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O CINEMA NOVO E O CINEMA DOCUMENTÁRIO

No documento Cinema documentário brasileiro em perspectiva (páginas 128-134)

do cinema documentário brasileiro

O CINEMA NOVO E O CINEMA DOCUMENTÁRIO

Imbuído das críticas citadas anteriormente no âmbito do fazer cinema e da fé no cinema como meio fundamental de inovação estética e política, os fundadores do movimento do Cinema Novo no Brasil também rela- cionaram essas experiências na atividade cinematográfica para discutir questões artísticas e sociais, inseridos no contexto do imaginário revo- lucionário da época e do Estado totalitário. Esse cinema brasileiro deba- teu através das imagens temas concernentes ao momento: a pobreza, a ditadura militar, a guerrilha, o desenvolvimentismo, o subdesenvolvi- mento, a revolução. Além disso, os membros do Cinema Novo estavam

G la ub er R oc ha e a e st ét ic a d o c in em a do cu m en tá rio b ra si le ir o 127 também interessados em influir no processo político do país, tentando,

ao colocar o problema das mazelas sociais, ganhar a população para o processo revolucionário e com ela erigir uma saída histórica.

Esse é o diferencial dos efeitos do cinema moderno no Brasil e na América Latina na década de 1960, em relação às estéticas europeias. Ainda que tributária na construção da linguagem cinematográfica à Eu- ropa, os cinemanovistas confluíam tendências estéticas diversas, não somente do cinema. O Cinema Novo incorporou, dentre outras manifes- tações, a literatura do ciclo regional de 1930-45, a Semana de Arte Moder- na de 1922, o teatro brechtiano e o Tropicalismo. Uma outra diferença a ser destacada é, por exemplo, a diferença em relação ao neo-realismo (se- gunda metade dos anos 1940 e início dos anos 1950): o momento desse último é historicamente distinto do período do novo cinema na Améri- ca Latina (atuante principalmente nos anos 1960), bem como o local em que se conflagraram essas expressões. Enquanto um representava a Itália destroçada pela guerra; o outro construía um discurso político que visava concretizar a revolução, em consonância com os ideais das esquerdas do período. Como afirma o crítico da Cahiers du Cinéma, Marco Bollochio, citado por Figueiroa (2004, p. 155), em relação ao Cinema Novo brasilei- ro: “O Neo-realismo foi um movimento que exprimiu uma revolução já terminada quanto à sua fase crucial e vital; o novo cinema brasileiro é mais importante na medida em que pode provocar uma revolução.”

Há entre os integrantes do Cinema Novo dois sentidos convergen- tes, segundo seus adeptos: renovar a arte latino-americana enquanto um movimento artístico/cultural e permitir a militância política e a produ- ção intelectual, ligada na maioria das vezes ao pensamento de esquerda e aos anseios revolucionários da época. As diferenças de perspectiva de um cinema moderno no Brasil em relação ao cinema moderno na Euro- pa, por exemplo, se deve principalmente ao subdesenvolvimento.

Os cinemanovistas denunciam as condições de pobreza não só nos temas, mas também na própria forma, exibindo as deficiências técnicas dos filmes como um meio de explicitar as condições precárias de um ci- nema originado no Terceiro Mundo, como aponta Glauber Rocha (1981, p. 75): “Câmaras e laboratórios de segunda qualidade, por consequência,

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uma fotografia suja, um diálogo arrastado, ruídos, acidentes na monta- gem, as partes gráficas (genérico e legendas) sem clareza.” Esse cinema latino-americano concede “[...] lugar a uma sensibilidade fundamentada na simplicidade, na qual as desigualdades e os defeitos de imagem seriam vistos como consequência natural da pintura original das relações so- ciais.” (FIGUEIROA, 2004, p.155) O subdesenvolvimento é assim incorpora- do à identidade desse cinema, que tenta analisar por dentro a relação entre dependência econômica e as condições sociais das populações, e este sub- desenvolvimento se confirma como o dado essencial que define o cinema independente na América Latina e o distingue do novo cinema europeu. Portanto, podemos perceber como o grave problema da fome, da miséria e da dependência econômica dos países pobres instaurou, de modo diferen- te em relação aos países desenvolvidos, as propostas de um novo cinema. Essa distinção entre o cinema dos países desenvolvidos e o cine- ma dos subdesenvolvidos permite compreender como se deu de forma diferenciada a aplicação das ideias da renovação cinematográfica pelos jovens diretores. Por isso, há a preeminência de se distinguir o novo ci- nema do Cinema Novo. O primeiro representa o fenômeno mais amplo de renovação formal e estética pelo qual passaram os cinemas europeu, norte-americano e japonês nos anos 1950 e 1960; o segundo é a realiza- ção das propostas inovadoras desse novo cinema, seja ela técnica, for- mal ou estética, no cinema dos países pobres, com as especificidades dessas nações, abordando temas e questões próprias.

O Cinema Novo é, portanto, um segmento do novo cinema, repre- senta a expressão artística dos cineastas dos países subdesenvolvidos que colocaram nas telas o suposto discurso do povo pobre do chama- do Terceiro Mundo. O cinema torna-se o canal privilegiado para não somente apresentar os problemas sociais desses países, como também para discutir as possíveis soluções.

Com esse forte teor social, Glauber Rocha estabelece Humberto Mau- ro como a prefiguração desse Cinema Novo, pois esse diretor brasileiro de filmes de ficção e de documentários, já na década de 1920, introduzia uma nova linguagem a partir das precárias condições econômicas e da crítica ao fetiche da técnica na produção dos filmes, o que para Glauber

G la ub er R oc ha e a e st ét ic a d o c in em a do cu m en tá rio b ra si le ir o 129 Rocha era um indício da valorização do cinema artesanal, que veio a ser

uma das bandeiras do cinema dos países pobres. Por outro lado, Glauber Rocha também enxergava em Humberto Mauro uma representação lírica da paisagem física e social do Brasil, mas sem os afetos de um lirismo tra- dicional; um cinema consciente da realidade existente, mas sem perder a beleza, e, ao mesmo tempo, sem cair em uma abordagem estatística do real. Para Glauber Rocha, essa sensibilidade lírica foi utilizada pioneira- mente para retratar o país como objeto de estudo, destacando-se nessa tarefa a formação de uma identidade brasileira para o cinema. Para Glau- ber Rocha, portanto, é possível ver de modo prematuro na obra de Hum- berto Mauro as características que definem o chamado filme moderno, e mais especificamente o cinema moderno brasileiro, fundamentado em um modelo artesanal e preocupado com um registro esteticamente belo, mas concomitantemente comprometido com o real.

Essa matriz genealógica do Cinema Novo foi construída por Glauber Rocha e suas características foram identificadas nos primeiros filmes do movimento, os documentários Arraial do cabo (1959), de Paulo César Saraceni, e Aruanda (1960), de Linduarte Noronha. Esses dois filmes ini- ciam de fato uma nova tradição no Brasil de documentários que não se- guiam o formato equilibrado do seu gênero, como os jornais de cinema. O primeiro relata a situação de uma cidade pesqueira, Arraial do cabo, que passa por uma acelerada industrialização no litoral do estado do Rio de Janeiro, quando os pescadores da cidade litorânea sofrem com a ins- talação de uma fábrica responsável pela morte dos peixes. Segundo Sa- raceni, ele tentou mostrar a face do homem brasileiro, e é nesse sentido que Glauber Rocha, ao analisar o filme, defende que ele é brasileiro não somente por causa do tema, mas pela sua expressão original, no modo de filmar, como afirma Glauber Rocha (2003, p. 145-146):

Fiquemos certos que Aruanda quis ser verdade, antes de ser cinema: a linguagem como linguagem nasce do real, como em Arraial do cabo, e (Linduarte) Noronha e (Ru- cker) Vieira entraram na imagem viva, na montagem des- contínua, no filme incompleto. Aruanda, assim, inaugura o documentário brasileiro nesta fase de renascimento.

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Como também afirma Fernão Ramos (2004, p. 84) sobre o filme: “a temática e a imagem são novas, apesar da narração linear.” O segundo documentário versa a festa do Rosário em Santa Luzia do Sabugi, no Quilombo da Talhada, no sertão da Paraíba, apresenta a vida cotidiana de remanescentes dos quilombos. O filme possui as características de- fendidas por Glauber Rocha para o Cinema Novo, como afirma Bernadet (2007, p. 38):

Aruanda é a melhor prova da validade, para o Brasil, das idéias que prega Glauber Rocha: um trabalho feito fora dos monumentais estúdios (que resultam num cinema industrial e falso), nada de equipamento pesado, de re- batedores de luz, de refletores, um corpo-a-corpo com uma realidade que nada venha a deformar, uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, apenas.

Bernadet (2007) avalia ainda que o filme era de cunho antes de tudo sociológico e antropológico, mas que era também um filme poético so- bre a libertação de negros. Glauber Rocha de fato sublinha a importân- cia do documentário na definição do que deveria ser um cinema subde- senvolvido brasileiro.

Aquela identificação clássica do cinema brasileiro com o sertão nor- destino e com a população pobre do país sendo representada em suas atividades cotidianas e em seus costumes inicia-se a partir de então. O Cinema Novo foi o primeiro a refigurar essa realidade de modo cru, sem os adornos de uma filmografia comportada e harmônica, e o interesse era mostrar a distorção nas imagens para representar a fome de maneira mais inquietante possível, para senti-la na pele, o que ocorreu tanto no filme de ficção quanto no filme documentário. Entretanto, essa tendên- cia em perscrutar a realidade, acusar a miserabilidade a partir de uma pesquisa e tentar entender as origens dessas condições sociais, coloca a produção cinemanovista muito próxima ao cinema documentário, mesmo quando o diretor realiza uma obra ficcional. Assim, Glauber Rocha defende o documentário como prática fundamental para a cons- trução do filme ficcional, como meio de exercício da criatividade e de maior aproximação com a realidade reelaborada pela estética fílmica,

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os problemas sociais do país.

Entretanto, a ditadura militar de 1964 no Brasil, além de frustrar os anseios revolucionários da esquerda brasileira, destituiu parte desse ânimo cinemanovista ao colocar o cinema como um meio integrado de pesquisa social e de mobilização política, com a inviabilização da últi- ma, e os cineastas passaram a adotar atitudes mais cautelosas, como é o caso de Carlos Diegues, citado por Ramos (1983, p. 77):

[…] o golpe de abril correspondeu a um momento que o cinema brasileiro se aprofundava, isto é, saía daquela fase de puro intervencionismo social, de uma crônica paternalista da sociedade brasileira, e passava com Vidas secas, e mais violentamente com Deus e o diabo, a uma fai- xa antropológica de aprofundamento na própria cultura do homem brasileiro […] Isso exige, evidentemente, um recolhimento muito mais profundo do diretor enquanto intelectual, enquanto pensador, e o leva a uma faixa que independe do evento político momentâneo, a toda uma acumulação de tradição, culturas etc. Isso o movimento de abril não pôde alterar. […] Policialmente, nada pode se prever; politicamente não é um golpe de estado que vai alterar o que pensamos do Brasil; e culturalmente, esta- mos numa faixa muito mais profunda para que sejamos atingidos por uma coisa eventual.

Posturas como essa vão demarcar o fim do movimento na década de 1970, quando passa a ser comum acompanhar diretores tentando apre- sentar uma saída para o cinema que era político. Mas os argumentos não trazem novidades em termos estéticos e de tema, pois as expressões “fai- xa antropológica” e “aprofundamento da cultura do homem brasileiro” já eram designações utilizadas pelos cinemanovistas desde o início do movimento. Há um refluxo intenso nas propostas dos cineastas, com posicionamentos vazios e acríticos. A exceção é Glauber Rocha, que não abre mão de um cinema inovador esteticamente e que possuísse um interesse documental na realidade e que ao mesmo tempo fosse políti- co. Glauber Rocha, ao longo de sua carreira, mantém as características

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cinemanovistas, como: a improvisação, a fragmentação nas imagens, a referência revolucionária, a violência, a religião, os diálogos gritados, a temática sobre o Brasil, a denúncia sobre a miséria provocada pelo colo- nialismo antigo e moderno, entre outras. Esses elementos acompanham quase todos os seus filmes, desde Barravento (1961) até A idade da terra (1980), uma fidelidade não encontrada em outros cineastas do grupo.

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