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PARTE II – O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA PESQUISA CLÍNICA DE

CAPÍTULO 4 – DO DIREITO À SAÚDE 77

4.1 A SAÚDE: CONCEITO E ALCANCE 77

O paradigma saúde versus doença cristalizou a ciência médica por um longo período da história. A saúde como oposto de doença se mostrava uma conceituação óbvia do ponto de vista prático, além de ser “conceitualmente confortável e metodologicamente viável”167. Entretanto, denominar saúde como a mera ausência de doença mostra-se uma ideia um tanto quanto ultrapassada, desprovida do alcance real que o conceito pressupõe. A esse respeito, a opinião de Almeida Filho, médico epidemiologista é esclarecedora:

Não há qualquer base lógica para uma definição negativa de Saúde, tanto no nível individual quanto no coletivo, mesmo em suas versões aparentemente mais avançadas e completas. [...] Em uma perspectiva rigorosamente clínica, portanto, a Saúde não é o oposto lógico de doença e, por isso, não poderá de modo algum ser definida como ausência de doença.168

Como demonstração da superação da ideia de saúde como ausência de doença a conceituação apresentada pela OMS em 1946 alargou, evidentemente, o conceito de saúde ao considerar “saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade”169.

In verbis:

167 ALMEIDA FILHO, Naomar de. O conceito de saúde e a vigilância sanitária. Brasília: Anvisa,

2000. p. 6.

168 Ibid., p. 7-8.

169 Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1946. Disponível em:

http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da- organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acesso em: 10.dez.2016.

[...] um estado de completo bem-estar, físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde constitui um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.170

Este conceito, muito embora criticado171, possibilitou a abertura de novos caminhos para a consagração não apenas da saúde humana, mas também da vida digna e saudável. As críticas fundamentaram-se na ideia de que o conceito apresentado pela OMS era irreal, ultrapassado e unilateral172, ou seja, dotado de

tamanha subjetividade que o impossibilitava de conceder delimitação prática, restringindo-o a uma utopia.

Embora criticado, não há como negar a evolução e a amplitude do conceito trazido pela OMS. Contemporaneamente, a ideia de saúde está diretamente relacionada ao completo bem-estar físico, mental e social, porém, de uma forma dinâmica. Trata-se, hoje, na visão de alguns autores, de um processo construtivo do chamado estado de bem-estar, o qual não é estático, tampouco universal. O conceito de saúde poderá ser, ainda, regionalizado a depender da cultura, dos dados epidemiológicos e demais condições de determinada sociedade.

Dessa assertiva, é possível afirmar que “a saúde é, pois, um processo que se constrói”.173 Trata-se, portanto, da “busca contínua pelo ‘equilíbrio entre influências ambientais, modos de vida e os vários componentes’”174. Nesse mesmo sentido, Claude Dejours, ao afirmar que não existe o estado completo de bem-estar, define que saúde deve ser entendida como a busca constante de tal estado.175

170 Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1946. Disponível em:

http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organização-Mundial-da-Saúde/constituicao-da- organizacao-mundial-da-saude-omswho.html . Acesso em 10.dez.2016.

171 “Em 1946, talvez buscando uma terapêutica para o zeitgeist depressive do pós-guerra, a

Organização da Saúde reinventou o nirvana e chamou-o de saúde” (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 7).

172 Id.

173 SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: abordagem sistêmica, risco e democracia. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 2, n. 1, 2001, p. 31.

174 ROCHA, Júlio César de Sá. Direito da saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses

difusos e coletivos. São Paulo: LTr, 1999. p. 43.

175 DEJOURS, Christopher. Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde ocupacional, n. 14, v. 54, p. 7-11, 1986.

O alcance do conceito de saúde possui extensão que supera o âmbito médico e fisiológico e envolve, por consequência, a interação com outros setores da vida dos indivíduos. Inclui-se na ideia de saúde a interação e o equilíbrio com o meio social, o meio ambiente, o meio cultural e o corpo físico, conforme preceitua Alessandro Seppilli que define saúde como “a condição harmoniosa de equilíbrio funcional, físico e psíquico do indivíduo integrado dinamicamente no seu ambiente natural e social”176.

Tantos são os âmbitos que envolvem a saúde que a Declaração Universal dos Direito do Homem, em seu art. 25, apresenta que:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma proteção social.

A Lei 8.080/90, conhecida como Lei Orgânica da Saúde (LOS), em seu art. 3º, dispõe no mesmo sentido ao determinar que saúde é a conjunção de diversos setores da vida individual e social.

Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.

De tal sorte, conceituar saúde restringindo-a a mera profilaxia, tratamento e controle de doenças configura um grande equívoco. Muito diferente disso, a saúde possui um conceito polifacético177, dividido em três faces prontamente detectáveis:

individual, coletiva e de desenvolvimento. No conceito adotado por Sueli Gandolfi e Vidal Serrano, diferentemente de alguns autores que preceituam a existência de apenas duas faces ao conceito de saúde – individual e coletiva –, temos que a saúde apresentar-se-á com três faces determináveis:

[...] a saúde depende, ao mesmo tempo, de características individuais físicas e psicológicas, mas, também do ambiente social e econômico, tanto daquele mais próximo das pessoas, quanto daquele que condiciona a vida dos Estados. O que obriga afirmar que, sob a ótica jurídica, a saúde deverá inevitavelmente implicar aspectos individuais, sociais e de desenvolvimento.178

Reconhece-se, portanto, o caráter individual, coletivo e de desenvolvimento da saúde, sendo que seu alcance se prolifera nas três esferas mencionadas. No viés individual, nota-se que a saúde se relaciona diretamente com variados direitos individuais, não há de se falar em direito a vida digna, por exemplo, se não houver a consagração de uma vida saudável. O caráter individual evidencia- se pelo acesso a tratamentos individualizados, métodos diagnósticos, assistência farmacêutica, assim como a qualidade de vida e bem-estar individuais.

Da mesma maneira, não há de se falar em vida saudável coletiva se não houver assistência integral e universal em saúde com a devida assistência médica e farmacêutica bem como políticas de saneamento básico e meio ambiente. Nesse viés, a saúde possui caráter coletivo ao mesmo tempo que permanece latente sua face individual.

177 Cf. expressão em: DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JR., Vidal Serrano. Direito sanitário. São

Paulo: Verbatim, 2010.

A promoção e a manutenção da saúde possuem, ainda, um viés de desenvolvimento que visa a consagração da vida saudável das presentes e futuras gerações, no que tange ao desenvolvimento científico de novas tecnologias e novos fármacos, responsáveis pela cura das doenças que ainda acometem a humanidade. Nesse sentido, entende-se saúde como a possibilidade de novas tecnologias e tratamentos eficazes na manutenção da qualidade de vida dos indivíduos.

Dessa forma, a saúde apresenta um conceito amplo, dotado de faces que se interceptam com diversos outros conceitos e direitos. É fácil assimilar, por exemplo, o conceito de saúde ao de vida, de dignidade, de liberdade e de desenvolvimento. Há uma interpendência entre os conceitos citados, o que nos leva a concluir que o alcance do conceito de saúde irradia para além do âmbito médico- científico: trata-se de um bem individual e coletivo reivindicável, de natureza multifacetária, e que pressupõe a busca pelo estado de bem-estar físico, psíquico, social e de desenvolvimento.

Diante de todas as ponderações entende-se como saúde o estado harmônico entre o bem-estar físico, psíquico, social, ambiental e de desenvolvimento, que permite a fruição da liberdade individual, a autodeterminação da personalidade e o gozo de uma vida digna e saudável. Ter direito à saúde, seja em sua vertente individual, ou coletiva, pressupõe a busca constante desse estado de bem-estar, mesmo que inatingível em sua integralidade.