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DIREITO À SAÚDE: NORMA DE CONTEÚDO JURÍDICO OBJETIVO-

PARTE II – O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA PESQUISA CLÍNICA DE

CAPÍTULO 4 – DO DIREITO À SAÚDE 77

4.4 DIREITO À SAÚDE: NORMA DE CONTEÚDO JURÍDICO OBJETIVO-

O direito à saúde está inserido, hoje, na categoria de direitos fundamentais sociais. Os direitos sociais são frutos de uma conquista histórica, posterior à conquista dos direitos fundamentais da liberdade. Com isso, os direitos sociais decorrem do welfare state, que trouxe a ideia de que todo o indivíduo, desde o seu nascimento, tem direito a um conjunto de bens e serviços que devem ser oferecidos e garantidos pelo Estado, de forma direta ou indireta.

Fruto dos abusos do capitalismo industrial e do liberalismo ilimitado, os direitos sociais nasceram das diversas reivindicações da classe operária que se rebelevam contra as relações trabalhistas desumanas.

Com o final da Segunda Guerra Mundial e o surgimento de concepções éticas sobre a natureza humana, os direitos humanos foram consagrados pela DUDH de 1948, a qual, pautada nos pilares já defendidos na Revolução Francesa – igualdade, fraternidade e solidariedade –, preocupou-se, também, com a promoção do progresso social e da melhoria nas condições de vida. A Declaração – DUDH, originou a nova geração de direitos humanos, consagrando os direitos sociais193.

193 “Artigo XXII Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à

realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade; Artigo XXIII. 1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Todo ser humano que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses. Artigo XXIV. Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas. Artigo XV. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de

Em 1966, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direito Civis e Políticos ratificaram a importância dos direitos sociais bem como sua interdependência com os direitos de liberdade individual. A fundamentalidade e a correlação entre as garantias individuais e os direitos sociais ficou expressa no preâmbulo do Pacto:

Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal de Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos.194

No que tange ao Brasil, a primeira abertura social ocorreu com a Constituição de 1824195, a qual, por sua vez, possuía natureza assistencialista, porém, sem a consagração dos direitos sociais propriamente ditos. Apenas em 1934, fruto do movimento constitucionalista, que a Constituição de 1934 teve o “propósito de fincar pedras fundamentais do Estado Social de Direito”196, com a instituição da Justiça do Trabalho. Entretanto, tal Constituição teve breve vigência sendo derrubada pela Constituição de 1937, de caráter autoritário.

assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. Artigo 26. 1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que sera ministrada a seus filhos.”

194 Preâmbulo do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direito Civis e

Políticos de 1966. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990.../d0591.htm>. Acesso em: 20 set. 2016.

195 XXXI. “A Constituição também garante os socorros públicos” (Constituição de 1824).

196 NUNES JR., Vidal Serrano. A cidadania Social na Constituição de 1988: estratégias de

A Constituição de 1946 renovou o viés social, instituindo novos direitos sociais importantes, todavia, logo foi substituída pela constituição da ditadura militar de 1967, que, embora contivesse a disposição sobre os direitos sociais, tal eficácia vinculava-se a uma futura legislação integradora.197

A consagração dos direitos sociais de forma ampla se deu com a Constituição de 1988, a qual submeteu o Estado à prestação de uma atividade positiva com vistas a proporcionar a todos os indivíduos a garantia de disponibilidade das condições mínimas de sobrevivência.198

Nesse ínterim, os direitos sociais fundamentais, dentre os quais se situam os direitos a saúde, moradia, educação, trabalho, previdência, configuram um dos elementos caracterizadores do Estado Democrático de Direito, cuja premissa é a promoção da justiça social e das diversas garantias de direitos fundamentais sociais, todos fundados na dignidade da pessoa humana, que, em conjunto, compõe o núcleo essencial constitucional.199

Utilizando-se da conceituação de Vidal Serrano, os direitos sociais figuram como:

[...] um subsistema dos direitos fundamentais que, reconhecendo a existência de um segmento social economicamente vulnerável, busca, por meio de atribuição de direitos prestacionais, quer pela normatização e regulação das relações econômicas, ou ainda pela criação de instrumentos assecuratórios de tais direitos, atribuir a todos os benefícios da vida em sociedade.200

197 NUNES JR., Vidal. A cidadania Social na Constituição de 1988, 2009, p. 61-62.

198 OLIVEIRA, Márcio Dias de. Direito fundamental à saúde e suas faces: uma análise conjunta à

irretroatividade do direito fundamental social à saúde. In: GOTTEMS, Claudinei J; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (Coords). Direitos fundamentais da normatização à efetividade nos 20 anos de

Constituição brasileira. Birigui, SP: Boreal, 2008. p. 201-220.

199 MATIAS, João Luis Nogueira (Coord). Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais. São

Paulo: Atlas, 2009.

Aos direitos sociais, muitas vezes, é erroneamente atribuída uma natureza restritiva de direitos prestacionais, o que implica em um reducionismo capaz de comprometer o alcance e eficácia desses direitos. Como bem assevera Serrano, os direitos sociais ora possuem a vertente prestacional, ora de abstenção estatal e ora de regulamentação. 201

O que de fato não se pode negar é que os direitos sociais: (i) possuem um caráter fundamental, uma vez que são direitos intrínsecos ao ser humano e, sem o mínimo vital dos direitos sociais, nenhuma das liberdades individuais pode ser amplamente exercida; (ii) trazem em sua essência a aspiração ética que parte da premissa de que todos que participam da sociedade devem ter direito a uma parcela dos frutos por ela produzidos; (iii) possuem perspectiva normativa, reguladora e prestacional.202

Logo, a natureza do direito à saúde não pode ser limitada a de direitos prestacionais positivados meramente por normas programáticas. Trata-se de direito muito mais abrangente, capaz de configurar um direito subjetivo individual, inclusive em iminente intersecção com os direitos e as garantias individuais. A natureza subjetiva individual desse direito é evidente e subsiste em conjunto com sua natureza objetiva prestacional.

Consoante assevera Kelsen, uma norma de direito subjetivo concede ao indivíduo “o poder jurídico de se valer, através de uma ação o não cumprimento de um dever jurídico”203. Entretanto, existe a dificuldade no reconhecimento das normas que impõem prestações estatais como direitos subjetivos. Já Roberto Dias explica que tal dificuldade surge “porque postular judicialmente a implantação de uma política social, daria ensejo à judicialização da política, questão problemática do ponto de vista da legitimidade democrática e da tradição separação dos poderes”204.

201 NUNES JR., Vidal Serrano. A cidadania Social na Constituição de 1988, 2009, p. 63. 202 Ibid., p. 65.

203 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,

1997. p. 152.

204 DIAS, Roberto. O Direito fundamental à morte digna: uma visão constitucional da eutanásia.

A dimensão objetiva do direito à saúde, diretamente relacionada a sua faceta coletiva e de desenvolvimento, é de fácil reconhecimento. Marcelo Duque esclarece que a dimensão objetiva implica na imposição de uma obrigação ao Estado para a prática de determinada conduta, “seja proibindo ou dificultando a realização de intervenções em determinados direitos dos cidadãos, seja obrigando- lhe à prática de uma proteção efetiva”205.

Trata-se da obrigação do Estado de promoção, segurança, preservação do direito à saúde, seja por uma ação positiva (prestacional), seja por uma ação negativa (de não intervenção). Porém, não se pode negar a dimensão subjetiva do direito à saúde, ainda mais quando relacionada a sua esfera individual. Dessa forma, é possível reconhecer, nesse caso, um duplo caráter do direito à saúde, sendo, portanto, dotado de duas dimensões que se confundem: a objetiva e a subjetiva ou, em outras palavras, em direitos de defesa e em direitos prestacionais. Isso porque, ainda nas palavras de Duque, “o conteúdo objetivo dos direitos fundamentais não configura oposição ao seu caráter subjetivo”206.

Ao mencionar que as duas dimensões se confundem se pretende referenciar a interdependência das dimensões subjetivas e objetivas, em que sem a última a primeira pode não existir. O direito à saúde concede aos indivíduos direitos subjetivos de exigir do Estado a manutenção e a não intervenção no seu bem-estar físico, psíquico e social, ao passo que, impõe ao Estado a obrigação de promoção da saúde pública, através de políticas de desenvolvimento e de implementação de serviços.

Sem a atuação positiva do Estado o direito a saúde, vida e dignidade humana podem restar totalmente prejudicados, dotando o indivíduo do direito de exigir, mediante ação judicial, a ação positiva estatal. Oportuno citar o acórdão do Supremo Tribunal Federal, lembrado por Roberto Dias207, que reconhece o caráter subjetivo e objetivo do direito à saúde:

205 DUQUE, Marcelo Schenk. Direitos Fundamentais: teoria e prática. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2014. p. 127.

206 DUQUE. Direitos Fundamentais, 2014, p. 124.

O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico- hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.208

O direito à saúde como direito social, portanto, transpõe em seu conteúdo mínimo uma fusão com os direitos e as garantias individuais. Os direitos fundamentais, entre outras características, são indivisíveis e compõem uma unidade sistêmica. Diante disso, é possível vislumbrar no direito à saúde tanto a natureza de direito fundamental social como a de direito fundamental individual. Porque é inviável reconhecer o direito à vida, por exemplo, sem a efetivação de tratamentos eficazes em caso de doença. Ora, para a concretização do direito à vida, o direito à saúde é indispensável, podendo-se valer da afirmação de que, sem o direito à saúde, nesta hipótese, o direito à vida é amplamente violado.

Diante desse racional é possível concluir que, em relação ao conteúdo essencial de cada direito social, especialmente o direito à saúde, existe íntima relação com os direitos individuais, dotados de subjetividade. Restringir a positivação dos direitos sociais, especialmente no que se refere à saúde, às normas programáticas, consiste no mesmo que lhes retirar o caráter subjetivo interdependente com as liberdades e as garantias fundamentais. É o mesmo que afirmar que não passam de “aleluias jurídicos”, burlando, assim, a noção do Estado de Direito, que submete o administrador à lei.209

208 Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial n.º 887.844/RS, relator ministro Humberto Martins, j.

24.10.2006. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000103463&base=baseAcordao s>. Acesso em: 02 set. 2016.

Isso porque a aplicação de direitos sociais, no que se refere ao mínimo vital, não pode ficar à mercê das políticas públicas. Por esse motivo, alguns direitos sociais são positivados por mais de uma forma, transformando-se, ao longo do texto constitucional, em direitos subjetivos passíveis de reclamação. Com isso, é possível afirmar que a CF/1988, no que tange à positivação dos direitos sociais, utilizou as seguintes formas de positivação:

(i) Normas consagradoras de finalidades a serem cumpridas pelo Poder Público;

(ii) Atribuição de direitos subjetivos públicos de fruição autônoma e imediata por qualquer indivíduo;

(iii) Garantias institucionais;

(iv) Cláusulas limitativas do poder econômico, predispostas à busca do equilíbrio em relações socioeconômicas marcadas por desigualdade entre as partes;

(v) Normas projectivas, normas de conformação social dos institutos jurídicos fundantes da ordem econômica capitalista.210

Não é se pretende aqui abordar o viés da positivação dos direitos sociais. No entanto, é importante fomentar a consciência de que a limitação do direito à saúde a normas programáticas retira-lhe o conteúdo essencial que, muito embora seja fruto de políticas públicas, também tem seu viés intimamente relacionado aos direitos e às garantias individuais. O direito à saúde como direito fundamental abarca, portanto, desde o estabelecimento de obrigações indeclináveis, destinadas ao Estado, até o direito subjetivo individual, correlacionado às garantias individuais.

CAPÍTULO 5 – DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO,