• Nenhum resultado encontrado

O SONHO DA RIQUEZA E A DESFETICHIZAÇÃO DO PROBLEMA DA SECA

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 173-179)

de crítica: o país de São Saruê

O SONHO DA RIQUEZA E A DESFETICHIZAÇÃO DO PROBLEMA DA SECA

O ciclo da mineração tem início na região do Rio do Peixe no ano de 1940, quando o pioneiro na extração de ouro na região, um humilde ro- ceiro lavrando a terra, encontra o minério ao acaso e dá início a uma espécie de mapeamento das áreas onde este pode ser encontrado. Pedro Alma é um senhor já idoso que conta sua história em entrevista, apre- sentando logo na primeira oportunidade a razão pela qual foi bastante breve a história da mineração na região.

Após a descoberta do ouro e reunião dos meios de produção para a extração do minério, com alguns proprietários de terra já se benefician- do com algumas extrações bem sucedidas, é expedida uma proibição do Estado à extração mineral no Rio do Peixe. Para ser legalizada qualquer retirada de minério na região, só descoberta pela ação dos camponeses, seria necessária, então, uma prévia regulamentação federal, a qual, se- gundo as informações de Pedro Alma, não foi definida e nem tampou- co divulgada pelos órgãos competentes aos paraibanos, sendo estes os donos das propriedades com vocação mineral e os que deveriam ser os mais diretamente beneficiados pela descoberta. O sertanejo lamenta a resposta do poder público, que segundo ele terminou prejudicando o próprio desenvolvimento da região e a ajuda que esta extração oferece- ria à população do nordeste: “Pelo menos aqui no nordeste, nessa imi- gração de fome, de seca e etc., ‘não é’[...] e temos tanta riqueza perdida

R od ri go O liv ei ra L es sa 172

debaixo de nossos pés, como na seca de sessenta e sete, eu vou contar esta para os senhores ‘vê’.” (CARVALHO, 1971)

O depoimento que segue ao do senhor Pedro Alma é o do ex-garim- peiro Zeca Inocêncio, que conta uma história bem parecida com a an- terior. Os descobridores das minas locais, as pessoas que se tornaram chefes das minas e que enriqueceram são relembradas nos depoimen- tos, oportunidade em que se relembra também o momento de grande aquecimento econômico na região, com benefícios para o comércio lo- cal, melhoria no serviço público e oportunidades de ocupação laboral, como conta o Sr. Zeca Inocêncio. (O entrevistador profere as perguntas ao camponês, mas não há como saber se este é Vladmir Carvalho ou ou- tro membro da equipe).

(Zeca Inocêncio) E o que eu conto do minério é isto. E então ‘adepois’, foi afracando, veio muita luz, luz muito boa na cidade. Veio [...] muita ‘arroz de gente’. [...] difusora tinha seis, padaria tinha seis, e budega era sem quantida- de – (Entrevistador) O que é budega? – (Zeca Inocêncio) Budega, casa de negócio, grandes ‘casa’ de negócio tinha. Agora, tudo isso veio abaixo. [...] veio muita riqueza, e hoje [...] ‘tamo’ tudo na probreza grande. – (Entrevistador) Por que não procuram o ouro? – (Zeca Inocêncio) Porque não tem ordem, não tem ordem, não tem licença de se tra- balhar. O caso é esse. [...] Agora nós não ‘temo’ a licença de trabalhar, ‘veve’ tudo ‘em riba’ da riqueza, mas tudo mor- rendo de pobre, tudo morto. (CARVALHO, 1971)

O filme, durante a fala de Zeca Inocêncio, traz imagens de lugares em que no passado se concentravam os trabalhos de mineração, nelas destacando-se: peças desmontadas das máquinas que serviam ao traba- lho jogadas ao chão seco e barrento; paredes tomadas pela vegetação; e trabalhadores que permaneceram na localidade, apesar do fim dos tem- pos áureos da mineração. Neste momento, um membro da equipe per- gunta ao ex-garimpeiro: o que deveria ser feito da mina?

(Entrevistador) E o que você acha que devia fazer com a mina? (Zeca Inocêncio) Era nós ‘pedir’ proteção a [...] nos- so governo, e nós trabalhar pra remir a pobreza, que lá a

A p oé ti ca c om o i ns tr um en to d e c rí ti ca : o pa ís de S ão S ar uê 173

capacidade de acumular cinco mil e tantas ‘pessoa’[...] de quarenta e dois [1942] a quarenta e cinco [1945] e nunca ninguém passou fome. – (Entrevistador) E era época de guerra, né? – (Zeca Inocêncio) Era época de guerra, era sim, senhor. (CARVALHO, 1971)

O solo paraibano, como conta o filme, registrava uma infinidade de ocorrências minerais, além do ouro: xelita, bauxita, tório, colombi- ta, dentre outros, despertando o interesse de agentes privados, pessoas comuns e também de prefeitos, interessados na atividade para criarem meios de emancipar seus municípios. No caso de particulares, pessoas comuns e habitantes da região, a narração em off pontua o fato de que a esperança da riqueza leva também a ilusões e fantasias por parte de pes- soas simples a respeito da presença de minérios em suas propriedades, como é o caso de Chateaubriand Suassuna, morador de Catulé do Rocha, município que faz divisa com o Rio Grande do Norte, a quem a equipe entrevista numa alusão a pessoas que vivem o delírio da possibilidade de enriquecerem com a esperança da presença de minérios valiosos em suas terras. É quando a voz off chama a atenção para o mito local de que estas terras teriam riqueza e fartura, largamente reproduzido, o que con- tribuiria para perpetuar a condição de miséria na região.

Há, por outro lado, o caso dos prefeitos, também ligados ao adven- to da mineração na região. A um desses prefeitos é concedido um im- portante espaço no filme. Sua entrevista é exposta sem nenhum tipo de interrupção, pergunta ou interpelação por parte da equipe. Pelo modo como serve de pano de fundo para um conjunto de imagens que retra- tam as situações mencionadas no depoimento do prefeito, garante mes- mo uma autoridade semelhante à que é concedida aos textos narrados em voz off pelo autores do documentário. O conteúdo da declaração, por sua vez, também toca nos principais dados, ideias e críticas apresen- tadas. A força do personagem protagonista, o trabalhador rural pobre, historicamente injustiçado, é reiterada, bem como a sua situação de mi- séria, que será agora analisada como fruto de uma situação de abandono por parte do poder público, tendo em vista os equívocos históricos co-

R od ri go O liv ei ra L es sa 174

metidos no que diz respeito à má distribuição das terras e a uma estru- tura agrária que não beneficia o homem do campo.

(Antônio Mariz) Como prefeito de uma cidade do sertão, vivo, com o povo desta área, o próprio drama do subde- senvolvimento. Para a prefeitura convergem todos os pro- blemas da população. Praticamente não se nasce, não se sofre, não se morre, sem que a prefeitura intervenha. [...]. Muitos pensarão, à primeira vista, que o problema do nor- deste é só o problema da seca, e raramente o problema das enchentes. Mas longe da seca e da enchente, muito mais grave é o problema da estrutura agrária. (CARVALHO, 1971)

As imagens que acompanham o conteúdo das declarações do pre- feito Antônio Mariz endossam abertamente as suas reflexões, razão pela qual seu conteúdo seguramente faz jus ao conteúdo da narrativa do filme de forma geral. A fala a respeito da necessidade e da extrema pobreza do sertanejo é reiterada na figura de pessoas humildes, crian- ças magras, doentes, sujas ou, em alguns planos, mortas, numa clara menção aos efeitos da mais completa falta de meios para o provimento da própria subsistência. O valor do sertanejo – sua força, humildade e irreverência – é contemplado por imagens de sua vida simples, de suas atividades, como remar uma canoa num pequeno riacho, da construção coletiva de pequenas casas, da sua presença em ocasiões públicas, como feiras e parques de diversões etc. Também neste momento, quando a fala do prefeito se encerra ao tempo em que uma música de fundo alia o conteúdo de suas palavras às imagens que irão dar fechamento ao filme, diversas imagens exibidas durante o filme retornam através da monta- gem, numa menção bem clara de que, nesta conclusão, foram recapitu- ladas as principais ideias e passagens do filme, realizando uma espécie de síntese da proposta da película. Os problemas do sertão, do trabalha- dor rural, seus embates, conflitos e as perspectivas de futuro aparecem aqui reunidos em uma versão final do que se captou na trajetória crítica da história do extremo oeste da Paraíba.

A p oé ti ca c om o i ns tr um en to d e c rí ti ca : o pa ís de S ão S ar uê 175 REFERÊNCIAS

A BAGACEIRA. Direção e Produção: Paulo Thiago. Intérpretes: Rejane Medeiros; Ney Sant’Ana; Nelson Xavier; Jofre Soares; Emanuel Cavalcante e outros. Rio de Janeiro: Embrafime, 1967. (88 min.), son., color., 35 mm.

A BOLANDEIRA. Direção e Produção: Vladimir Carvalho. [S. l.]: Nova Cine, 1968. (18 min.), son., 35 mm.

A PEDRA da riqueza. Direção e Roteiro: Vladimir Carvalho. Produção: Fernando Duarte. Intérpretes: Laurentino Santos. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1976. (16 min.), son., 35 mm.

ARUANDA. Direção e Roteiro: Linduarte Noronha. Produção: Rucker Vieira. Intérpretes: Paulino Carneiro. João Pessoa: INCE, 1960. (22 min.), son., 35 mm. CABRA marcado para morrer. Direção e Roteiro: Eduardo Coutinho. Produção: Zelito Viana. Intérpretes: Elizabete Altino Teixeira; João Virgilio Silva; José Daniel do Nascimento; Cícero Anastácio da Silva e outros. Rio de Janeiro: Gaumont do Brasil, 1964. (119 min.), son., color., 35mm.

CARVALHO, Vladmir. A heresia de São Saruê. In: ________. O país de são saruê: um filme de Vladmir Carvalho. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986. HOMENS do caranguejo. Direção: Ipojuca Pontes. Produção: Walter Carvalho; Arnaud Castro. Narração: Paulo Pontes. Rio de Janeiro: Saci Cinematografia, 1968. (19 min.), son. 35 mm.

O PAÍS de São Saruê. Direção e Roteiro: Vladmir Carvalho. Intérpretes: José Gadelha; Charles Foster; Pedro Alma e outros. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1971. (90 min), son., 35mm.

O CAJUEIRO nordestino. Direção e Roteiro: Linduarte Noronha. Rio de Janeiro: INCE, 1962. (25 min.), son. color., 35 mm.

OS ROMEIROS da guia. Direção: João Ramiro Mello; Vladimir Carvalho. Intérpretes: William Mendonça. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1962. (15 min.), son., 35 mm.

TOLENTINO, Célia A. F. Considerações finais: essa nossa ambiguidade. In: ________. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

Ca br a ma rc ad o pa ra m or rer : a h is tó ri a m ed ia da p el o c in em a 177

8

Cabra marcado para morrer:

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 173-179)