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O LUGAR DE SÃO SARUÊ

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 155-159)

de crítica: o país de São Saruê

O LUGAR DE SÃO SARUÊ

O país de São Saruê é um filme que descende de um surto cinematográ- fico de breve duração que se deu na Paraíba, iniciado com a realização do documentário Aruanda, obra produzida entre os anos de 1959-60 e cuja estética já continha centelhas das inquietações correspondentes à repercussão no Nordeste do iminente Cinema Novo nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Com o impacto de Aruanda, nasce – na Paraíba pouco industrializada e até então não inscrita no mundo da produção cinematográfica – um pequeno grupo de funcionários sem recursos que deram luz a um significativo movimento cinematográfico. E se aquele movimento apresentava-se, ainda na década de 1960, com modestís- simas proporções no campo do cinema, em contrapartida, terminaria protagonizando, com mérito, grandes revelações sobre as condições de vida do Nordeste e do país. (CARVALHO, 1986)

Como nos conta o diretor em livro homônimo ao filme São Saruê, até a década de 1950 a produção de cinema na Paraíba era um privilégio apenas dos grandes senhores de terra ou da burguesia comercial, que formavam seus filhos na Faculdade de Direito de Recife ou na Escola de Medicina de Salvador, e financiavam a inserção destes jovens no proces- so cultural burguês – aí inclusa a iniciação na produção cinematográfi- ca. Entretanto, este quadro mudaria substancialmente a partir do fenô- meno da descentralização da universidade no Brasil, a partir de 1950, momento em que surgem os centros universitários dos chamados esta-

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dos pobres, que alcançaram a Paraíba em vista da presença influente do então ministro José Américo de Almeida. Para Vladmir Carvalho (1986), este é o momento em que se abre espaço para um contingente significa- tivo de uma pequena-burguesia paraibana à instrução superior, às vés- peras do boom desenvolvimentista de Juscelino Kubistchek. E é também o contexto no qual nasce, como consequência da atuação estudantil, o movimento dos cineclubes, forma convencional de defesa do cinema, que se torna espaço privilegiado para discussões relativas às polêmicas estéticas no estado da Paraíba.

Motivados pelas discussões dos cineclubes, seus integrantes logo deram origem a alguns títulos que dizem respeito ao primeiro surto de cinema paraibano, fruto desta abertura universitária. Após 30 graus à leste, uma incursão amadora de João Ramiro Mello sobre a realidade de abandono do chamado Cabo Branco, solapado pelo mar da Paraíba, viria Aruanda, obra que Linduarte Noronha realizaria a partir de uma repor- tagem para o jornal Tribuna de Imprensa, do Rio de Janeiro, sobre um povoado de nordestinos negros isolado na chamada Serra do Talhado.

Verdadeira novidade, num momento de sofreguidão em busca dos caminhos do cinema brasileiro, Aruanda es- pocou como revelação benfazeja. Até ali, à exceção dos líricos shorts de Humbeto Mauro para o INCE, não havia documentário brasileiro. (CARVALHO, 1986, p. 125, grifo do autor)

O filme cai então nas graças de personagens renomados da crítica cinematográfica, como Paulo Emílio Sales Gomes e Glauber Rocha, que faziam menção em textos jornalísticos nas páginas do Jornal do Brasil às imagens agressivas, à luz estourada, à imagem contrastada, ao preto e branco renitente e muito de acordo com o primitivismo do cinema bra- sileiro – imagem esta que, também para Vladmir Carvalho, era o melhor e mais adequado meio na época para captar a dramaticidade da soalhei- ra nordestina. Logo em seguida, A bagaceira, de Tristão de Athayde, O Cajueiro nordestino, segunda obra de Linduarte Noronha, e Romeiros da guia, do próprio Vladmir Carvalho em parceria com João Ramiro Mello, dariam fechamento ao primeiro surto de cinema paraibano, que por

A p oé ti ca c om o i ns tr um en to d e c rí ti ca : o pa ís de S ão S ar uê 155 volta de 1962 se encerrava para ser retomado só cinco anos depois, com

Os Homens do caranguejo, de Ipojuca Fontes.

Na primeira metade dos anos 1960, Vladmir Carvalho volta a João Pessoa e passa a cobrir o movimento das ligas camponesas numa área até então bastante explosiva: a várzea do Paraíba, região que àquela época se transformava em parada obrigatória para a imprensa interna- cional, que descobria a chamada “revolução brasileira” protagonizada pelas Ligas Camponesas da Paraíba, com nível elevado de coesão. Era também a locação a partir da qual José Lins do Rêgo inspirar-se-ia para produzir seu Ciclo da Cana-de-Açúcar1 e José Américo realizaria A baga-

ceira. Deste modo, a região vivia num clima constante de disputa entre senhores de terras e retirantes do alto sertão que buscavam um lugar na terra, algo que terminaria quase sempre em conflito social e cultural.

É nesse ponto que, de certa maneira, me nasce sub-rep- ticiamente a vaguíssima idéia de realizar um longo do- cumentário sobre o jugo secular do latifúndio. O contato direto e quase diário com aqueles homens rudes e de re- pente despertos para os seus direitos me levou a refletir e logo transformei a idéia num argumento. (CARVALHO, 1986, p. 126, grifo do autor)

O diretor de São Saruê, entretanto, não consegue àquela oportuni- dade dar seguimento ao projeto, vindo logo em seguida a ser convidado para participar do filme Cabra marcado para morrer – ainda como um projeto de filme ficcional, em 1964 –, em colaboração com Eduardo Cou- tinho, projeto que mais tarde seria interrompido pela repressão pos- terior ao golpe militar. Dois anos após a aniquilação dos focos de luta camponesa e a subsequente repressão da equipe de filmagem, que por pouco havia escapado da prisão e da tortura, o clima político amainara- -se e Vladmir Carvalho resolvera retornar ao tema da terra e à questão da exploração dos trabalhadores escamoteada nas intervenções estatais re- alizadas através do Governo e da Superintendência de Desenvolvimento

1  Esta fase reúne os romances: Menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), O moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo morto (1943).

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do Nordeste (SUDENE) no sertão da Paraíba, mais precisamente nos ar- redores de onde havia eclodido, há poucos anos, os focos da luta cam- ponesa. “O que me interessava principalmente era pegar as contradições das relações de produção na região – os donos de terra explorando o seu servo até o osso.” (CARVALHO, 1986, p. 127)

Este já era O país de São Saruê, que então viria a ser produzido em meio a um clima de improviso muito abertamente reconhecido por Vla- dmir Carvalho. Segundo ele, deixava-se correr a ação sem interferir mui- to sobre ela, como num afresco, não perdendo o gesto espontâneo e o enquadre. Ao rodar no regime de um por um, ou seja, uma tomada para cada cena – tal a impossibilidade de repetir cada situação para encontrar o melhor enquadre –, a equipe registrava as situações ao tempo em que a filmagem era realizada em meio à dificuldade de manuseio do material e de movimentação pela vegetação da caatinga, que de certa maneira aproximava-se muito do caráter artesanal do dia a dia nordestino, sen- do um cinema parente do lixo industrial que marcava a paisagem e os meios de produção do lugar. O diretor, com as imagens já realizadas, utilizaria ainda os poemas requisitados ao artista Jomar Morais Souto para, em 1968, montar uma versão de cinquenta minutos chamada Ser- tão do Rio do Peixe, e um subproduto da empreitada, o documentário A bolandeira. Tempos depois, já sem recursos para outras atividades cine- matográficas e praticamente falido, foi para a Universidade de Brasília para ajudar a formar um centro de documentação cinematográfica no Planalto Central, período em que começou a repensar a possibilidade de concluir o filme idealizado alguns anos atrás. É neste período que o diretor, junto à sua equipe, decide voltar à região do Rio do Peixe para realizar um último ciclo de filmagens, agora para explorar a questão dos minérios e o contraste entre a riqueza e a miséria que marcavam a his- tória da região, filmagem que, de forma isolada, também deu origem ao curta A pedra da riqueza.

A Pedra da Riqueza, no mesmo período, completaria a mi- nha proposta: visão de um Nordeste ambivalente, presa do atraso, do flagelo, da exploração errada da terra, o la- tifúndio como uma hidra ceifando vidas, de um lado. Do

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outro, a imaginação superexcitada do homem do povo que para escapar ao corpo-a-corpo com a miséria inven- tou saídas verdadeiramente geniais no plano do imaginá- rio. [...] Em pouco tempo tinha a versão definitiva de O

País de São Saruê pronta para percorrer os trâmites até

a sua exibição normal. (CARVALHO, 1986, p. 125, grifo do autor)

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