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PARTE I – DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS 19

CAPÍTULO 2 – TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS MEDICAMENTOS E DA

2.1 CÓDIGO DE NUREMBERG 33

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), instaurou-se no Palácio da Justiça de Nuremberg, Alemanha, uma corte de juízes americanos incumbidos dos julgamentos pelos crimes cometidos pelos nazistas, conhecido como o Tribunal de Nuremberg.

Foram 12 casos julgados pelo Tribunal de Nuremberg. O primeiro deles, realizado em 1947, objetivou o julgamento dos crimes praticados pelos médicos nazistas, diretamente relacionados às atrocidades cometidas na realização de experimentos com seres humanos. Como resposta aos crimes cometidos, o Tribunal elaborou um conjunto de preceitos éticos a serem observados na condução de pesquisas com seres humanos. Esse conjunto de princípios ficou conhecido como Código de Nuremberg.

A realização de pesquisas envolvendo seres humanos ficou, após a publicação do Código de Nuremberg, subordinada ao respeito da autonomia da vontade individual. O consentimento livre e esclarecido do participante de pesquisa se tornou condição precípua para a condução de estudos clínicos65, e a possibilidade de se retirar do estudo, a qualquer tempo, uma liberdade garantida.66

65 “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as

pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e

Firmaram-se condições específicas para a condução de experimentos dessa natureza. O Código buscou impor limites à ciência desenfreada, determinando que o experimento não poderá ser realizado “de maneira casuística ou desnecessariamente”67, ou ainda, “sem o conhecimento prévio da evolução da doença através de testes realizados com animais”68.

Como padrões éticos que visam resguardar a dignidade da pessoa humana, o Código de Nuremberg trouxe a necessidade de impedir sofrimentos, danos desnecessários, possibilidade de morte ou invalidez permanente69, além de exigir a proporcionalidade entre o risco aceitável e o problema que o pesquisador, pessoa cientificamente qualificada, pretende resolver. Embora os preceitos éticos concedidos pelo Código tenham buscado garantir o respeito à dignidade da pessoa humana na condução de experimentos científicos, os efeitos esperados não foram prontamente alcançados.

Debora Diniz e Marilena Corrêa explicitam que as diretrizes éticas de Nuremberg não foram capazes de sensibilizar os médicos para o respeito necessário no uso de seres humanos em pesquisa clínica70 e, ao explicar os possíveis motivos dessa falha, citam Rothman (1991) que aduz:

O julgamento dos médicos nazistas em Nuremberg recebeu pouca cobertura da imprensa e, antes da década de 70, o próprio código raramente era citado ou discutido nas revistas médicas. Pesquisadores e clínicos americanos aparentemente consideravam Nuremberg irrelevante para seu próprio trabalho.71

responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente” (CÓDIGO de Nuremberg, 1947).

66 “O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento”

(CÓDIGO de Nuremberg, 1947).

67 Código de Nuremberg, 1947. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/nuremcod.htm.>

Acesso em 10 de dezembro de 2016.

68 Id.

69 “Exceto quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento” (CÓDIGO de

Nuremberg, 1947).

70 DINIZ, Débora; CORRÊA, Marilena. Declaração de Helsinque: relativismo e vulnerabilidade. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 17, v. 3, p. 679-688, maio-jun., 2001.

71 ROTHMAN, David. Making the Invisible Visible. Strangers at the Bedside. Washington, DC: Basic.

Com o decorrer do tempo notou-se que os preceitos de Nuremberg não foram amplamente incorporados ao mundo científico, eram vistos, todavia, como aplicáveis somente às atrocidades vivenciadas no nazismo, ou seja, só diziam respeito à medicina nazista, e não ao médico comum. Esse fato se tornou ainda mais evidente com o acontecimento do Caso Tuskegee, ocorrido após o Código de Nuremberg.

O Caso Tuskegee, consistiu na condução de um estudo clínico que “envolveu 600 homens negros, sendo 399 com sífilis e 201 sem a doença, da cidade de Macon, no estado do Alabama”72. O estudo objetivava observar a evolução da doença sem a administração de tratamento. Goldim relembra que, em 1929, já havia sido publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados históricos, relatando mais de 2 mil casos de sífilis não tratados.73 Ou seja, os objetivos do Caso

Tuskegee não eram essenciais.

Com isso, foi possível observar que mesmo sob a égide do Código de Nuremberg, o qual estabeleceu padrões éticos para a condução de experimentos com seres humanos, diversos indivíduos morreram no transcurso desse estudo pela impossibilidade de acesso ao tratamento, diga-se, que já existia.

Complementa Goldim:

A partir da década de 50 já havia terapêutica estabelecida para o tratamento de sífilis, mesmo assim, todos os indivíduos incluídos no estudo foram mantidos sem tratamento. Todas as instituições de saúde dos EEUU receberam uma lista com o nome dos participantes com o objetivo de evitar que qualquer um deles, mesmo em outra localidade recebesse tratamento. A inadequação do estudo foi seguindo o padrão conhecido como ‘slippery slope’, isto é, uma inadequação leva a outra e o problema vai se agravando de forma crescente. Da omissão do diagnóstico se evoluiu para o não tratamento, e deste para o impedimento de qualquer possibilidade de ajuda aos participantes.74

72 GOLDIM José Roberto. O Caso Tuskegee: quando a ciência se torna eticamente inadequada.

1999. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm>. Acesso em: 22 abr. 2016.

73 Id. 74 Id.

Em 1997, ainda estavam vivas 8 pessoas e o governo americano se desculpou publicamente pelo ocorrido.75 O filme Cobaias, do diretor Joseph Sargent (1997), tentou demonstrar o drama vivenciado pelos pacientes.

Entre outros exemplos ocorridos, a Síndrome da Talidomida76 nos anos 60, conhecida por ocasionar o nascimento de diversos bebês acometidos por Focomelia77. Cerca de 20 mil mulheres foram submetidas a testes clínicos para a eficácia da talidomida, mas sem o consentimento adequado. Estima-se que de 10 mil a 20 mil bebês em mais de 40 países foram afetados.78

Note-se que as diretrizes éticas estabelecidas pelo Código de Nuremberg não foram incorporadas no ethos científico dessa época, o qual permaneceu com as premissas praticadas no regime nazista.

Em 1966, Henry Beecher publicou um trabalho histórico no The New

England Journal of Medicine, levantando 22 estudos clínicos acometidos por graves

infrações éticas.79 Volnei Garrafa relembra dois casos relatados por Beecher em seu estudo, em um deles foi introduzido, em pacientes idosos hospitalizados, células hepáticas cancerosas, à revelia do consentimento desses indivíduos, informados que receberiam apenas “células”.

Noutro estudo clínico, com o fito de estudar anticorpos tumorais, o tumor de uma menina portadora de melanoma foi transplantado para a sua mãe, devidamente esclarecida e informada, com a omissão do quadro terminal da criança, a qual morreu um dia após o enxerto. A mãe faleceu 455 dias após o transplante.80

75 CANDIOTTO, César. Biopoder e racismo político: uma análise a partir de Michel Foucault. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis. Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 20-38, jul/dez. 2012.

Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/viewFile/1807- 1384.2012v9n2p20/23512>. Acesso em: 21 jun. 2016.

76 Talidomida, medicamento desenvolvido na Alemanha, em 1954, inicialmente como sedativo. A

droga era dada às mulheres grávidas para combater os sintomas do enjoo matinal. Associação de portadores de Síndrome de Talidomina. Disponível em: <http://www.talidomida.org.br/>. Acesso em: 10 de jul. 2016.

77 Trata-se de uma síndrome caracterizada pela aproximação ou pelo encurtamento dos membros

junto ao tronco do feto – tornando-os semelhantes aos de uma foca.

78 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 207.

79 BEECHER, Henry. Ethics and clinical research. New England Journal of Medicine, 1966, n. 274,

p. 1354-1360, June 16, 1966. Disponível em:

<http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJM196606162742405>. Acesso em: 25 abr. 2016.

80 GARRAFA, Volnei; PRADO, Mauro Machado do. Alterações na Declaração de Helsinque – a

A publicação de Beecher se deu em 1966, dois anos após a Declaração de Helsinque (1964), entretanto, os relatos descritos faziam referência às pesquisas realizadas tanto à revelia da Declaração recém-editada de Helsinque, como também do Código de Nuremberg. Beecher pretendeu comprovar que as origens do

totalitarismo científico81 permaneciam vigentes mesmo no período pós-guerra e que, em diversos estudos, os interesses da ciência permaneciam se sobrepondo à dignidade da pessoa humana e aos princípios éticos até então conquistados.