade que não se deu de uma forma espontânea. Ao contrário, refletiu a formação política de seus autores, estudantes preocu- pados com as transformações políticas que se anunciavam na sociedade brasileira no início da década de 1960. A percepção da acentuada pobreza da população das cidades do nordeste, a presença de grandes empresas estrangeiras na região, iniciativas nacionalistas de exploração do petróleo pelo Estado, são aspectos que vão compondo um quadro social caracteri- zado por fortes contradições sociais que também se manifestam nas áre- as rurais. Nestas se percebia uma crescente insatisfação social, derivada de um intenso e longo processo de exploração de pequenos agricultores e trabalhadores rurais. Por fim, a extrema violência do latifúndio contra as reivindicações dos mais elementares direitos desses trabalhadores foi traduzida em mais um episódio de assassinato político de um dos seus líderes. Isto se converteu no elemento final de um processo de reflexão crítica que conduziu à decisão de realizar o filme.

Como se poderia alegar uma isenção de valores no âmbito dessa tomada de decisão? Cabra marcado para morrer representava, portanto,

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uma clara tomada de posição, baseada em valores que reconheciam a legitimidade das lutas sociais dos pequenos agricultores e trabalhado- res rurais. Mais ainda, demonstrava a necessidade de divulgá-las em um universo social mais amplo. Tal posição também evidenciava uma preocupação de alinhamento com as forças políticas que naquele mo- mento histórico se manifestavam, mesmo que de diferentes maneiras, em favor de transformações sociais que conduzissem à eliminação das injustiças sociais e da violência política que acometiam os trabalhado- res na sociedade brasileira.

Neste sentido, portanto, Cabra marcado para morrer está objetiva- mente vinculado a uma visão de mundo que dá rumo e sentido a este empreendimento cinematográfico. Tal ponto de vista expressa o que o diretor e sua equipe pretendem construir em torno de um momento histórico das lutas sociais no Brasil. É este modo de conceber a realidade que informa a elaboração da narrativa e dos meios empregados para o seu desenvolvimento. Assim, é a visão que Eduardo Coutinho possuía em relação aos acontecimentos que precederam e que se sucederam ao golpe militar de 1964 que determinará a concepção e a realização do documentário, a forma de participação dos personagens envolvidos, a utilização da técnica de entrevista e a edição dos seus resultados, a trilha sonora, a montagem, enfim, todos os processos empregados na realização do filme. Desse modo, a visão do diretor se sobrepõe à dos participantes, ordenando-as de acordo com um sistema de referências e objetivos previamente definidos. (MENEZES, 1995)

A realização do filme em dois momentos históricos distintos de- monstra de maneira inequívoca os condicionamentos sociais e valora- tivos inerentes à sua concretização. Em primeiro lugar, observa-se que a produção do filme em Sapé – PB ficou comprometida pela ocorrência de um conflito violento entre os pequenos agricultores e as forças a serviço do latifúndio, que resultou em 11 mortes, evidenciando, por conta do acirramento das tensões sociais existentes, uma atmosfera totalmente desfavorável à sua efetivação neste município. Isto obrigou a transfe- rência das filmagens para Vitória de Santo Antão – PE, no Engenho da Galileia, localidade considerada ideal para sua concretização. A eclosão

Ca br a ma rc ad o pa ra m or rer : a h is tó ri a m ed ia da p el o c in em a 195 do golpe militar menos de dois meses depois de iniciadas as locações

provocou a interrupção do filme. Desta vez, no auge dessas tensões, re- sultou na apreensão dos exemplares do roteiro e dos equipamentos usa- dos para as filmagens, celebrada, de forma sensacionalista, como uma das maiores apreensões de materiais destinados a promover a subver- são comunista.

Em segundo lugar, verifica-se que, transcorridos dezessete anos, promoveu-se a retomada do empreendimento. Neste momento, os con- dicionamentos sociais eram outros. As lutas sociais se encontravam em um patamar bem distinto daquele de 1964, quando se orientavam por propostas de transformação da sociedade brasileira. Desta vez, estavam concentradas na resistência ao regime militar, após um longo período de repressão e tentativa de desmantelamento de todas as formas de oposição existentes. No entanto, a realidade política autoritária cons- truída pelo movimento militar emitia claros sinais de decomposição. As forças políticas inspiradoras e beneficiadas pelo golpe recuavam e, astutamente, preparavam sua retirada da cena. Ficariam melhor agindo nos bastidores. Era a ocasião propícia para o relaxamento da repressão e da censura.

Por outro lado, as mudanças que começavam a fissurar a arquitetura do regime militar não se caracterizavam simplesmente como conces- sões aos seus opositores. Longe disso, se deviam, principalmente, à re- sistência popular, ao descontentamento de amplos setores da sociedade civil organizada e ao exaurimento das políticas econômicas postas em prática, desde 1964, com o objetivo de alavancar o processo de acumula- ção de capital. Em 1981, o país vivia uma crise de liquidez frente aos cre- dores internacionais, a inflação estava elevada, a concentração da renda e da terra acentuada. O descontentamento popular era cada vez maior, ante a combinação de baixos salários, forte repressão e censura.

A retomada do filme se configura, portanto, em um ambiente im- pregnado pelas lutas sociais, agora orientadas para outros objetivos, tais como a democratização da sociedade brasileira, a reposição dos direitos civis usurpados pelo regime, o questionamento da dívida externa e a re- alização de uma reforma agrária, dentre outros. Este é o contexto em que

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emerge e se concretiza a proposta de realização do documentário. Nes- te sentido, é necessário considerar ainda as razões de ordem subjetiva que impeliram seus realizadores a tão relevante propósito. Que motivos conduziram Eduardo Coutinho a concluir um trabalho cinematográfi- co interrompido há dezessete anos em condições tão diversas daquelas prevalecentes em 1964?

Qualquer que tenha sido, subjetivamente, o motivo de tal decisão, transparece a intenção política de resgatar a memória das lutas sociais e das pessoas que participaram delas, ainda que tal reconstrução se via- bilize pela ótica do diretor, por sua visão do processo de mudança e por sua concepção sobre os papéis desempenhados pelos agentes históricos envolvidos. E quem eram essas pessoas? Brasileiros, para não dizer nor- destinos, gente comum, lavradores que desafiaram o latifúndio e tudo o que ele representava e ainda representa na sociedade brasileira. Que pagaram caro, alguns com a própria vida, por se lançarem decididamen- te neste repto.

É essa retomada de um projeto interrompido durante tanto tempo que torna Cabra marcado para morrer um dos trabalhos singulares da ci- nematografia brasileira. É bem evidente a complexidade que tal propos- ta continha, na medida em que recolocava de um ponto de vista atual uma questão passada de memória tão dolorosa. Neste sentido, era ne- cessário encarar com serenidade as recordações sobre as experiências vivenciadas, os sentimentos e as emoções que desencadeavam, as rea- valiações que inevitavelmente seriam feitas. Isto não faltou em nenhum momento ao diretor e à sua equipe, que jamais deixaram de fazer, atra- vés das câmeras e de modo objetivo, os registros daquilo que presencia- vam e ouviam.

Parece-nos que isso melhor define e enriquece um documentário como Cabra marcado para morrer. Que faz jus à popularizada ideia de um cinema verdade que relata os fatos históricos com acentuado respeito por aquilo que é dito pelos seus participantes (RAMOS, 2006), deixando para os seus espectadores um amplo espaço de reflexão sobre as ques- tões apresentadas. É um trabalho que consagra o cinema como um im- portante veículo de mediação entre a realidade social e a história.

Ca br a ma rc ad o pa ra m or rer : a h is tó ri a m ed ia da p el o c in em a 197 REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme como narrativa. In: ________. A análise do filme. Lisboa: Texto & Grafia, 2009. p. 83-103.

BRASIL, Unbelino. O filme documentário como “cinema verdade”. Olho da História: revista de história contemporânea, Salvador, n.1, p. 6, nov., 1995. Disponível em: <http://www.oolhodahistoria.ufba.br/01ofilme.html>. Acesso em: 4 abr. 2012.

CABRA marcado para morrer. Direção e Roteiro: Eduardo Coutinho. Produção: Zelito Viana. Intérpretes: Elizabeth Altino Teixeira; João Virgínio Silva; José Daniel do Nascimento; Cícero Anastácio da Silva e outros. Rio de Janeiro:

Gaumont do Brasil, 1964. (119 min.), son., color., 35 mm.

CÂMARA, Antonio S. Conflitos sociais e modo de vida no cinema

documentário brasileiro: aproximações e distanciamentos. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 32., 2008, Caxumba. Anais... Caxumba, 2008.

JULIÃO, F. Que são as ligas camponesas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962.

MENEZES, Paulo R. A. A questão do herói-sujeito em Cabra marcado para morrer, filme de Eduardo Coutinho. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, São Paulo. v. 6, n. 1-2 p. 107-226, 1995. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/ sociologia/temposocial/pdf/vol06n12/Questao.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2012. OLIVEIRA, Francisco. A economia brasileira: crítica à razão dualista. São Paulo: Brasiliense, CEBRAP, n. 1, 1975. Disponível em: <http://www.cebrap.org.br/v1/ upload/biblioteca_virtual/a_economia_brasileira.pdf> Acesso em 4 abr. 2012. RAMOS, Alcides F. A historicidade de Cabra marcado para Morrer (1964-84, Eduardo Coutinho). Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Paris, jan. 2006. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/1520>. Acesso em: 4 abr. 2012.

RIZZO, Sérgio. O extraordinário narrador de narrações. CULT, São Paulo, n. 147, p. 28-32, ago., 2010. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/ home/2010/06/o-extraordinario-narrador-de-narracoes/>. Acesso: 4 abr. 2012.

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