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4. FILANTROCAPITALISMO E SUA INFLUÊNCIA NA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO

4.2. A ROUPA NOVA DO TERCEIRO SETOR: O FILANTROCAPITALISMO

A partir do final da década de 1980, o poder de compra cresceu muito rapidamente. Houve crescimento no valor das ações nos mercados internacionais e as transações na bolsa americana foram de 13,2 trilhões, em 1997 para 32,2 trilhões de dólares, em 2007, de acordo com Bishop e Green (2009). O crescimento americano foi expressivo e a globalização transformou países pobres em tigres econômicos (BISHOP; GREEN, 2009).

62 A Lei n.º 12.101/09 prevê a isenção das contribuições para a seguridade social por parte de pessoas

jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que ofereçam atividades nas áreas de assistência social, saúde ou educação. Na área de educação, são requisitos para a obtenção da isenção: oferecer 1 bolsa de estudos integral para cada 5 alunos pagantes, além de atender às metas do PNE e atender ao mínimo de qualidade nas avaliações em larga escala. Especificamente em relação à educação integral, a Lei prevê que 25% das bolsas de estudos podem ser destinadas à garantia de educação em tempo integral para alunos matriculados na educação básica (Art. 13 §3). Alguns trechos desta lei foram declarados inconstitucionais em março de 2020 (Adin 4480). Por ser muito recente, consideraremos como válida a legislação dentro do período estudado.

Apesar do crescimento da riqueza, o abismo entre os mais ricos e os mais pobres também vem crescendo. A intensificação dos processos de globalização e queda das barreiras comerciais entre países (não sem controvérsias) fez com que as empresas ampliassem seus mercados e, com isso, sua riqueza. Setores como tecnologia da informação e serviços financeiros cresceram mais rapidamente que a economia como um todo, alavancados pelas ondas de inovações que fizeram um grupo de empreendedores se tornarem ricos. (BISHOP; GREEN, 2009).

Porter e Kramer (1999) afirmam que entre 1980 e 1999 o número de instituições de caridade americanas dobrou, enquanto seu valor de investimento aumentou em mais de 1.100%, chegando a um valor anual de mais de US$ 20 bilhões em organizações que atuam nas áreas educacional, humanitária e cultural, dentre outras63. E esse crescimento deve-se a uma mudança na sociedade, na qual as

fundações, por serem “livres de pressões políticas”, tornaram-se as responsáveis por soluções para os problemas sociais. Ball e Olmedo (2011) afirmam que a relação entre empresas, filantropia64 e a política, especialmente a educacional têm se organizado e

relacionado vem mudando, devido ao “capitalismo social global”. Essa nova situação tem redesenhado os modelos e relações políticas, redefinindo as redes já existentes. No Brasil, de acordo com informações do IBGE, o número de instituições sem fins lucrativos65 aumentou 3,4 vezes entre 1980 e 2000. E de 2001 a 2016, o

número dobrou, chegando a aproximadamente 240 mil66 instituições atuando no

Brasil, nas diversas áreas, conforme gráfico:

63 Silva (2017) analisa a diferença entre as doações feitas nos Estados Unidos e no Brasil, concluindo

que há grande diferenças de valores e formas de caridade entre os dois países. Tais diferenças se devem, entre outros fatores, aos modelos de colonização, ideologias políticas, estrutura de governo, “tradições” e identidades populares, além da legislação. Em que pesem as diferenças, as semelhanças entre o que aconteceu (e ainda acontece) no contexto norte-americano e o modelo de filantropia (ou investimento social) que vem acontecendo no Brasil são muito grandes, sendo possível realizar a análise sob esta perspectiva.

64 Silva (2017, p. 12) afirma que o termo filantropia, atualmente, não é muito utilizado pelos empresários

brasileiros, sendo mais comum “investimento social privado” que é parte da “Responsabilidade Social Corporativa.” Neste trabalho, no entanto, continuaremos denominando as ações das fundações como filantropia.

65 Inclui fundações, associações e institutos.

66 A metodologia do IBGE exclui do universo de entidades consideradas filantrópicas e sem fins

lucrativos as que pertençam aos seguintes subgrupos: Caixas escolares e similares; Partidos políticos; Sindicatos, federações e confederações; Condomínios; Cartórios; Sistema “S”; Entidade de mediação e arbitragem; Comissão de conciliação prévia; Conselhos, fundos e consórcios municipais; e Cemitérios e funerárias.

Gráfico 3 – evolução do número de instituições sem fins lucrativos no Brasil

Fonte: IBGE (2019). Elaborado pela autora. Inclui associações, fundações, institutos, ONGs e outras

entidades sem fins lucrativos.

Concordamos com Bishop e Green (2009) sobre a importância de analisar esses dados não só pelo aumento no número de instituições67, mas na mudança em

suas características de atuação. Não é mais suficiente “fazer o bem”, a nova estrutura das instituições deve pensar estrategicamente para fazer melhor, criar valor real para a sociedade, termo que vai muito além da quantidade de recursos doados, como pode ser visto nos recortes a seguir:

67 Conforme citado anteriormente, nesta pesquisa utilizaremos o termo instituições, independente de

sua constituição jurídica. 0 50000 100000 150000 200000 250000 Até 1980 1981-1990 1991-2000 2001-2010 2011-2016

Figura 1 – reportagem do Jornal Folha de São Paulo, destacando o crescimento do número de

instituições sem fins lucrativos no Brasil em 2008

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2705200832.htm. Acesso em 4 fev. 2020.

Montagem de imagens adaptadas pela autora e correspondem ao texto original.

Essa nova exigência, de gerar impacto das instituições deve-se, principalmente, a um movimento iniciado nos Estados Unidos — e já com adesão de bilionários do mundo todo, o qual Bishop e Green (2009) chamam de filantrocapitalismo.

Os filantrocapitalistas, de acordo Bishop e Green (2009) e Ball e Olmedo (2011), são bilionários preocupados com a grande diferença social no mundo contemporâneo. Através da doação (investimento) de parte de suas fortunas, eles acreditam que podem auxiliar na redução das diferenças sociais, especialmente em países mais carentes, consideram-se aptos a realizar ações para salvar crianças pobres de doenças e problemas erradicados nos países ricos.

O movimento filantrocapitalista surgiu em um encontro de super-ricos norte- americanos cuja principal razão era trocar experiências e discutir ideias para a filantropia após a queda da economia norte-americana em 2008, além criar estratégicas para encorajar mais milionários e o público em geral a doarem. Para os autores, o mundo mudou após esse colapso, o que fez as ideias de filantrocapitalismo ainda mais presentes, inclusive no Brasil:

Figura 2 – matéria sobre filantropia e investimento de impacto no Brasil

Fonte: https://valorinveste.globo.com/produtos/fundos/noticia/2019/12/11/puxados-por-herdeiros- filantropia-e-investimento-de-impacto-ganham-relevo-no-wealth-management.ghtml. Acesso em 20 ago. 2020.

A crise econômica de 2008 também levou os filantrocapitalistas, através de instituições com ou sem fins lucrativos a usarem cada dólar recebido, efetivamente, aplicando o “Guia do bom bilionário”68. Não basta apenas uma pessoa rica assinar um

cheque e obter aprovação pública, eles devem responder questões como a legitimidade de sua riqueza, o pagamento de impostos e se as doações são realmente feitas de forma a fazer a diferença. E, mais do que nunca, filantrocapitalistas

68 Uma espécie de “contrato” entre os super-ricos e o restante da população, definindo regras claras na

estão focados em estratégia, destinando recursos onde eles fazem a grande diferença, medindo o impacto com mais eficiência, encontrado parceiros para trabalhar e incentivando as organizações sem fins lucrativos em que eles investem para colaborar mais e em alguns casos até se unam.69” (BISHOP; GREEN, 2009, s/p, tradução minha).

A atuação na filantropia é a mesma dos negócios: investimento para se obter retorno, de preferência, financeiro. Para Bill Gates, “onde os estados, as multilaterais e as ONGs tradicionais fracassaram, o mercado pode ter sucesso.” (BALL; OLMEDO, 2011, p. 36). Para os autores, essa nova forma de filantropia atenua, intencionalmente, a linha que separa os negócios e empresas privados e o setor público, enfraquecendo o papel das organizações tradicionais.

Ao mesmo tempo em que os filantropos individuais estão adotando o lucro como motivação, um número crescente de grandes empresas com fins lucrativos está pegando o problema do filantrocapitalismo e transformando em doações - ou pelo menos tentando fazer o bem. [Bill] Gates vê isso como potencialmente o início de uma “Inovação do sistema” em como os negócios operam, o que ele chama de “capitalismo criativo.”70 (BISHOP; GREEN, 2009 p. 7, tradução minha).

Se, nos negócios, filantrocapitalistas pensam grande e em grande escala e acreditam que como isso dá certo para ganhar dinheiro, por que não daria para melhorar os resultados das doações? Eles estão sempre procurando aproveitar o lucro para atingir benefícios sociais, o que, de acordo com Bishop e Green (2009) é, no mínimo, controverso, uma vez que a filantropia deveria ser baseada em doações e não em criação de soluções lucrativas.

À MEDIDA EM QUE aplicam seus métodos de negócios à filantropia, os filantrocapitalistas estão desenvolvendo uma nova linguagem (se soar familiar) para descrever sua abordagem profissional. Sua filantropia é "estratégica", "consciente do mercado", "orientada para o impacto", "baseada no conhecimento", geralmente "de alto engajamento" e sempre impulsionada pelo objetivo de maximizar a "influência" do dinheiro do doador. Vendo-se como investidores sociais, não doadores tradicionais, alguns deles se envolvem em "filantropia de risco". Como empresários filantrópicos, eles adoram empreendedores sociais que ofereçam soluções inovadoras para os problemas da sociedade71. (BISHOP; GREEN, 2009, p. 6, tradução minha,

destaque no original).

69 “philanthropists are being focused and strategic, targeting resources on where they make the biggest

difference, measuring impact more effectively, finding partners to work with, and encouraging those Nonprofits they invest in to collaborate more and in some cases even to merge.”

70 "At the same time as individual philanthropists are embracing the profit motive, a growing number of

big for-profit businesses are catching the philanthrocapitalism bug and getting into giving—or at least trying to do good. Gates sees this as potentially the start of a “system innovation” in how business operates, which he calls “creative capitalism.”

71 AS THEY APPLY their business methods to philanthropy, philanthrocapitalists are developing a new

(if familiar-sounding) language to describe theis businesslike approach. Their philantropy is "strategic", "market conscious", "impact-oriented", "knowledge based", often "high engagement" and always driven

A atuação dos filantrocapitalistas é um desafio para os governos, os quais deixam, cada vez mais, algumas ações nas mãos desses grupos, em vez de aumentarem a cobrança de impostos e reafirmar a posição do Estado na redução das desigualdades. Para Bishop e Green (2009) os Estados sabem a dificuldade de taxar os super-ricos e a necessidade de atraí-los, uma vez que através de suas atividades, possibilitam o desenvolvimento da economia do país.

Bishop e Green (2009) apontam, ainda, que com problemas de ordem mundial crescendo, como o terrorismo e as questões ambientais, governos tanto de direita como de esquerda agradecem essa ajuda dos ricos. E os ricos acreditam que se não assumirem essa responsabilidade, podem provocar a população a terem uma reação política que vá contra o sistema econômico que os permitiu tornarem-se ricos. Para Ball e Olmedo (2011) outra característica dos novos filantropos é a busca por grandes desafios, recorrendo a “receitas mágicas”, ou seja, soluções (geralmente de aplicação rápida e de baixo custo) que eles acreditam servirem para qualquer situação, independente da realidade de cada País as quais, muitas vezes, envolvem o uso de tecnologias específicas. No entanto, os autores destacam que essa padronização de ações substitui questões cruciais para a elaboração de políticas públicas – ‘como’, ‘por que’, ‘para quem’, pela preocupação com ‘quanto’, ‘quando’ e ‘qual o menor prazo’.

Os novos doadores acreditam que a caridade é mal aplicada, muitas vezes, servindo apenas para satisfazer o ego de quem doa, ou no caso das empresas, formalizar as ações de “responsabilidade social”. Nessa “nova fase” da filantropia mundial, o objetivo das doações deve ser “ajudar as pessoas a se ajudarem”. O grupo, segundo Bishop e Green (2009) se equipara aos tecnocratas72 nos anos 1970. "Hoje,

são cada vez mais os empreendedores, não os tecnocratas, que formam a elite do poder.73” (BISHOP; GREEN, 2009, p. 49, tradução minha).

Porter e Kramer (1999) apresentam quatro abordagens que aumentam o valor da doação, servindo como estratégia de ação:

by the goal of maximizing the "leverage" of the donor´s money. Seeing themselves as social investors, not traditional donors, some of them engage in "venture philanthropy". As entrepeneurial "philanthropreneurs", they love to back social entrepreneurs who offer innovative solutions to society´s problems. p. 6

72 De acordo com Bishop e Green (2009) os tecnocratas eram representantes da elite econômica norte-

americana que tinham cesso ao governo e que dominavam tanto a economia como a política, principalmente no período entre o fim da 2ª Guerra Mundial e o início dos anos 1980.

1. Seleção dos melhores beneficiários – as organizações que são mais eficientes no retorno social ou as que trabalham com assuntos mais urgentes ou negligenciados;

2. Atração de novos doadores – como um avanço da primeira estratégia, as fundações, ao avaliarem adequadamente os projetos que apoiam, conseguem atrais novos investidores para suas ações;

3. Promoção de pesquisas e de práticas – que sejam projetos com formas mais eficazes e práticas de abordar os problemas sociais. Embora as fundações reconheçam a importância desta área para a melhora efetiva dos problemas sociais, menos de 10% dos recursos são investidos em pesquisas e inovações;

4) Melhorar o desempenho dos beneficiários – as fundações podem aumentar o retorno social ao passarem do papel de provedor de recursos para o executor direto das ações, tornando-se uma parceira engajada. “Trabalhar diretamente com os donatários para melhorar o desempenho é, portanto, um uso mais poderoso de recursos escassos do que selecionar beneficiários ou sinalizar outros financiadores.” (PORTER; KRAMER, 1999, s/p).

De acordo com Bishop e Green (2009) a melhoria na educação é o maior alvo da caridade dos super ricos, mas a soma investida pelos governos é muito maior, o que força os filantrocapitalistas a serem criativos para realmente fazerem a diferença. Ainda de acordo com Bishop e Green (2009) Bill Gates, para colocar suas ideias em prática, começou usando algumas escolas como exemplo, para que servissem de inspiração, até que percebeu que isso não funcionaria se ele não tentasse mudar as estruturas nas quais as escolas funcionam, como o sistema educacional Nova Iorquino inteiro. “[....] A abordagem de Gates normalmente funciona desta maneira: a fundação define a política e fornece financiamento, mas outros fazem o trabalho no local.74 (BISHOP; GREEN, 2009, p. 57, tradução minha).

Movimento semelhante vem acontecendo no Brasil:

74 We needed to figure out what things we could do that would flip the system. The Gates approach

typically works this way: the foundation sets policy and provides funding, but others do the work on the ground.

Figura 3 – matéria sobre a importância do terceiro setor

Fonte: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/compliance-investimento-social-e-terceiro-

setor/. Acesso em 20 jun. 2020

A matéria, publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, em 23 de abril de 2019, mostra a preocupação das instituições em melhorar os métodos e ferramentas de gestão, para tornar a organização cada vez mais confiável e atrair mais doadores — investidores, sejam pessoas físicas ou jurídicas. Nas palavras da reportagem:

“[...] o uso do termo “investidores” não se dá ao caso. Empresas e pessoas comuns que aplicam recursos em entidades assistenciais querem saber se seus investimentos darão o “lucro” pretendido, que é retorno em melhorias das condições das pessoas e da sociedade brasileira.” (WILIANS, 2019, s/p).

A estratégia de ação, assim como no setor empresarial, é fundamental para que a instituição filantrópica utilize menos recursos e contribua de maneira eficiente para a solução dos problemas a que se propõe. Dentre essas estratégias Porter e Kramer (1999) destacam a criação de metas e a comparação dos resultados obtidos com outras fundações ou com seus próprios resultados anteriores, a focalização e especialização da abordagem e da área de atuação e a apuração e divulgação dos resultados obtidos.

Esta última estratégia tem se tornado bastante comum na educação brasileira, com a participação efetiva de algumas instituições filantrópicas em processos de melhora de gestão e desempenho escolar, cujos filantropos querem ver o investimento que foi feito em resultados mensuráveis em tempo e dinheiro. (BALL; OLMEDO, 2011).