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4. FILANTROCAPITALISMO E SUA INFLUÊNCIA NA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO

4.4. GOVERNANÇA FILANTRÓPICA NAS REDES ESTADUAIS DE ENSINO

A educação é um dos principais focos de atuação das organizações do terceiro setor, já há algum tempo, como pode ser observado na reportagem da Folha de São Paulo, de 21 de maio de 2003:

Figura 5 – matéria sobre atuação do terceiro setor na educação

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2105200312.htm. Acesso em 10 ago. 2020.

Montagem de imagens adaptadas pela autora e correspondem ao texto original.

Estas ações, conforme destaque da reportagem, incentivam a criação de políticas públicas para a educação, dentre as quais Adrião e Garcia (2016) destacam: os processos de municipalização, a implementação das avaliações de larga escala, a bonificação por resultados dos professores a unificação do currículo, com a elaboração de apostilas para alunos e professores e a participação de instituições privadas, com destaque para as instituições filantrópicas ligadas a grandes empresas como parte das ações promovidas pelas reformas do Estado. Nesse mesmo sentido, Barroso (2005) aponta que

[...] na educação, se promovem, se discutem e se aplicam medidas políticas e administrativas que vão, em geral, no sentido de alterar os modos de regulação84 dos poderes públicos no sistema escolar (muitas vezes com

84 O autor define regulação como uma forma de ajuste da ação às regras e normas preestabelecidas.

Associa também o conceito de regulação ao “[...] controlo [sic] de elementos autónomos [sic] mas interdependentes [...]”. Desta forma, entendemos que o conceito se aplica à análise das redes políticas,

recurso a dispositivos de mercado), ou de substituir esses poderes públicos por entidades privadas, em muitos dos domínios que constituíam, até aí, um campo privilegiado da intervenção do Estado. Estas medidas tanto podem obedecer (e serem justificadas), de um ponto de vista mais técnico, em função de critérios de modernização, desburocratização e combate à “ineficiência” do Estado (“new public management”), como serem justificadas por imperativos de natureza política, de acordo com projectos neoliberais e neoconservadores, com o fim de “libertar a sociedade civil” do controlo do Estado (privatização), ou mesmo de natureza filosófica e cultural (promover a participação comunitária, adaptar ao local) e de natureza pedagógica (centrar o ensino nos alunos e suas características específicas). (BARROSO, 2005, p. 726).

Existe uma mudança da concepção da relação entre caridade, auxílio e lucro, com relação mais direta dos doadores com as comunidades políticas e uma utilização mais focada dessas doações. As fundações empresariais, familiares e individuais têm substituído as entidades da sociedade civil, as governamentais e até mesmo as estatais no campo da política educacional, indicando deslocamentos e mudanças mais amplas nos métodos e mecanismos de governança (OLMEDO, 2013), conforme reportagem destacada na figura 6:

Figura 6 – matéria publicada pela folha de São Paulo

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/sinapse/sa3008200505.htm. Acesso em 10 ago. 2020.

Montagem de imagens adaptadas pela autora e correspondem ao texto original.

A mesma situação é apresentada no documento elaborado pelo Gife intitulado Avaliação para o investimento social privado: criar condições antes de

as quais desenvolvem processos ativos de produção de “regras do jogo”, ou seja, indicam a adequação das regras e normas e seu ajustamento de acordo com as ações dos atores.

avaliar (VARGAS; SILVA, 2017), o qual destaca-se a necessidade “[...] fundamental ter uma cultura de avaliação instalada nas diversas instâncias que caracterizam uma intervenção no investimento social privado – investidor, gestor, implementador.” (VARGAS; SILVA, 2017, p. 14, destaques meus)85. O documento faz uma crítica à

filantropia tradicional, como os filantrocapitalistas norte-americanos, ao afirmar que

a própria construção do campo do investimento social no Brasil deriva da confluência de uma tradição filantrópica, pouco orientada pela

mensuração de impacto, com a prática empresarial, habituada a métricas

de monitoramento e de avaliação, e principalmente, a gerar resultados de curto prazo. Aqui se situa um desafio bastante relevante: sabe- -se que o tempo das transformações sociais não é mesmo tempo dos negócios. (VARGAS; SILVA, 2017, p. 20, grifos meus).

A crítica ao modelo tradicional de filantropia está presente em muitos dos textos divulgados pelo Gife. Para Olmedo (2013) este novo grupo de atores políticos, que inclui empreendedores de risco, empreendedores sociais, defensores de políticas neoliberais e as instituições filantrópicas, especialmente aquelas ligadas a grandes empresas, têm atuado junto à formulação de políticas, embora sua agenda e influência estejam sendo subestimadas.

Neste sentido, Ball e Olmedo (2011) afirmam que

[...] Essa nova situação tem implicações conceituais e práticas em relação ao conceito de democracia e à fonte e agência da formulação de políticas na esfera pública. É a isso que nos referimos como ‘governança filantrópica’, enfatizando como, através de sua ação filantrópica, esses atores são capazes de modificar significados, mobilizar ativos, gerar novas tecnologias de políticas e fazer pressão ou até mesmo decidir sobre a direção da política em contextos específicos. (BALL; OLMEDO, 2011, p. 39-40).

Essa atuação das instituições ligadas a grupos empresariais na educação, muito comum nos países centrais, passa a ser mais efetiva, no Brasil, principalmente a partir de 2007, com a implementação do Programa Mais Educação e a educação integral, conforme apresentado anteriormente. Em um levantamento86 realizado em

2017, primeiro ano de implementação do Programa “Novo Mais Educação”, encontramos as seguintes parcerias entre as secretarias estaduais e as organizações sem fins lucrativos:

85 O Gife tem uma série de documentos publicados pelas organizações filantrópicas com orientações

sobre como “investir” em educação e captar recursos do governo: “Empreendedores de impacto: as dores e as delícias de inovar em educação”; “Guia prático: como fazer monitoramento social e incidir em políticas públicas”; “Trabalhando com o governo: um guia para investidores sociais”; entre outros. Estão disponíveis em https://sinapse.gife.org.br/. Acesso em 28 jun. 2020.

Quadro 4 – instituições filantrópicas que atuavam nas secretarias estaduais de educação em 2017

Fundação/Instituto Estados Regiões

Cenários Pedagógicos BA, PE Ne

Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária - CENPEC

PA, BA, PE, GO N, Ne, CO

Centro de Referências em

Educação Integral - CREI AL, BA Ne

Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável - CIEDS

BA, PE Ne

Educação e Participação RR, PA, GO N, CO

Flacso Brasil BA, PE Ne

Fundação Bradesco PE Ne

Itaú Social PA, BA, PE, GO N, Ne, CO

Fundação Leman SP, PB Se, Ne

Fundação SMA BA, PE Ne

Fundação Telefônica Vivo AL, SE, PB, ES, MG, PA,

SE, SP N, Ne, S

Instituto Alana BA, CE, GO Ne, CO

Instituto Aliança CE, PR Ne, S

Instituto Ayrton Senna CE, SC, RJ Ne, S, Se

Instituto C&A BA, PE Ne

Instituto de Corresponsabilidade pela Educação - ICE

RO, TO, SE, GO, ES, CE,

PI, MA, PB, PE, SP N, Ne, CO, Se

Inspirare AL, BA, PB, PE, SE Ne

Instituto Natura RO, TO, BA, CE, MA, PB, PE, SE, GO, SC, PE, SP

N, Ne, CO, S, Se

Oi Futuro BA, PE Ne

Instituto Porvir SP Se

Instituto Rodrigo Mendes BA, PE Ne

Instituto Sonho Grande RO, TO, GO N, CO

Movimento de Apoio à Integração

Social - MAIS BA, PE Ne

Parceiros da Educação SP Se

Fonte: sites das fundações e institutos, secretarias estaduais de educação e diários oficiais. Elaborado

pelas pesquisadoras do Gepale.

Algumas dessas instituições fazem parte de associações como a Fundação Gerações, Instituto do Desenvolvimento Social Privado – IDIS, Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais – Abong e Grupo de Institutos Fundações e Empresas – Gife, que atuam no apoio técnico e auxílio de parcerias, formando redes de governança, ou heterarquias, de acordo com Jessop (2003; 2016).

[...] têm tornado atores políticos fundamentais não somente em atividades de provisão, mas também na concepção, promoção, e negociação de processos de políticas em todas as áreas e domínios da atividade humana, incluindo a reorganização e promulgação dos serviços públicos, ação cívica, e desenvolvimento comunitário. (OLMEDO, 2013, p. 482-483).

Na análise do quadro 4 podemos perceber que 26 instituições filantrópicas atuavam junto às Secretarias Estaduais de Educação no ano de 2017. Conforme apontam Camargo, Bernardes e Jeffrey (2018) as principais formas de atuação destas instituições eram: assessoria para elaboração e implementação das políticas de educação integral, apoio na produção de material didático-pedagógico, oferta de ações de capacitação dos profissionais da educação e desenvolvimento de “tecnologias educacionais” de acompanhamento pedagógico, entre outras.

Quando separadas por regiões administrativas, podemos observar a seguinte distribuição:

Quadro 5 – distribuição das instituições filantrópicas que atuavam junto às Secretarias estaduais de

educação em 2017, separadas por regiões administrativas.

Região Norte (8)

• CENPEC

• Educação e Participação • Fundação Itaú Social • Fundação Telefônica Vivo

• Instituto de Co-Responsabilidade Social - ICE

• Instituto Natura

• Instituto Sonho Grande

Região Nordeste (20)

• Cenários Pedagógicos • CENPEC

• Centro de Referências em Educação Integral - CREI

• Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável - CIEDS

• Flasco Brasil • Fundação Bradesco • Fundação Itaú Social • Fundação Lemann • Fundação SMA

• Fundação Telefônica Vivo

• Instituto Alana • Instituto Aliança • Instituto Ayrton Senna • Instituto C&A • Instituto de Co-Responsabilidade Social - ICE • Instituto Inspirare • Instituto Natura • Instituto Oi

• Instituto Rodrigo Mendes Movimento de Ação e Interação Social - MAIS

Região Sudeste (6)

• Fundação Lemann • Instituto Ayrton Senna

• Instituto de Co-Responsabilidade Social - ICE • Instituto Natura • Instituto Porvir • Parceiros da Educação Região Centro- Oeste (7) • CENPEC • Educação e Participação • Fundação Itaú Social • Instituto Alana

• Instituto de Co-Responsabilidade Social - ICE

• Instituto Natura

• Instituto Sonho Grande

Região Sul (4)

• Fundação Telefônica Vivo

• Instituto Aliança • Instituto Ayrton Senna • Instituto Natura

No quadro 5 é possível verificar que em todas as regiões administrativas do país havia algum tipo de instituição filantrópica atuando junto ao Estado no ano de 2017, com destaque para o Instituto Natura, que aparece em todas as regiões, enquanto Cenários Pedagógicos e Parceiros da Educação apareciam em uma região, cada.

Quando observamos os números de distribuição das instituições filantrópicas nos Estados, verificamos que a maioria se encontrava na região Nordeste, assim distribuídos:

Tabela 1 – distribuição, por Estado, das instituições filantrópicas que atuavam junto às

Secretarias Estaduais de Educação no ano de 2017

BRASIL

TOTAL RELAÇÃO DOS ESTADOS PROPORÇÃO

23

AC, AL, AP, BA, CE, ES, GO, MA, MT, MS, MG, PA, PB, PE, PI, RJ, RN, RO,

RR, SC, SE, SP, TO

100%

NORTE 6 AC, AP, PA, RO, TO, RR 26,1%

NORDESTE 9 AL, PB, CE, PE, MA, PI, SE, BA, RN 39,1%

SUDESTE 4 MG, SP, RJ, ES 17,4%

CENTRO-OESTE 3 GO, MT, MS 13%

SUL 1 SC 4,3%

Fonte: Jeffrey e d´Avila (2019). Adaptado pela autora.

Na tabela 2 podemos verificar que apenas os Estados de Amazonas, Rio Grande do Sul, Paraná e o Distrito Federal não realizaram parcerias com as instituições filantrópicas no ano de 2017.

Na análise dos dados podemos perceber a grande quantidade de instituições não governamentais que estão atuando junto aos governos. A aprovação da resolução que dispõe sobre os ADEs e a implementação do Programa Mais Educação, o qual prevê a oferta da educação em tempo integral no território brasileiro possibilitou constituição de arranjos colaborativos horizontais entre entes federativos e instituições não-governamentais, efetivando a governança filantrópica, na efetivação das políticas de educação integral.

Na próxima seção faremos uma análise dos documentos produzidos pela rede política, com as secretarias estaduais de educação, analisando os discursos e as formas de atuação que as unem.

5. REDES POLÍTICAS E A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DA QUALIDADE NA