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O TRABALHADOR RURAL NORDESTINO E A MODERNIDADE

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 166-173)

de crítica: o país de São Saruê

O TRABALHADOR RURAL NORDESTINO E A MODERNIDADE

Com pouco espaço para momentos de fartura, como na criação de gado, o ciclo do algodão no extremo oeste da Paraíba já é anunciado pela nar- rativa como mais uma das experiências de sobrevivência difícil e peno- sa para o trabalhador rural nordestino. Submetido ao regime de meação, quando o camponês (meeiro) divide metade de toda a produção de um ano de trabalho junto ao dono da terra e vende a sua parte no comércio local, pouco dinheiro lhe sobra para adquirir junto ao comércio artigos básicos de alimentação e vestuário. A quantidade de trabalho e a neces- sidade de tocar a lavoura de algodão também o impedem de aplicar seu tempo e trabalho na lavoura de subsistência, de modo que quando res- tam extintas as economias e os poucos víveres produzidos durante a sa- fra, os camponeses, que não partiram em retirada destas terras, passam a viver da caça de pequenas aves que ainda não fugiram da seca.

Até o séc. XIX, o algodão não tinha ganhado grande relevância para a atividade agrícola da região, sendo apenas mais uma planta nativa sem muita importância. Foi durante a Guerra Civil nos Estados Unidos, a Guerra de Secessão, na década de 1860, que a cotação deste produto sofreu elevação no mercado internacional e se firmou definitivamente a partir de então. Como narra a voz off, em Sousa – PB, umas das cida- des com centro mercantil mais expressivo da região do Rio do Peixe, existiam quatro grandes usinas com faturamento anual de setecentos mil cruzeiros cada uma, apesar do atraso e do empirismo dos meios de produção, segundo analisa a voz off.

As relações de produção entre o meeiro e os donos das usinas, a partir deste momento, são discutidas criticamente durante a narrativa, que pre- tende denunciar a exploração realizada pelos grandes proprietários. Res- ponsável pela voz que surge em off, Paulo Pontes faz a seguinte narrativa:

O cultivo do algodão, como já vimos, é feito em regime de meação. Aquele que detém a posse de terra e, via de regra, também o dono da usina, tem o privilégio do cré- dito nos estabelecimentos bancários. Com estes recursos, os donos da terra financiam seus moradores cobrando juros cinco vezes superiores ao recebido. Os lavradores,

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impossibilitados de resgatarem suas contas, após a par- tilha meio a meio de sua safra, assumem a dívida, per- manecendo sujeitos à obrigação de seguirem plantando indefinidamente, sem nunca usufruírem o resultado de seu trabalho. (CARVALHO, 1971)

As imagens são enfáticas no destaque ao caráter rústico da transa- ção comercial entre os lavradores e os receptores do algodão. Como um índice da miséria em que vivem os camponeses, aparecem casas de bar- ro batido, local onde uma balança de pedras e cordas é utilizada para fazer a medição do resultado da produção dos agricultores, e assim pro- mover a divisão desproporcional da safra.

O conflito de interesses entre o trabalhador rural e os grandes pro- prietários das usinas, nesta ocasião, parece não provocar uma reação ou embate da parte desprivilegiada, a dos camponeses. No entanto, como prossegue explicando a narração de Paulo Pontes, mesmo os grandes proprietários não saíram ilesos da avidez do mercado externo pela pro- dução de algodão nacional, estando eles sujeitos também aos percalços das altas excessivas de preços e da especulação capitalista.

O filme então introduz a figura de um dos grandes proprietários re- manescentes dos períodos áureos do algodão, creditando à sua figura a condição de remanescente entre os usineiros que, agora, assumiriam o papel de vassalos perante as grandes companhias que permaneciam reinando soberanas durante o período de realização do filme. Trata-se de José Gadelha, única figura realmente rica e de posses entrevistada no filme: “Sertanejos que ainda possuem usinas remanescentes [...], assim como vassalos das grandes companhias que reinam soberanas, mesmo hoje com as fibras sintéticas ameaçando seus negócios.” (CARVALHO, 1971) Trata-se de um momento bastante controverso no filme, pois em- bora este seja claramente um exemplo do lado beneficiado na antiga re- lação econômica com os camponeses, sua personagem é invocada como a de mais um sertanejo da região, de quem são apresentadas as heranças parentais, a história de construção do patrimônio material alcançado até ali, e a quem é concedido o direito de identificar os problemas mais graves da região, sugerindo quais seriam suas respectivas soluções.

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Em resposta à pergunta do entrevistador da equipe, que indaga: “Seu Gadelha, a família Gadelha é paraibana?”, José Gadelha afirma que sim, é descendente de cearenses, mas seu pai e sua mãe seriam nascidos na Paraíba, sendo ele, também, um paraibano. Suas atividades comer- ciais teriam começado em 1933, com a compra de um espaço de terra, o Sítio Pompéia, do então proprietário José de Oliveira, empreitada esta que foi incrementada em 1936, quando adquiriu uma pequena maqui- naria e deu então início à sua vida comercial. Mas sua atividade, como ele mesmo alega em meio à oportunidade que lhe concedeu a narrativa, estende-se para a concessão de inúmeros benefícios à cidade de Sousa, onde se estabeleceu.

(José Gadelha) Construímos mais uma fábrica de óleo, construímos também uma fábrica de doce, montamos os cinemas, e agora estamos... estamos concluindo uma montagem de rádio, que aliás está me dando muito tra- balho, em face da politicagem mesquinha que está se travando em torno dela. Temos feito alguma coisa em nossa cidade. Já doamos uma maternidade, uma das mais bem equipadas do interior do estado, doamos um terreno para a escola de treinamento, doamos um terreno para o DENOCS,2 doamos um terreno para a construção do hos-

pital regional de Sousa, doamos também um terreno para a construção da coletoria estadual de Sousa – um prédio pomposo que honra a nossa cidade. E há poucos meses atrás [...] comprei um hotel, o Gadelha Palace Hotel, o ter- ceiro do estado da Paraíba. Isso com a finalidade única de ajudar à minha terra e à coletividade. (CARVALHO, 1971)

A entrevista de José Gadelha, em face da inexistência da tecnologia do som direto/sincrônico ao alcance da equipe de Vladmir Carvalho – embora esta já existisse no Brasil na metade da década de 1960 –, não nos traz a figura do depoente. As imagens, por outro lado, acompanham as evidências mais fortes de que este homem que fala à equipe é certa- mente um homem de posses, o que nos ajuda a entender o modo pelo

A p oé ti ca c om o i ns tr um en to d e c rí ti ca : o pa ís de S ão S ar uê 167 qual o juízo sobre a sua existência no filme é cercado de ambiguidade.

Dentre as posses de José Gadelha, aparatosos caminhões repletos de sa- cas de algodão; caixas d’água utilizadas no beneficiamento do produto; seu carro de passeio particular; seu avião particular; seus terrenos etc., são algumas de suas posses apresentadas durante o tempo em que a banda sonora traz o conteúdo de sua entrevista.

José Gadelha também é indagado a respeito das condições do ho- mem do campo na região sertaneja, e se posiciona em aparente defesa destas populações, demonstrando toda a sua preocupação com os ha- bitantes de Sousa. Alega, de modo geral, que se trata de uma gente des- protegida dos poderes federais, estaduais e municipais, que não recebe ajuda do governo, vivendo subjugada aos bancos. A situação de vida dessa gente pobre e endividada, para ele, deveria brevemente ser resol- vida, para isso bastando que se concedesse crédito financeiro e ajuda, de um modo geral, ao homem do campo. Também é indagado sobre se teve ou não experiência com a lavoura antes de ser um homem de pos- ses, e também se tem outras pretensões para além do que já conquistou. Gadelha se defende, dizendo que já foi, sim, agricultor quando passou necessidade na vida, e que só almeja dali para frente trazer benefícios para sua cidade.

Assim, é interessante notar a importância que adquire a figura de Gadelha no decorrer do filme, mostrando-se necessária, numa primei- ra avaliação, à inspiração crítica do próprio filme, que já vinha desde o início da representação do ciclo do algodão discutindo as contradições existentes nas relações de produção mantidas através do regime de me- ação entre camponeses e usineiros de algodão. No entanto, esta crítica não se aprofunda tanto mais do que poderia sugerir em relação às refle- xões feitas pouco antes, a partir do funcionamento do comércio local do algodão. A voz off, que protagonizava uma leitura crítica bem clara e direta dos conflitos de interesses, não acompanha a presença contro- versa de Gadelha no filme, deixando de se manifestar. As imagens, que antes mostravam o camponês rústico em condição paupérrima para en- tregar a sua produção aos usineiros, agora registram as posses adquiri- das pelo empresário, trazendo sequências encenadas nas quais Gadelha

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caminha pelos prédios da indústria de algodão e gesticula para a câmera atenta, de modo a explicar como funcionam suas fábricas e setores pro- dutivos. O camponês, agora, trabalha com força e dedicação na indústria de Gadelha, ainda de forma rústica e pobre, mas sem a face de dor e so- frimento de quando era pequeno agricultor Os poemas recitados neste momento do filme, de Jomar Morais Souto, também não apresentam enfoque crítico, destacando, por conseguinte, apenas aquilo que seria um resultado da presença deste homem de posses na história da então pequena cidade de Sousa: a modernidade.

(Echio Reis) Lá em baixo a minha obra, veja claro quanto vale, eu já puxei muita cobra para os pés no meu traba- lho. Lá em baixo a minha obra. Gente boa que trabalha, e o preço que não se cobra por animal na cangalha. Veja o te- lhado à maneira como tudo se define, o pitoresco da feira, Isolube, Havoline. O pitoresco da feira. Sandálias finas de escol, o clavinote, a veira, amarelecida de sol. Feira civili- zada. Olha aí! Olha a destreza com que se troca opargata por sua japonesa. Olha aí, a minha obra pouco a pouco se define: japonesas, Coca-Cola, Insolube, Havoline. (CAR- VALHO, 1971)

Com Gadelha subindo no avião, imagens de uma panorâmica aérea são acompanhadas pela música emergente de Roberto Carlos à épo- ca, Quero que tudo mais vá para o inferno, que embala o que parece ser um momento novo para a região. A partir de agora, quando as imagens ganham uma dinâmica mais acelerada, a cidade de Sousa passa a ser apresentada a partir de um de seus ícones, a feira livre. Pouco a pou- co, multidões surgem negociando produtos, como sandálias japonesas (similares às hoje populares sandálias Havaianas), e ouvindo rádio. A cachaça local também é comercializada, mas o vasilhame que capta a quantidade suficiente para uma dose traz o contraste de ser retirada rus- ticamente com uma lata do óleo lubrificante da empresa Havoline. Lata que, em outro exemplar, numa nova oportunidade, recebe um plano de- talhe quando encostada ao lado de uma banca onde se vendem abacaxis, concluindo uma reiterada e convincente notação ao choque ou à relação

A p oé ti ca c om o i ns tr um en to d e c rí ti ca : o pa ís de S ão S ar uê 169 que se mantém naquela ocasião entre o arcaico, o nativo ou natural da

terra, e o novo, o produto que é fruto do desenvolvimento industrial da região. Região esta que já recebe máquinas industriais e por isso termi- nou construindo uma demanda por tais produtos. A voz off, que retorna ao filme, descreve e interpreta a sequência: “A feira é o grande encontro semanal das gentes sertanejas, que ali vão ansiosas por vender, com- prar, e ainda simplesmente mendigar ou ouvir o camelô, e tem remédios para todos os seus males físicos.” (CARVALHO, 1971)

A excitação dos chapéus, das armas, sandálias e artigos diversos postos à venda são interceptados pelo poema, que de certo modo põe um freio crítico ao que se poderia pensar como a felicidade garantida na região, que se antes vivia na mais completa miséria decorrente da seca e da exploração na produção do algodão, agora troca benefícios numa feira rica em novidades e preceptora de uma nova época, que surge com a relativa industrialização da região.

(Echio Reis) Sábia lembrança o acabado. Se não sabe sa- beria. Sabe ainda mais o ditado de uma noite atrás de um dia. E sabe o homem letrado, o homem de sabedoria, que em trinta e cinco é contado o tempo de há por havia. Nes- se tempo aqui só passa pouco João, pouca Maria. (CARVA- LHO, 1971)

O trecho que interpela o ciclo do algodão e que mostra a breve mo- dernidade trazida junto à figura de José Gadelha, com a feira livre, faz então seus últimos parênteses com a figura de Charles Foster. Ao som da música Era um garoto, que como eu, amava os Beatles e os Rolling Sto- nes, o agente do Peace Corps conta um pouco do seu cotidiano, muito próximo do que imagina ser o dia a dia humilde das pessoas que lá vi- vem – acordar cedo, retirar o leite da vaca, colher lenha etc. Foster é, ao que parece, um cidadão norte-americano que evadiu sua terra na- tal para fugir da convocação para a Guerra do Vietnã, no final da déca- da de 1950. Com vinte e três anos, sua atividade se resume, pelo que está presente em sua entrevista, a uma confusa relação de diálogo com os moradores da localidade, com os quais conversa com o intuito de

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resolver alguns de seus problemas mais imediatos. Fica, no entanto, muito vaga que tipo de ajuda é esta, qual a natureza do projeto Peace Corps e por que exatamente ele foi levado ao sertão nordestino. Ele e seu amigo, no entanto, demonstram mais claramente não estar inte- ressados em posicionar-se politicamente a respeito destas e de outras questões controversas, como o papel do seu país na Guerra do Vietnã e o atraso industrial do Brasil. O entrevistador, neste momento, é direto nas indagações, estimulando-o a posicionar-se, embora Foster resis- ta claramente: “Por que você acha que o Brasil se industrializou com enorme atraso?”. Frente à resposta de que não poderá responder a esta pergunta, o entrevistador faz outra: “O que é que você acha da guerra no Vietnã?”. Foster novamente nega-se a responder, mas uma reporta- gem de jornal procura explicar por ele a situação: o governo americano estava convocando para servir ao exército os cidadãos em atividade no Projeto de Paz no sertão, o que suscitou protesto e certo desconforto perante o país. A questão do imperialismo, aqui, é abertamente o foco de crítica da narrativa, que demonstra reivindicar para o Brasil um pro- cesso autônomo de industrialização e modernização. Processo este que se encontrava até então em atraso pela política aplicada pelos EUA aos países periféricos do sistema capitalista.

É possível perceber, deste modo, que os elementos da modernida- de, como a industrialização, o comércio de produtos industrializados, a aceleração da vida tradicional no campo, a emergência de organiza- ções assistenciais internacionais, a existência de grandes empresários, dentre outros, não fazem parte de um contexto a ser criticado de forma incisiva e profunda durante a narrativa.

Se, por um lado, José Gadelha figura como um grande proprietário, como um empregador do ramo do algodão, por outro, o espaço que ele ganha para discorrer sobre a sua presença supostamente benéfica para a região e a sua condição de sertanejo, como um dos filhos da região e da Paraíba, ameniza o conflito de interesses que parecia existir entre trabalhadores e capitalistas industriais quando do regime de meação. O modo como há um freio no teor crítico do filme – até então empenhado pelo caráter direto dos comentários em off e dos poemas que também

A p oé ti ca c om o i ns tr um en to d e c rí ti ca : o pa ís de S ão S ar uê 171 cumprem o papel de comentar as imagens – contribui para que a figura

de Gadelha esteja relativamente afastada da crítica claramente dirigida aos usineiros O empresário tem então o papel de uma espécie de empre- endedor dos benefícios que o desenvolvimento econômico pôde trazer à região. Em detrimento de acirrarem-se os conflitos, pois corresponde a uma concentração de capital que diz respeito ao processo de implan- tação do regime de produção capitalista no campo, a fortuna de figuras como José Gadelha parece amenizar a condição rústica, arcaica e, por- tanto, atrasada da região, imagem do sertão que acompanha a figura do camponês em todo o filme.

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