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UMA PARTE DA HISTÓRIA DO BRASIL

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 159-166)

de crítica: o país de São Saruê

UMA PARTE DA HISTÓRIA DO BRASIL

Embora cercado de certa aura enigmática em razão do seu perfil marca- damente poético, O país de São Saruê é um documentário com um propó- sito bastante definido, e que tem por natureza uma exposição direta das ideias veiculadas nos interstícios de sua narrativa. Se observarmos bem, veremos que logo no início do filme há uma alusão expressa à temática central de seu enredo: as condições de vida da população rural nordesti- na do extremo oeste da Paraíba, mais especificamente a que está situada nos municípios presentes no Vale do Rio dos Peixes e do Rio Piranhas. Partindo desta localização espacial, o documentário poderá explorar o contexto das relações sociais naquela região durante a década de 1960, momento em que o filme foi realizado, relacionado a questões como: expropriação das populações nativas; concentração fundiária; ausência do Estado na sua responsabilidade de fornecer incentivo à agricultu- ra; proibições estatais à atividade de extração mineral na região; cará- ter perverso do livre mercado para os pequenos agricultores rurais etc. Temas que, implícita ou explicitamente, indicam a existência de cho- ques de interesses, embates e discordâncias entre trabalhadores rurais e outros personagens, situações que sugerem a existência de contextos de conflito social mais complexos entre os atores sociais presentes na dinâmica social da região. Bastante explícitas são também, como vere- mos, as causas apontadas pelo filme para tal conjuntura, bem como os meios que devem ser acionados pela sociedade brasileira para a sua su- peração – uma temática que os autores não deixam escapar e que vinha sendo uma característica de diversos filmes na época, tendo em vista a influência marcante do Cinema Novo. (TOLENTINO, 2001)

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As opções estéticas de São Saruê também estão, em alguma medida, condizentes com esta proposta expositiva de assertividade mais direta. Como poderemos perceber, os elementos predominantemente poéticos do filme – como a poesia recitada de Jomar Morais Souto e as músicas regionais que atuam como banda sonora de fundo – já são permeados de asserções e histórias sobre o homem do campo, os quais apontam para a história de ocupação do sertão e as dificuldades lá encontradas, de modo a garantir uma representação e interpretação eminentemen- te estética dos fatos ocorridos. Entretanto, estas passagens são ainda intercaladas no filme por recursos documentais dedicados a agregar informações e dados sobre a realidade social objetiva da região, como a narração e o texto em off com dados geográficos, as entrevistas com habitantes – que quase sempre são incitados a contar sua história de vida na região –, as imagens de documentos históricos, como reporta- gens de jornais da época etc. Assim, os contextos socioeconômicos, as dinâmicas de mercado e comércio, as informações sobre a população, as atividades econômicas desempenhadas no lugar e mesmo análises sociológicas são agregadas por estes meios à narrativa, de forma a com- por esta face do enredo e, ademais, dar corpo e fundamento às interpre- tações que também inspiram os traços poéticos da narrativa.

Temos, portanto, um filme documentário composto, de um lado, por estratégias que marcadamente dedicam-se a estabelecer informações sobre o mundo histórico, sobre a realidade objetiva do extremo oeste da Paraíba e de seus cerca de 20 municípios – como a voz e o texto em off, as entrevistas, pelos dados extraídos delas, e as tomadas que retratam as locações sobre as quais discute o filme –;  e, de outro, por estratégias caracteristicamente poéticas, que proporcionam uma intervenção cria- tiva mais ostensiva por parte dos autores – como os poemas, a música regional de fundo, as encenações e os planos gerais, americano, detalhe e close-up, que aderem à circunstância de mundo encontrada na região com maior plasticidade e intervenção criativa. Contudo, um e outro tipo de estratégia cumprem papéis complementares e, não raro, assumem uma o perfil da outra, o que deve nos levar a não exorbitar as diferen- ças mútuas. Além do caso aqui citado dos poemas recitados no filme,

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do campo na região, não são raros os planos com caráter documental que, ao informarem sobre particularidades do cotidiano camponês na região, como o trato do gado e do algodão, conferem enorme plasticida- de às imagens, registrando traços da realidade destes trabalhadores ao tempo em que promove uma leitura crítica a respeito de sua condição de miséria, dos atores sociais que contribuem para a perpetuação desta condição, como também da capacidade singular de resistência destes trabalhadores frente às adversidades do clima e do solo da região.

Este caráter direto é, por conseguinte, endossado por uma pro- posta de retomada do passado do sertão paraibano, algo a que o filme se propõe desde o início e que certamente resulta na divisão que está presente em seu encadeamento. O país de São Saruê tem como atributo empreender uma abordagem caracteristicamente histórica, que procura entender a situação contemporânea ao período de realização do filme, enfocando os principais fatos e contextos históricos que teriam levado aquela região à situação em que se encontrava durante a década de 1960. Esta confluência histórica é suscitada a partir da retratação dos ciclos de exploração de atividades econômicas que repercutiram diretamente na reprodução material da vida dos camponeses ao longo dos anos. Na pri- meira parte, analisa-se o momento histórico de povoamento do extremo oeste da Paraíba e sua relação com populações anteriores, como a indígena. Ainda neste primeiro momento, acentua-se o ciclo da pecuária, principal atividade econômica da região entre meados do séc. XVII e dos anos 1860. Os ciclos de chuva e, sobretudo, de seca recebem aqui especial destaque.

Em um segundo momento, vemos retratado o ciclo do algodão, uma atividade que passa a ganhar corpo com a alta do produto no mercado internacional em razão da Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861- 1865), e de certa forma decorre historicamente das dificuldades que o agricultor rural encontrou para manter uma rentabilidade constante com a pecuária durante todo o ano, em razão das secas, mas que, como o filme irá mostrar, também encontra suas limitações na condição despri- vilegiada que o pequeno produtor rural enfrenta no mercado ao buscar vender a sua pequena produção algodoeira.

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Após uma importante reflexão sobre a presença dos elementos da modernidade que atravessam a região, como a feira livre repleta de ar- tigos industrializados – refrigerantes, sandálias de borracha etc. –, o filme faz referência ao ciclo da mineração, que se encerrou ainda no início da década de 1960, enfocando, sobretudo, a proibição do Estado à atividade mineradora pelos trabalhadores rurais e a breve onda de mo- dernização que se extinguiu junto com a proibição federal à exploração livre do solo.

O filme tem, dessa forma, um encadeamento caracteristicamente histórico-crítico na sua leitura sobre o nordeste brasileiro, tendo como ponto de partida o extremo oeste da Paraíba. Procuraremos abordar seus principais aspectos e ver em que medida a leitura sobre as condições sociais e materiais de vida das populações rurais no filme elabora uma versão sobre os conflitos sociais inerentes à realidade vivida na região, bem como a forma em que se dá a construção dos principais persona- gens envolvidos nestes contextos.

O homem do campo como sujeito histórico

Pela própria proposta de registrar situações singulares de uma locali- dade, o extremo oeste do estado da Paraíba, com seus cerca de 20 mu- nicípios, o filme traz um conjunto significativo de personagens. Nas imagens estão figuras como José Gadelha, apresentado como um dos homens de negócios mais bem sucedidos da região, o prefeito de uma das cidades, Antônio Mariz, o ativista social norte-americano Charles Foster, o ex-garimpeiro Zeca Inocêncio, e ainda Pedro Alma, um pionei- ro na extração do ouro na região. No entanto, a figura à qual é conferido o papel de protagonizar o filme não está centrada no exemplo de um e de outro indivíduo em particular, mas de um grupo social que se apresenta nas diversas imagens de tropeiros, plantadores de algodão, mineiros e operários de pequenas indústrias locais: o trabalhador rural nordesti- no, um tipo social marcado pelas agruras da pobreza e pelas oscilações entre tempo de riqueza e de miséria, que se observa na história da lo- calidade. Deste modo, o principal personagem é, na verdade, um grupo

A p oé ti ca c om o i ns tr um en to d e c rí ti ca : o pa ís de S ão S ar uê 161 social, uma figura que se reconhece e se dissipa nas famílias, grupos e

populações de trabalhadores rurais da região marcados pelas condições de existência que eles e seus antepassados viveram em outras épocas.

O início do filme é permeado pela tentativa de traçar o momento de ocupação da região, mas ao mesmo tempo de situar nesta história a figura do trabalhador rural, do camponês, como um herdeiro das injus- tiças, humilhações e privações de seus antepassados, fazendo também com que daí se reconheça um grupo social injustiçado pela história, mas que permanece vivo nos contextos conturbados da vida cotidiana destas localidades. Neste caso, mesmo os índios, citados nos poemas de Jomar Souto – narrados pela voz de Echio Reis – como os primeiros ha- bitantes da terra, são parceiros no sofrimento e nas injustiças daqueles indivíduos retratados no documentário.

Outrora pontas de lança marcavam cruzes no ar. Em torno do fogo a dança, dançavam reis do lugar. Dentro do mato os clamores dos bravos índios corridos, eles únicos se- nhores destes sertões esquecidos. Mas não são só migra- doras as aves de arribação. Decerto um dia essas coisas às suas mãos voltarão. (CARVALHO, 1971)

Há, desta forma, um sujeito histórico a ser descoberto pelo filme e que se constrói mediante o desenvolvimento da sua narrativa. Tal sujeito confunde-se em sua concretude com os traços mais gerais daqueles que sofreram e ainda sofrem com os contextos de pauperismo da população do campo. A história do lugar confunde-se com a história daqueles que a habitaram, e é exemplo não só para compreender em que condições vi- vem as populações não retratadas dos vinte municípios do extremo oeste da Paraíba, mas de todo o sertão nordestino. Quase simultaneamente aos poemas, também intercalados pela música regional que vem como banda sonora de fundo, o filme traz como abertura um texto em off que dá as in- formações básicas sobre o lugar ao mesmo tempo em que pratica um exer- cício ainda mais direto de análise estética crítica a respeito desta história.

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Nos Vales do Rio do Peixe e Piranhas, no extremo oeste da Paraíba, Nordeste do Brasil, espalha-se por cêrca de 20 municípios, numa área superior a 8000 km2, uma população estimada em 500 mil viventes. Ricos e pobres são todos descendentes de colonos portugueses aí che- gados no séc. XVII e de índios que, durante a conquista, formaram a Confederação dos Cariris e foram dizimados pelos bandeirantes, perdendo suas terras, transformadas em ‘datas’ de sesmarias. A criação e o rude trato da terra emprestaram a esses vales uma feição cultural idêntica à que, em geral, se observa em todo sertão nordestino. Mas, desgraçadamente, também nessas paragens uma minoria detém a posse da terra e os bens que o esforço do homem pode tirar dela. O resultado é a injustiça e a humilhação. ‘Por isso’ qualquer semelhança com a histó- ria de outros sertões não é mera coincidência, mas seme- lhança mesmo. (CARVALHO, 1971)

As imagens de trabalhadores rurais cerrando o pasto para fundar casas encerram a reconstrução da história dos atores sociais que parti- ciparam das primeiras ocupações naquela região. Embora esta seja uma cena em que não há meios concedidos pelo próprio filme para saber se aquela situação efetivamente ocorreu ou não daquela forma em outro momento, para além do seu papel na narrativa, o fato é que a sua função ali é aludir a um povoamento já ocorrido na região, e que deu início à exploração da atividade pecuária.

A fixação dos colonos na terra teria, portanto, ocorrido já no séc. XVII, como adiantou o letreiro inicial, com populações vindas da Bahia pelo Vale do Rio São Francisco, atraídas pela presença periódica da água na região, que modificava as características ásperas da caatinga, ofere- cendo pastos adequados aos rebanhos bovinos. O couro dos animais e a carne seguiam para os centros do litoral onde encontravam mercado consumidor, o que, aliado ao uso de pouca mão de obra exigida para a cultura do gado, proporcionava grande rentabilidade àqueles que se aventuraram na região. No entanto, os ciclos de enchentes ou de fortes secas ocorreriam pelo menos uma vez a cada decênio, mostrando-se ca- tastrófico para os grupos rurais que se valiam da citada cultura, fazendo

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até a década registrada pelo filme (1960). Algo que repercutiu também na cultura popular local, mais precisamente no folclore da brincadeira do Cavalo Marinho, festejo no qual um boi ornado junto a uma roda de camponeses fazia alusão ao símbolo do recurso natural que provia a re- produção da subsistência local.

As imagens do ciclo pastoril encerram-se com a história da fazenda Acauã, existente desde o séc. XVII, mas conhecida como “Além da Paraí- ba”, já no ano de 1917, por ter sido transformada em posto avançado dos religiosos descontentes da Igreja Católica, tendo como proprietário o padre Correia de Sá. A voz off e os poemas enfatizam o tempo de bonan- ça antes ocorrido entre as fases de seca forte na região, que se encerrou com a ida definitiva das famílias e dos grupos religiosos que lá residi- ram para as cidades, onde havia meios para resistir aos tempos estéreis de falta d’água.

As imagens, desde o início do filme até o fim do ciclo pastoril, osci- lam entre os hábitos cotidianos dos tempos de fartura vividos na região e as lamentações dos camponeses junto ao gado, que deita no chão da caatinga em condição de quase morte, consequência do quadro de fome e sede vivido também pelos animais. As fases de bonança, filmadas com grande plasticidade, apresentam tropeiros dominando o gado com laços e cordas e penetrando, com enorme habilidade, a vegetação espinhosa da caatinga, demonstrando força e domínio sob uma região temida pela indisponibilidade sazonal dos recursos naturais mais elementares para a vida humana.

A encenação tem papel importante nessa oportunidade: nas ima- gens do domínio de um boi arisco acompanhado pela câmera, a narrati- va oscila entre um plano geral, que registra o curral onde o animal é do- mado; planos americanos, que mostram o grande esforço empenhado pelos sertanejos; e, de forma lúdica, traz um plano que mostra o ponto de vista do boi que é domado e que olha nos olhos de seu algoz, dando ainda mais destaque à figura do tropeiro e à sua vestimenta local, numa clara intenção de destacar ainda mais a singularidade e a coragem de sua figura.

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