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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. Thamires Pandolfi Cappello

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(1)

Thamires Pandolfi Cappello

Pesquisa Clínica de Medicamentos no Brasil: a disposição sobre o próprio corpo como um direito fundamental

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo 2017

(2)

Pesquisa Clínica de Medicamentos no Brasil: a disposição sobre o próprio corpo como um direito fundamental

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito Constitucional, sob a orientação da Profa. Dra. Carolina Alves de Souza Lima.

São Paulo 2017

(3)

Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

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À minha família, especialmente à minha mãe Maria Cristina, ao meu pai Roberto e ao meu irmão Italo, por todo amor, apoio, carinho, compreensão e parceria durante esse trajeto.

Ao meu noivo e futuro marido Marcos Vinicius, pela parceria e pelo trajeto acadêmico que trilhamos juntos durante o curso do mestrado.

(5)

Inicialmente, agradeço à minha orientadora, Professora Carolina Alves de Souza Lima, pelos valiosos ensinamentos ao longo do curso do Mestrado na PUC/SP; por toda paciência, confiança e orientações fundamentais à conclusão do presente trabalho. Além de toda amizade, atenção, dedicação e carinho que tornaram o curso do mestrado e a confecção do presente trabalho uma experiência construtiva de crescimento acadêmico, profissional e pessoal.

Agradeço ao professor Roberto Dias, por toda transmissão de conhecimento, discussões acadêmicas, paciência, pelo apoio e pelas críticas apresentados no exame de qualificação e, principalmente, pela excelência do crédito de direitos fundamentais, que possibilitou não só o incentivo para adentrar no tema do presente trabalho, como também a formação estrutural e conceitual dos temas estudados. Agradeço ao professor Vidal Serrano Jr., por toda transmissão de conhecimento, pela análise e pelas sugestões apontadas no exame de qualificação assim como por todo apoio durante o curso do mestrado.

Agradeço imensamente à minha família, especialmente minha mãe Maria Cristina, meu pai Roberto e meu irmão Ítalo, por todo apoio, amor e compreensão despendidos durante esse trajeto.

Agradeço ao meu noivo e futuro marido Marcos por todo apoio, amor, compreensão, carinho despendidos não só ao longo desse curso, mas no nosso dia-a-dia, e, principalmente, por estar ao meu lado, trilhando em conjunto, esse caminho acadêmico.

Agradeço a todo o corpo docente do mestrado da PUC/SP que fez parte da trajetória acadêmica.

Agradeço aos colegas de curso que participaram da trajetória do mestrado, os quais, cada qual com sua contribuição, se tornaram parte dessa história.

(6)

A menos que a ciência abra a dimensão da nossa própria interioridade, ela não se tornará uma matéria total, uma coisa completa, ela permanecerá parcial, seus pontos de vista irão permanecer apenas meias verdades. A ciência se tornará de tremenda importância se ela adicionar a subjetividade, se ela adicionar métodos de meditação aos métodos de concentração. (OSHO)

(7)

Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2017. 188p.

RESUMO

A pesquisa clínica de medicamentos constitui procedimento obrigatório para o desenvolvimento farmacêutico e para registro de novos fármacos no Brasil. Trata-se de testes realizados em seres humanos saudáveis e/ou com determinada patologia, a fim de verificar os possíveis efeitos de determinada substância com potencial terapêutico no organismo humano. Dentre as suas quatro fases, a Fase I é realizada com indivíduos saudáveis que colocam à disposição dos pesquisadores seus corpos, os quais passam a ser analisados, após a administração de substâncias ainda não testadas em organismo humano, através de exames diagnósticos e demais procedimentos médico-científicos. Diante disso, verifica-se que o ato de dispor do próprio corpo para a submissão a estudos clínicos de medicamentos, após o consentimento livre e esclarecido, consiste em um ato baseado na liberdade individual, no viés da autonomia da vontade, que pode, entretanto, colocar em risco a saúde e a integridade física do participante. Nota-se que diversos direitos fundamentais são envolvidos nessa seara, implicando, inclusive, em evidente colisão a ser solucionada pela ponderação. É nesse contexto que o presente trabalho se desenvolve com o objetivo central de verificar se a disposição sobre o próprio corpo para pesquisas clínicas configura um direito fundamental individual com base no livre desenvolvimento da personalidade e com a finalidade de promoção da saúde coletiva e do desenvolvimento científico nacional.

Palavras-chave: Pesquisa Clínica de Medicamentos. Testes em seres humanos.

Disposição sobre o próprio corpo. Direitos fundamentais. Direito à saúde. Direitos ao desenvolvimento científico, tecnológico e inovação.

(8)

Paulo, SP, Brazil, 2017. 188p.

ABSTRACT

Clinical research on medicines is a mandatory procedure for pharmaceutical development and registration of new drugs in Brazil. These tests are performed in healthy humans and/or with a certain pathology, in order to verify the possible effects of a substance with therapeutic potential in the human organism. Among its four phases, Phase I is performed with healthy individuals who provide researchers with their bodies, which are analyzed after the administration of substances not yet tested in a human body, through diagnostic tests and other procedures medical-scientific. Therefore, it is verified that the act of disposal of own body for submission to clinical trials of medicines, after free and informed consent, consists of an act based on individual freedom, on the bias of the autonomy of the will, which may, however, endanger the health and physical integrity of the participant. It is noted that several fundamental rights are involved in this area, implying, even, an evident collision to be solved by weighing. It is in this context that the present work is developed with the central objective of verifying that the disposal of own body for clinical research constitutes an individual fundamental right based on the free development of the personality and for the purpose of promoting collective health and national scientific development.

Keywords: Clinical Research of Medications. Tests on humans. Disposal of own

body. Fundamental rights. Right to health. Rights to scientific, technological and innovation development.

(9)

AMM Associação Médica Mundial

ANS Agência Nacional de Saúde

ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

CEP Comitê de Ética em Pesquisa

CF Constituição Federal

CFM Conselho Federal de Medicina

CNS Conselho Nacional de Saúde

CONEP Comitê Nacional de Ética em Pesquisa

DDCM Dossiê de Desenvolvimento clínico do medicamento

DUDH Declaração Universal de Direitos Humanos

FDA Food and Drug Administration

GCP Guidelines for Good Practice

ICH International Conference on Harmonization

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

MS Ministério da Saúde

NIH National Institute of Health

OMC Organização Mundial do Comércio

OMS Organização Mundial da Saúde

ONU Organização das Nações Unidas

P&D Pesquisa e Desenvolvimento

PDI Pesquisa e Desenvolvimento e Inovação

PICDP Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais

RDC Resolução da Diretoria Colegiada

Redbioética/ Unesco

Rede Latino-americana e do Caribe de bioética da Unesco

SNVS Sistema Nacional de Vigilância Sanitária

(10)
(11)

INTRODUÇÃO ... 13  

PARTE I – DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS ... 19  

CAPÍTULO 1 – CONCEITO E DEFINIÇÕES ... 19  

CAPÍTULO 2 – TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS MEDICAMENTOS E DA EXPERIMENTAÇÃO COM SERES HUMANOS ... 24  

2.1 CÓDIGO DE NUREMBERG ... 33  

2.2 DECLARAÇÃO DE HELSINQUE ... 37  

CAPÍTULO 3 – DA PESQUISA CLÍNICA NO BRASIL: ASPECTOS GERAIS ... 48  

3.1 O DESENVOLVIMENTO FARMACÊUTICO DOS MEDICAMENTOS ... 50  

3.1.1 A fase clínica: A experimentação em seres humanos e os direitos dos participantes ... 55  

3.2 A AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA – ANVISA ... 60  

3.3 ÉTICA EM PESQUISA: BIOÉTICA E O SISTEMA CEP/CONEP ... 65  

PARTE II – O FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS: O DIREITO À SAÚDE E AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO ... 76  

CAPÍTULO 4 – DO DIREITO À SAÚDE ... 77  

4.1 A SAÚDE: CONCEITO E ALCANCE ... 77  

4.2 DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ... 81  

4.2.1 Da legislação infraconstitucional sobre direito à saúde ... 85  

4.3 DIREITO À SAÚDE COMO DIREITO HUMANO: SISTEMA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS ... 86  

4.4 DIREITO À SAÚDE: NORMA DE CONTEÚDO JURÍDICO OBJETIVO-SUBJETIVO ... 90  

CAPÍTULO 5 – DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO ... 97  

(12)

CAPÍTULO 6 – A INTERDEPENDÊNCIA DO DIREITO À SAÚDE E DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO ... 110   6.1 A PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS COMO FORMA DE FOMENTO DA SAÚDE E DO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO ... 114  

PARTE III – A DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO - NOS ESTUDOS CLÍNICOS DE MEDICAMENTOS - COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL ... 117  

CAPÍTULO 7 – O CORPO HUMANO COMO ELEMENTO INTEGRANTE DO DIREITO À VIDA, À SAÚDE, À INTEGRIDADE FÍSICA E AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ... 119   CAPÍTULO 8 – DA DISPOSIÇÃO DO CORPO HUMANO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ... 128   8.1 O ATO DE DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO PARA ESTUDOS CLÍNICOS VERSUS A RENÚNCIA DE DIREITOS ... 134   8.2 A DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL ... 141   8.2.1 Autonomia da vontade: o livre desenvolvimento da personalidade e o consentimento livre e esclarecido ... 151   8.3 RESOLUÇÃO DE DIRETORIA COLEGIADA 466/2012: A DISPOSIÇÃO SOBRE O PRÓPRIO CORPO MEDIANTE COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA ... 156  

CONCLUSÃO ... 167   REFERÊNCIAS ... 175  

(13)

INTRODUÇÃO

“Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer”1. Trata-se de

uma característica intrínseca ao ser humano e capaz de impulsionar, por meio da curiosidade, a evolução da humanidade. O ser humano busca, incansavelmente, saciar seu desejo de novidade, de mudar as coisas e de compreender as lacunas existentes, independentemente de suas utilidades. A curiosidade busca sempre um novo fim, para que depois de alcançado seja possível galgar nova jornada ao encontro de novos desafios2.

“A impermanência humana junto ao que está próximo”3,ou seja, junto ao conhecido, pode ser considerada a gênese da ciência e de sua evolução. A inquietação humana para saciar questões até então indecifráveis é responsável pela capacidade de criação inovadora da sociedade. Ao analisarmos a trajetória histórica do ser humano, é possível atribuir sua curiosidade à conquista dos mais variados inventos responsáveis não só pela evolução da espécie, mas também pela melhoria na qualidade de vida, em seus aspectos científicos e sociais, principalmente no que tange à ampliação contínua da longevidade.

Desde a descoberta do fogo, da penicilina, até os mais modernos métodos diagnósticos e terapêuticos, a pesquisa científica almeja encontrar a cura e o tratamento para as doenças que ceifam a saúde dos homens. Busca-se, primordialmente, aumentar a longevidade, na esperança de prorrogar um dos eventos ainda imbatíveis pelo ser humano: a chegada da morte.

Nesse sentido, buscar tratamento e alcançar a cura para as mais diversas doenças e deficiências consiste no ponto propulsor da pesquisa científica, nos âmbitos da medicina e da farmácia. Todavia, a busca desenfreada para suprir a curiosidade no campo médico-científico já protagonizou verdadeiras atrocidades. E embora essa busca tenha sido eficaz para a evolução científica, marcou, com horror, a história da ciência, a exemplo das diversas experiências vivenciadas no nazismo.

1 ARISTÓTELES. Metafísica (Livros I e II). Trad. Vicenzzo Cocao. São Paulo: Abril Cultural, 1984,

Capítulo I.

2 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá C. Shuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, § 36. 3 Id.

(14)

Vale destacar que a evolução científica, no que concerne a profilaxia e terapia de doenças, tem, na descoberta de novos medicamentos e de novas vacinas, seu alicerce principal. É por meio do desenvolvimento farmacêutico que se torna possível o tratamento de doenças, antes fatais ao ser humano. Nesse viés, as indústrias farmacêuticas privadas e os laboratórios públicos destacam-se como fomentadores não só do desenvolvimento científico, mas também do direito à saúde.

O desenvolvimento de novos medicamentos integra grande parte do desenvolvimento nacional, sendo responsável pela circulação de vultosos valores econômicos. Em 2015, estima-se, segundo dados da IMS Health disponibilizados pelo Sidusfarma, que o mercado farmacêutico movimentou cerca de R$44.685.118,227 em vendas4.

Não se pode negar o interesse econômico das indústrias farmacêuticas, detentoras das maiores tecnologias de inovação. O universo farmacêutico, permeado pelo direito de exploração de patentes, é o sustentáculo do capitalismo no âmbito científico. Entretanto, é importante destacar que, ao mesmo tempo em que sustentam os interesses privatistas, os direitos de propriedade intelectual fomentam, em sua outra face, interesses públicos e coletivos, ou seja, trazem consigo o progresso científico e o atendimento dos interesses sociais para a promoção da saúde em todas suas acepções.

Dessa forma, a indústria farmacêutica, tendo em vista seu poder econômico, figura hoje como a protagonista do desenvolvimento de novos medicamentos. Isso porque o trajeto percorrido por uma nova molécula inovadora, partindo da bancada dos laboratórios até chegar ao consumidor final, leva em torno de 15 anos de desenvolvimento e requer o investimento de aproximadamente U$802 milhões5.

O desenvolvimento de novas tecnologias farmacêuticas engloba desde testes in vitro, teste em animais, até sua última etapa, que consiste em testes com seres humanos. Esse longo percurso, repleto de etapas, tem como finalidade comprovar a eficácia e a segurança dos medicamentos que serão utilizados pela sociedade.

4 Sidusfarma. Disponível em: <http://sindusfarma.org.br/cadastro/index.php/site/ap_indicadores>.

Acesso em: 13 jun. 2016.

5 Tufts Center For The Study Of Drug Development, Disponível em:

(15)

O teste de medicamento em seres humanos – a chamada Pesquisa Clínica – constitui uma etapa obrigatória para o desenvolvimento de novo medicamento6, exigida pela legislação sanitária vigente e fiscalizada pelos órgãos regulatórios responsáveis pelo controle da saúde pública nacional.

Com a evidente necessidade de utilizar o corpo humano para fins de desenvolvimento científico, é possível temer os possíveis abusos à dignidade humana. Pois, conforme brevemente mencionado, a trajetória dos estudos com seres humanos foi marcada por um histórico nebuloso, às sombras dos campos de concentração do nazismo. Episódio da história que, embora repugnante, encaminhou a humanidade para uma concepção de dignidade da pessoa humana, com a consagração do Código de Nuremberg.

É certo que muitos avanços no campo do direito e da bioética foram alcançados para proteger o ser humano e inibir a coisificação do corpo. Atualmente, o desenvolvimento científico submete-se, tanto na ordem nacional quanto na internacional, a limites protetivos dos direitos humanos – os limites ao chamado

biopoder7.

Mesmo diante do atual sistema de proteção de direitos humanos e da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento primordial do Estado de Direito, a pesquisa com seres humanos requer ampla discussão, merecendo atenção dos estudiosos do direito, da ciência e da bioética, sobretudo porque, em evidente negligência legislativa, a regulamentação nacional sobre o tema se dá por normas administrativas, emanadas no âmbito da discricionariedade estatal.

6 Não só para os novos medicamentos, como também para nova indicação terapêutica; nova via de

administração; nova concentração; nova forma farmacêutica; ampliação de uso; nova posologia; novas associações; ou qualquer alteração pós-registro que requeira dados clínicos, incluindo renovação de registro (RDC 9/2015 Anvisa).

7 “o que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês preferirem, uma tomada de

poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico” (FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 286).

(16)

Há repleta gama de aspectos éticos e jurídicos que permeiam esse assunto. Os voluntários escolhidos para participar das pesquisas clínicas de medicamentos se sujeitam, mediante consentimento, a procedimentos clínicos diversos, muitas vezes invasivos, que poderão configurar a heterocolocação8 em perigo. Ou seja, há, nesse caso, a disposição sobre o próprio corpo para realizar procedimentos que poderão ensejar consequências ainda desconhecidas pela ciência.

O foco primordial repousa nos direitos fundamentais dos participantes de pesquisa clínica, especialmente no que se refere ao direito à saúde e à integridade física. Cediço é que grande parte das pesquisas clínicas é realizada com indivíduos acometidos pela moléstia que se pretende tratar. Entretanto, o cenário se altera quando adentramos o âmbito da pesquisa clínica de Fase I9, realizada com pessoas saudáveis.

Na submissão de seres humanos saudáveis a pesquisas com medicamentos, o indivíduo dispõe de seu corpo e, eventualmente, de seu estado de saúde em prol do desenvolvimento científico e do fomento da saúde coletiva. A problemática se amplia com o advento da Resolução de Diretoria Colegiada RDC 466/2012, do Conselho Nacional da Saúde (CNS), que retirou dos estudos de Fase I e dos testes de bioequivalência10 a gratuidade da participação.

Tal modificação, que revogou a normativa anterior de 1996, teve como fundamento a grande dificuldade de se promover pesquisa Fase I no Brasil, haja vista que, sem incentivo pecuniário, a quantidade de voluntários saudáveis era escassa. Nota-se, nesse ponto, uma autorização – via norma administrativa – para conceder compensação pecuniária aos indivíduos saudáveis, que, em contrapartida, irão dispor dos seus corpos e da sua saúde.

8 Diferentemente da autocolocação em perigo, a heterecolocação configura um ato no qual o

indivíduo, mediante consentimento, permite que terceiros criem determinado risco para ele.

9 E também nos casos de testes de bioequivalência realizados com seres humanos.

10 “Os estudos de biodisponibilidade relativa/bioequivalência (BRD/BE) são estudos clínicos

conduzidos após o término da proteção patentária, com o objetivo de avaliar a extensão e a velocidade de absorção do fármaco contido em uma formulação teste (candidata a genérico, similar ou produto novo) em relação a uma formulação referência designada pelo órgão regulador” (VIEIRA, Nelson Rogério; CAMPOS, Daniel Rossi de. Manual de Bioequivalência. São Paulo: Dendrix, 2011. p. 81).

(17)

Importante verificar que a submissão a essas pesquisas deverá ocorrer com o pleno exercício de outro direito fundamental: o direito à liberdade, no viés da autonomia da vontade. O direito à liberdade constitui expressão máxima de um Estado de Direito, concedendo aos indivíduos legitimidade para direcionar suas vidas e seus bens em conformidade com as convicções individuais e com o desenvolvimento da própria personalidade, não sendo, todavia, absoluto11.

É nesse viés que o objeto do presente trabalho se fundamenta. Busca-se analisar os direitos fundamentais envolvidos na realização da pesquisa clínica de medicamentos, evidenciando eventuais colisões entre direitos, para que seja possível verificar a legitimidade ética e constitucional do instituto da disposição sobre o próprio corpo perante a ordem jurídica brasileira.

A importância do presente estudo se justifica, pois a integridade física do corpo humano e a manutenção da saúde são direitos fundamentais que devem ser protegidos pelo Estado. Entretanto, no exercício da liberdade individual, os indivíduos podem optar por atos que talvez afetem tanto a integridade do corpo como o estado de saúde. Nessas hipóteses, em que a liberdade individual, no viés de autonomia da vontade, impõe-se sobre a integridade física do corpo e da saúde, evidencia-se uma colisão de direitos fundamentais.

O ato de disposição sobre o próprio corpo para a participação de estudos clínicos enquadra-se na colisão apresentada e será, portanto, objeto de estudo do presente trabalho. O objetivo é verificar seu enquadramento como um direito fundamental autônomo, fundamentado no direito à liberdade, da ótica da autonomia da vontade. Com isso, deverá ser analisada a colisão entre o direito à saúde individual – a integridade física do corpo – versus o direito à liberdade – no viés da autonomia da vontade.

Tanto o direito à saúde e ao corpo quanto o direito à liberdade deverão, a

priori, ser protegidos pelo Estado. Vale ressaltar que a colisão a ser analisada é

restrita ao âmbito das pesquisas clínicas de medicamentos, realizadas sob o manto do desenvolvimento científico e do fomento à saúde pública e coletiva.

11 BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade:

uma antologia de ensaios. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 226-272.

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Visa-se, portanto, a abordar, da ótica constitucional, os aspectos éticos e jurídicos envolvidos nos estudos clínicos de medicamentos, a fim de verificar se há fundamentos jurídicos que asseguram a disposição sobre o próprio corpo como um direito fundamental. Nessas circunstâncias, pretende-se abordar também a constitucionalidade – ou não – da disposição sobre o corpo mediante compensação pecuniária.

Para tanto, a presente dissertação será dividida em três partes. A Parte I analisará os aspectos gerais relacionados à Pesquisa Clínica de medicamentos no Brasil; a Parte II cuidará especificamente dos direitos fundamentais que constituem o sustentáculo da pesquisa clínica de medicamentos: direito à saúde e direito ao desenvolvimento científico; a Parte III discorrerá sobre o direito à disposição sobre próprio corpo, a fim de verificar seu enquadramento no âmbito legal e ético, e tratará da análise sobre a constitucionalidade da disposição do corpo, mediante compensação pecuniária, da ótica do ordenamento jurídico nacional e da sua importância para o fomento da saúde coletiva.

A pesquisa desenvolvida no presente trabalho, no que tange à metodologia empregada, será de natureza dogmática, abrangendo seus três desdobramentos – analítico, empírico e normativo – mediante análise da legislação nacional e internacional aplicável ao tema, com respaldo primordial em resoluções administrativas do Conselho Nacional de Saúde, normas de direito e legislação específica. Busca-se, primordialmente, através da revisão da doutrina pertinente ao tema, solucionar os questionamentos propostos ao longo do trabalho.

Ao final, será apresentada uma conclusão sobre os principais aspectos acima elencados, com vistas a oferecer uma crítica fundamentada ao ordenamento jurídico atual, que rege a Pesquisa Clínica de medicamentos no Brasil, a fim de contribuir juridicamente para o progresso do desenvolvimento científico nacional, sob a égide da proteção dos direitos fundamentais, especialmente no que concerne ao respeito à dignidade da pessoa humana.

(19)

PARTE I – DA PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS

CAPÍTULO 1 – CONCEITO E DEFINIÇÕES

A Pesquisa clínica de medicamentos – também conhecida por: ensaio clínico12, estudo clínico, pesquisas biomédicas, pesquisas com seres humanos,

clinical trials –, representa uma etapa fundamental para a garantia de qualidade,

eficácia13 e segurança14 dos fármacos. Para que um medicamento possa ser comercializado e distribuído ao público final, com a garantia de manutenção da saúde pública, a pesquisa clínica configura etapa obrigatória exigida pela maioria das agências reguladoras reconhecidas ao redor do mundo.

Nos termos das normas vigentes, a demonstração da eficácia e da segurança de um medicamento (para aprovar tanto sua comercialização ou uma nova indicação) é condição sine qua non para que seja distribuído à sociedade. A pesquisa clínica mostra-se o único meio eficaz para a obtenção dessas demonstrações. Os resultados obtidos nesses estudos determinam a autorização, o registro e a comercialização de um medicamento.15

12 Neste trabalho, os termos mencionados serão utilizados como sinônimos, porém, alguns autores

diferenciam as expressões pesquisa clínica, estudo clínico e ensaio clínico, sendo o último como estudos ou experimentos realizados para novos medicamentos em seres humanos. Cf.: LIMA, Jaderson S. et al. Pesquisa clínica: fundamentos, aspectos éticos e perspectivas. Revista da Socerj, Rio de Janeiro, v. 16, n. 4, p. 225-232, out., 2003. Disponível em: <http://www.rbconline.org.br/wp-content/uploads/a2003_v16_n04_art01.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2016.

13 Eficácia significa a capacidade de medicamento de atingir o efeito terapêutico visado. Disponível

em: <http://www.anvisa.gov.br>. Acesso em: 23 abr. 2016.

14 Por segurança entendemos ser a informação sobre possível relação causal entre um evento

adverso e um medicamento, sendo que tal relação é desconhecida ou foi documentada de forma incompleta anteriormente.

15 Boas Práticas Clínicas: Documento das Américas. Disponível em:

<http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/boaspraticas_americas.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2016.

(20)

Etimologicamente, a palavra pesquisa vem do latim perquirere e significa buscar com afinco. O prefixo per- significa intensificativo e, quando acrescido de

quaerere, significa indagar, cuja origem está na palavra quaestio: busca, procura,

problema.16 No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa encontramos como definição do vocábulo pesquisa: “conjunto de atividades que têm por finalidade a descoberta de novos conhecimentos no domínio científico, literário, artístico, etc.”, ou ainda, “investigação ou indagação minuciosa”17 Já a palavra clínica, por sua vez, segundo o Dicionário Houaiss, significa a “prática ou o exercício da medicina”.18

Em uma conceituação meramente semântica, pesquisa clínica consiste na investigação realizada por instrução médica em pacientes com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre algo – doença, medicamento ou método diagnóstico. Ao contextualizar, é possível afirmar que pesquisa clínica consiste em uma pesquisa de cunho médico a ser realizada com seres humanos.

A Conferência Internacional sobre Harmonização de Requisitos Técnicos para o Registro de Produtos Farmacêuticos para Uso Humano (ICH), trouxe, através do Documento das Américas de Boas Práticas Clínicas19, a seguinte conceituação:

Um ensaio clínico é um estudo sistemático de medicamentos e/ou especialidades medicinais em voluntários humanos que seguem estritamente as diretrizes do método científico. Seu objetivo é descobrir ou confirmar os efeitos e/ou identificar as reações adversas ao produto investigado e/ou estudar a farmacocinética dos ingredientes ativos, de forma a determinar sua eficácia e segurança.20

16 Consultório Etimológico. Disponível em:

<http://origemdapalavra.com.br/site/pergunta/pesquisa-72/>. Acesso em: 23 abr. 2016.

17 Pesquisa. In: HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2009. p. 1483.

18 Clínica. HOUAISS. Dicionário..., 2009, p. 480.

19 IV Conferência Pan-americana para Harmonização da Regulamentação Farmacêutica realizada na

República Dominicana em março de 2005.

20Anvisa. Disponível em:

<http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/pesquisa/boaspraticas_americas.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2016.

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A Pesquisa Clínica de medicamentos é considerada, portanto, uma das etapas do desenvolvimento do medicamento na qual substâncias com potencial terapêutico serão testadas e avaliadas em seres humanos, podendo ser em indivíduos saudáveis ou em indivíduos acometidos por determinada patologia, a depender da fase da pesquisa. Busca-se, primordialmente, analisar a qualidade, a segurança e a eficácia de determinada substância no organismo humano.

Em uma visão global, a normativa da União Europeia afirma que:

‘Estudo Clínico’ significa qualquer investigação relacionada com seres humanos destinada: (a) a descobrir ou verificar os efeitos clínicos, farmacológicos ou outros efeitos farmacodinâmicos de um ou mais medicamentos;(b) a identificar quaisquer reações adversas a um ou mais medicamentos; ou (c) a estudar a absorção, a distribuição, o metabolismo e a excreção de um ou mais medicamentos; com o objetivo de apurar segurança e/ou eficácia desses medicamentos.21

A legislação da França, no art. R. 1121-1 do Decreto no 2006/477, de 26 de abril de 2006, apresenta a definição de pesquisas biomédicas:

Art. R. 1121-1 - Qualquer ensaio clínico de uma ou mais drogas que busque descobrir ou verificar os efeitos clínicos, farmacológicos ou outros efeitos farmacodinâmicos, ou que busque estudos de suas absorções, sua distribuição, seu metabolismo e sua excreção com objetivo de averiguar sua segurança ou eficácia.22

No site oficial da agência americana Food and Drug Administration (FDA), o pesquisador William Thomas Beaver descreve a função dos estudos clínicos:

21 Regulamento (UE) 536/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014.

Disponível em: <http://ec.europa.eu/health/files/eudralex/vol1/reg_2014_536/reg_2014_536_pt.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2016.

22 Tradução nossa do original: “Art. R. 1121-1 - Les recherches biomédicales portant sur un

médicament sont entendues comme tout essai clinique d'un ou plusieurs médicaments visant à déterminer ou à confirmer leurs effets cliniques, pharmacologiques et les autres effets pharmacodynamiques ou à mettre en évidence tout effet indésirable, ou à en étudier l'absorption, la distribution, le métabolisme et l'élimination, dans le but de s'assurer de leur innocuité ou de leur efficacité”.

(22)

A função do ensaio clínico controlado não é a ‘descoberta’ de um novo medicamento ou terapia. Descobertas são feitas no laboratório animal, por observação acaso, ou à beira do leito por um médico aguda. A função do ensaio clínico controlado formal é de separar o punhado de descobertas que se revelem verdadeiros avanços na terapia de uma legião de pistas falsas e impressões clínicas não verificáveis, e delinear de forma científica o âmbito e as limitações que acompanham a eficácia de medicamentos.23

No Brasil, as Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que tratam especificamente sobre pesquisa com seres humanos – a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 466/2012 e a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 9/2015, apresentam a seguinte definição, respectivamente:

Pesquisa envolvendo seres humanos – pesquisa que, individual ou coletivamente, tenha como participante o ser humano, em sua totalidade ou partes dele, e o envolva de forma direta ou indireta, incluindo o manejo de seus dados, informações ou materiais biológicos.24

Ensaio clínico – pesquisa conduzida em seres humanos com o objetivo de descobrir ou confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identificar qualquer reação adversa ao medicamento experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental para verificar sua segurança e/ou eficácia.25

23 Tradução nossa do original: “The function of the controlled clinical trial is not the "discovery" of a

new drug or therapy. Discoveries are made in the animal laboratory, by chance observation, or at the bedside by an acute clinician. The function of the formal controlled clinical trial is to separate the relative handful of discoveries which prove to be true advances in therapy from a legion of false leads and unverifiable clinical impressions, and to delineate in a scientific way the extent of and the limitations which attend the effectiveness of drugs”. FDA. Disponível em: <http://www.fda.gov/aboutfda/whatwedo/history/overviews/ucm304485.htm#_edn2>. Acesso em: 22 abr. 2016.

24 Resolução 466/2012 CNS. Disponível em:

<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html>. Acesso em: 26 abr. 2016.

25 Resolução 9/2015 CNS. Disponível em:

<http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/c3dc820047823081b0a7fbfe096a5d32/rdc0009_20_02_ 2015.pdf?MOD=AJPERES>. Acesso em: 26 abr. 2016.

(23)

Pesquisa clínica de medicamentos é, portanto, a pesquisa realizada, por profissional habilitado, em seres humanos saudáveis e/ou doentes, de forma individual ou coletiva, para a verificação dos efeitos clínicos, farmacológicos e/ou farmacodinâmicos, a fim de determinar a absorção, a distribuição, o metabolismo e a excreção de determinada(s) substância(s) no organismo humano, objetivando comprovar a qualidade, a eficácia e a segurança de um medicamento novo ou de eventual melhoria, alteração e/ou inovação proposta aos medicamentos já disponíveis no mercado.

No conceito de pesquisa clínica é necessário englobar também os chamados estudos de bioequivalência26, realizados para comprovar a equivalência farmacêutica entre medicamentos referência27, medicamentos genéricos28 e similares.29

26 “Estudos de Biodisponibilidade/Bioequivalência (BD/BE) de medicamentos: consiste na

comparação de parâmetros farmacocinéticos ou farmacodinâmicos entre medicamento teste e medicamento de referência ou comparador”. Sendo: “medicamento de referência: medicamento comparador cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto à Anvisa”; “Medicamento teste: medicamento submetido ao estudo de BD/BE que é comparado ao a um medicamento de referência/comparador”; e, “Medicamento comparador: medicamento com o qual o medicamento teste será comparado, podendo ser referência ou outro definido pela Anvisa” (RDC 56/2014 Anvisa).

27 “Medicamento de Referência: produto inovador registrado no órgão federal responsável pela

vigilância sanitária e comercializado no País, cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto ao órgão federal competente, por ocasião do registro” (Lei 9.787/99).

28 “Medicamento Genérico: medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se

pretende ser com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI” (Lei 9.787/99).

29 “Medicamento Similar: aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos, apresenta a

mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica, do medicamento de referência registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca” (Lei 9.787/99).

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CAPÍTULO 2 – TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS MEDICAMENTOS E DA EXPERIMENTAÇÃO COM SERES HUMANOS

A exploração do mundo farmacêutico pode ser evidenciada desde os primórdios das sociedades. Historiadores e arqueólogos reconhecem indícios da manipulação de fármacos oriundos do período arcaico e do período clássico. Embora nessa época fosse evidente a predominância da magia e da religião em relação às doenças30, foram encontradas grandes contribuições para o universo dos medicamentos.

Por exemplo, expedições arqueológicas encontraram nas ruínas de Nippur, que corresponde ao período de 4000 e 1500 a.C, da civilização mesopotâmica, tabelas de argila com caracteres coniformes descrevendo mais de 8 mil receitas empíricas com 30 elementos na forma de princípios ativos, além de processos farmacêuticos diversos, como infusões, ebulições, filtrados, unções etc. Esta tabela, traduzida e publicada em 1940, ficou conhecida como A Antiga

Farmácia do Nippur.31

No Egito antigo, a medicina se relacionava com aspectos sobrenaturais. Era composta por mito, superstição e diversos tratamentos práticos medicinais. Os médicos acreditavam que o Deus Toth era o responsável por indicar os medicamentos eficazes para cada doença. As revelações eram registradas nos templos de Sais ou Heliópolis.32 A civilização egípcia, por volta de 4300 a.C., também contribuiu para a farmacologia com anotações posteriormente encontradas em papiros.33

30 DIAS, José Pedro Souza. A farmácia e a história: Uma introdução a história da farmácia, da

farmacologia e da terapêutica. Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, 2005. p.10.

31 JOHNSON, Adriana Patrícia Acuña. Historia de la farmacia y de la profisión farmacéutica desde la

perspectiva del medicamento. In: NOVAES, Maria Rita Garbi; LOLAS, Fernando; SEPÚLVEDA, Alvaro Quezada (Orgs). Ética e fármacia: uma abordagem latinoamericana em saúde. Brasília: Thesaurus, 2009. p. 63.

32 ROONEY, Anne. A história da medicina: das primeiras curas aos milagres da medicina moderna.

São Paulo: M. Books, 2013. p. 103.

33 O papiro consiste numa planta aquática do Rio Nilo (espécie de junco), da qual os antigos egípcios

usavam o talo para fabricar um tipo de papel (a palavra papel é originada da palavra papiro), no qual se escreviam com uma pena de junco. Disponível em: <http://www.egipto.com.br/papiro/>. Acesso em: 26 abr. 2016.

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O Papiro de Ebers (1500 a.C), o Papiro de Kahun (1850 a.C.) e o Papiro de Hearst (1600 a.C.) –, revelam os segredos de medicação. Alguns continham cerca de 810 prescrições e 700 remédios destinados à cura das mais diversas enfermidades, desde mordida de cobra, contraceptivos em forma de supositórios até febre puerperal.34 Grande parte da farmácia egípcia foi incorporada, posteriormente, por Hipócrates e Dioscórides.

Por volta dos anos de 430 a 429 a.C, Hipócrates, até hoje conhecido como o pai da medicina, teve grande influência no universo dos medicamentos. Sua teoria sobre o equilíbrio dos humores trouxe a utilização de técnicas e de medicamentos para a manutenção da saúde. Hipócrates entendia que o corpo humano era formado por quatro humores: o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra, procedentes, respectivamente, do coração, do cérebro, do fígado e do baço. Para a manutenção do equilíbrio entre os humores do corpo, Hipócrates recomendava boa dieta e bom estilo de vida, tratamento com drogas e, por último, cirurgias.35

Como formas terapêuticas utilizavam-se sangrias, sanguessugas, drogas vegetais e animais. Já àquela época, Hipócrates aconselhava seus seguidores a mastigar as folhas de salgueiro para alívio de dores e de febre. A folha de salgueiro, na atualidade, é a matéria-prima principal da Aspirina, sintetizada, em 1853, pelo químico francês Charles Fréderic Gerhardt.36

Dioscórides destacou-se entre os povos greco-romanos, reunindo todo o conhecimento farmacológico de seu tempo na obra De materia medica – uma fonte de suma importância que permaneceu em uso até a Renascença37 – a qual possuía cinco volumes que descreviam os usos medicinais de ervas, plantas, óleos e minerais.

35 ROONEY, Anne. A história da medicina, 2013, p. 111. 36 Ibid., p. 116.

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Em Alexandria, por volta de 162 d.C, Galeno, fortemente influenciado pelos postulados filosóficos de Platão e Aristóteles e pelas raízes da medicina hipocrática, dedicou-se a formular a farmacologia racional. Sistematizou seus estudos na obra Sobre o Método Terapêutico38 e deu origem à chamada farmácia galênica, sendo considerado o pai da alopatia.

Galeno (131-201 d.C), médico do imperador Marco Aurélio, retomou o trabalho sistemático de Dioscórides (1º século da Era Cristã) e realizou uma súmula dos conhecimentos médicos e terapêuticos da época, desenvolvendo o que foi considerado por muitos séculos o mais completo sistema de terapêutica medicinal por meio de extratos de plantas e de outros produtos naturais.39

Na China foi encontrado, em uma tumba lacrada de 168 a.C, um manuscrito com a descrição de ervas e óleos, conhecido como Receitas Para

Cinquenta e Duas Doenças. O lendário imperador Shen Nung escreveu o Divino Clássico de Raízes-Ervas do Produtor, que incluía 365 remédios derivados de

plantas, animais e minerais, formando a primeira farmacopeia chinesa.40

Dessa forma, é inconteste que a sede pela cura de doenças é inerente à natureza humana. O saber científico na sociedade moderna é fruto de testes e estudos realizados por nossos antepassados, mesmo que a finalidade não fosse, de fato, tão evidente à época. A descoberta terapêutica da cegueira noturna, doença causada pela insuficiência de Vitamina A, representa um exemplo de que muitas descobertas não foram realizadas intencionalmente.

Nesse caso, um médico da antiga Suméria prescrevia aos seus pacientes que apresentavam sintomas de cegueira noturna, a ingestão de fígado animal, sem saber que fígado é rico em Vitamina A41 – a responsável pela melhora dos sintomas de cegueira noturna e, por esse motivo, os pacientes que faziam toda a dieta prescrita apresentavam melhora nos sintomas.42

38 JOHNSON in: NOVAES; LOLAS; SEPULVEDA, Ética e farmácia, 2009, p. 70.

39 SILVA, Maurício Rocha. Fundamentos da Farmacologia. São Paulo: Edart; Brasília: INL, 1973. p.

5. v. 1

40 JOHNSON in: NOVAES; LOLAS; SEPULVEDA, Ética e farmácia, 2009, p. 69. 41 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 120.

(27)

Dessa forma, o trajeto histórico, desde os povos ancestrais até as descobertas mais reconhecidas pela ciência, como a descoberta do primeiro antibiótico – a penicilina, por Alexandre Fleming em 1928, posteriormente, em 1935, a da sulfonamida, por Gerhard Domagk, até a descoberta da bactéria criada geneticamente para a fabricação de insulina em 1977, demonstram que a história da medicina e da farmácia sempre caminharam em conjunto com a história da humanidade, proporcionando, cada vez mais, longevidade à espécie.

São muitas as descobertas realizadas pelos homens no campo da medicina. Mas para a confirmação da veracidade de todas as descobertas realizadas muitos testes com seres humanos precisaram ser realizados. A utilização do corpo humano – vivo ou morto – para fins científicos também tem origem nos nossos ancestrais mais antigos.

Na antiguidade grega cadáveres humanos eram considerados um poderoso remédio. O já citado Papiro de Ebers (1500 a.C) revela que o cérebro humano consistia um ótimo remédio para lesão nos olhos43. Celsus, no Século I, anunciou que tomar o sangue, ainda quente, de um gladiador recém-assassinado poderia curar a epilepsia.44 No século XVI, Paracelso, também um defensor do sangue humano, defendia que os corpos de pessoas assassinadas de forma rápida e violenta eram uma fonte valiosa de medicamentos.45

Paracelso defendia um posicionamento mais rebelde em relação aos demais estudiosos do assunto, valorizando a experimentação como forma de combate das doenças. Silva afirma que: “A atitude de rebeldia de Paracelso certamente contribuiu para o advento de uma medicina menos dogmática e mais aberta à crítica da observação e da experiência”46.

43 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 123. 44 Ibid., p. 124.

45 Ibid., p. 125.

(28)

O valor terapêutico das substâncias descobertas ao longo dos anos foi consagrado pela tradição de uso e pela observação dos médicos. O conhecimento da anatomia humana, através de dissecação de cadáveres, enfrentou longo trajeto até a sua legalização. Muitas sociedades antigas47 proibiam a dissecação dos corpos humanos, pois acreditavam que a alteração do estado físico pós-morte poderia prejudicar o trajeto espiritual dos mortos. Diante dessa situação, grande parte do conhecimento anatômico era oriundo da dissecação de animais.48

São Tomás de Aquino (1225-74) quebrou alguns paradigmas ao afirmar que no dia do julgamento final a alma e o corpo se tornariam um só, e que a alteração do corpo físico não influenciaria na ressureição49. Superadas as crenças religiosas, as dissecações passaram a ser grandes espetáculos públicos tanto para a punição de criminosos como para fins acadêmicos. Em 1316, Mondino dei’Luzzi da Itália, foi o primeiro a publicar um manual prático de anatomia.50

A necessidade dos anatomistas por corpos gerou grande demanda. Os corpos se tornavam cada vez mais escassos, tanto que a Grã-Bretanha publicou a Lei do Assassinato de 1752, a qual permitiu que o corpo de todos os criminosos executados fosse destinado às pesquisas. Porém, após a reforma jurídica do século XIX, houve grande redução das execuções por crimes.51

A escassez de corpos para pesquisas fomentou a venda de cadáveres contrabandeados. Túmulos eram constantemente roubados e diversos assassinatos começaram a ocorrer. Na Grã-Bretanha, por exemplo, entre os anos 1827 e 1828, o caso do imigrante Willian Burke ganhou destaque. Willian Burke, em coautoria com seu amigo Willian Hare, cometeu cerca de 17 assassinatos, a fim de vender os corpos à Escola Médica da Universidade de Edinburgh.52

47 “Embora os embalsamadores egípcios removessem órgãos enquanto mumificavam corpos,

aparentemente o conhecimento deles não era compartilhado com os médicos. Além disso, nem a medicina chinesa nem a Indiana nos Sec. VI a.C, tampouco a primeiros cristãos e também os muçulmanos permitiam a dissecação de corpos de seres humanos” (ROONEY. A história da

medicina, 2013. p. 120).

48 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 26. 49 Ibid., p. 28.

50 Ibid., p. 29. 51 Ibid., p. 31. 52 Id.

(29)

Concomitantemente à realização das dissecações de corpos, muitos experimentos se realizaram em seres humanos vivos objetivando entender o funcionamento do corpo e de seu metabolismo. Um caso muito famoso ocorreu em 1822 no Estado do Michigan, nos Estados Unidos da América, com o cirurgião Willian Beaumont.

Willian Beaumont realizou uma cirurgia em um militar franco-canadense, Alexis St. Martin, que havia sido ferido por um tiro na região abdominal. Embora o rapaz tenha sido salvo pela cirurgia, restou uma sequela permanente em forma de fístula no abdômen, a qual concedia acesso direto ao sistema digestivo53. O médico, em comum acordo com o paciente, observou durante nove anos, através de uma sonda, o funcionamento da digestão. O médico conseguiu comprovar ao longo de sua experiência a presença de ácido hidroclorídrico na digestão humana, comprovando, portanto, o caráter químico do processo digestivo.54

Muito embora o caso narrado tenha ocorrido através de livre consentimento, a história da experimentação com seres humanos não seguiu os passos da liberdade individual e, muitas vezes, foi utilizada por inescrupulosos atos contra a raça humana. Por outro lado, diversos médicos e cientistas realizaram experimentos consigo mesmos, ocasionando, em alguns casos, a própria morte.

O médico inglês, Willian Stark, por volta dos anos de 1760, testou dietas restritivas até morrer de escorbuto55 aos 29 anos56. O gastroenterologista australiano, Barry Marshall, ganhou o Prêmio Nobel ao ingerir a bactéria

Heliocobacter pylori e comprovar, em si mesmo, que ela era a causadora de úlceras

no estômago57. E muitas outras pesquisas foram realizadas, ao longo dos anos, em

involuntários, ou seja, sem o consentimento dos envolvidos, que, em muitos casos,

eram escravos e/ou pessoas em estado de completa vulnerabilidade.

53 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 44. 54 Ibid., p. 44.

55 Doença provocada pela ausência de Vitamina C. 56 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 204. 57 Id.

(30)

A primeira execução de pesquisa clínica clássica ocorreu em 1747 com o médico naval inglês James Lind, que buscava a cura do escorbuto. Ele separou os marinheiros58 acometidos pela doença em seis pares, e tratou cada qual com uma substância diferente. Verificou que o par que recebeu duas laranjas e um limão por dia, se recuperou rapidamente. A doença passou a ser controlada com a distribuição de uma porção de suco de limão aos marinheiros59.

Com o crescimento exacerbado da necessidade dos pesquisadores por mais corpos, o lado obscuro da pesquisa clínica começou a transparecer. Escravos eram habitualmente utilizados para diversos experimentos repugnantes. Quando adoeciam, seus senhores os levavam aos hospitais, que, em vez de cobrar pelo tratamento, solicitavam a utilização dos escravos para fins de pesquisas.60

Existiam casos de compras de escravos realizadas diretamente por hospitais e centros de pesquisas com um único fim: testes científicos. Os experimentos consistiam desde a contaminação proposital de doenças, como sífilis e malária, até a submissão à altas temperaturas dentro de fornos para a verificação da tolerância do corpo humano ao calor.61

Na época da escravidão, os escravos eram considerados verdadeiras

cobaias de laboratório.

Vê aquela casa? Aquela casa grande de tijolos aparentes? Descendo a rua?

Eles costumava levar os mortos para lá Enrolados em um longo lençol branco. E às vezes quando um negro parava. Querendo saber quem morreu, Pegavam um taco

E lhe davam um golpe na cabeça. E arrastavam o pobre negro morto frio Por aquele corredor

Para investigar seu fígado – luzes – Sua moela e a vesícula.

Tiram as mãos e os pés daquele negro – Seus olhos, cabeça e tudo,

E quando os estudantes terminam Nada restou.62

58 Doença muito comum em marinheiros que ficavam por anos em viagens com dieta restritiva e

isenta de vitamina C.

59 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 203. 60 Ibid., 2013, p. 206.

61 Id.

(31)

O ápice da experimentação científica se deu com o advento da Guerra entre Japão e China (1930-1945) e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). É possível verificar que a experimentação com seres humanos está encoberta pelas sombras dos campos de concentração. Ao analisar um breve relato das condições sub-humanas a que foram submetidos os prisioneiros de guerras e os judeus, é possível enumerar uma lista repugnante de experimentos que realizados sob a justificativa de promoção do desenvolvimento da ciência.

Paul Mcneill, em sua obra Ethics and politics of human experimentation, reuniu uma vasta documentação com a descrição dos eventos ocorridos no século XVIII. A lista conta com experiências que vão desde a submissão de militares saudáveis à transfusões de sangue infectado por tifo, à contaminação proposital de sífilis e outras doenças até amputações de membros, com e sem anestesia, para verificação da eficácia de substâncias anestésicas.63

Na Guerra entre China e Japão os prisioneiros eram submetidos a testes com armas biológicas, desidratação até à morte, congelamento de membros, exposição à radiação, além da troca de sangue com animais.

Os campos nazistas também ficaram conhecidos como os locais onde experiências macabras eram realizadas com os judeus. A submissão de crianças à desnutrição para averiguação da tolerância do corpo à fome era algo comum; Mulheres submetidas à esterilização mediante Raio X ou, então, a fecundações artificias com sêmen de animais. Foram realizadas diversas infecções propositais de tuberculose, tifo, malária entre outras doenças de interesse dos pesquisadores.

Diversos testes eram realizados sem qualquer padrão ético ou respeito à dignidade da pessoa humana. É possível afirmar que os campos nazistas reduziram os homens a coisas, sem qualquer piedade. Congelamentos de pessoas realizados em tanques, aquecimentos coletivos em fornos, técnicas cirúrgicas desnecessárias e sem anestesia, ferimentos por estilhaços, administração de venenos para estudar seus efeitos letais, testes aplicando corantes químicos em olhos de presos na tentativa de mudar suas cores, experiências com gêmeos, entre outros testes de interesses científicos.

63 MCNEILL, Paul Murray. Ethics and politics of human experimentation. United Kingdom:

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Um evento chocante, amplamente difundido, foi a experiência realizada com um grupo de ciganos submetidos à ingestão apenas de água do mar. O objetivo era apurar a tolerabilidade do corpo humano à agua salgada. Relatos demonstram que as pessoas foram encontradas lambendo os ladrilhos recém-lavados na ilusão de sanar a desidratação extrema.64 Muitas descobertas foram obtidas à custa da tortura de outros seres humanos.

Ao final da Guerra, muitos médicos e pesquisadores foram julgados pelo Tribunal de Nuremberg e condenados pelos crimes cometidos. Desse passado obscuro e como resposta aos horrores cometidos no período, surgiu a consciência mundial sobre a dignidade da pessoa humana e sobre ética em pesquisa. Com o advento do Código de Nuremberg, e posteriormente da Declaração de Helsinque, foram estabelecidos os princípios éticos para a pesquisa com seres humanos, que trouxeram como objetivo principal a imposição de alguns limites às pesquisas científicas.

A história comprovou que existe um lado obscuro por trás da curiosidade científica. Os interesses desmedidos da ciência levaram a experiências desumanas, com a redução da condição humana a cobaias laboratoriais. Entretanto, não se pode negar que passos foram dados e, com eles, a consciência ética, social e jurídica de que avanços científicos não poderão se sobrepor à dignidade da pessoa humana e aos direitos individuais.

Nesse sentido, é importante mencionar as conquistas alcançadas pelo Código de Nuremberg (1947), pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), pela Declaração de Helsinque (1964), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Político (1966), pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (1997), pela Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos (2003), e pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2004). Todos esses diplomas consagraram valores fundamentais no que tange ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana e o dos direitos do homem de uma forma universal.

64 Casos Desconhecidos. Disponível em:

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No contexto do presente estudo, com fito de complementar o trajeto histórico proposto no presente capítulo, passaremos a analisar dois diplomas que compõe, indubitavelmente, a história da pesquisa clínica no Brasil e no mundo: O Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque.

2.1 CÓDIGO DE NUREMBERG

Ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), instaurou-se no Palácio da Justiça de Nuremberg, Alemanha, uma corte de juízes americanos incumbidos dos julgamentos pelos crimes cometidos pelos nazistas, conhecido como o Tribunal de Nuremberg.

Foram 12 casos julgados pelo Tribunal de Nuremberg. O primeiro deles, realizado em 1947, objetivou o julgamento dos crimes praticados pelos médicos nazistas, diretamente relacionados às atrocidades cometidas na realização de experimentos com seres humanos. Como resposta aos crimes cometidos, o Tribunal elaborou um conjunto de preceitos éticos a serem observados na condução de pesquisas com seres humanos. Esse conjunto de princípios ficou conhecido como Código de Nuremberg.

A realização de pesquisas envolvendo seres humanos ficou, após a publicação do Código de Nuremberg, subordinada ao respeito da autonomia da vontade individual. O consentimento livre e esclarecido do participante de pesquisa se tornou condição precípua para a condução de estudos clínicos65, e a possibilidade de se retirar do estudo, a qualquer tempo, uma liberdade garantida.66

65 “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as

pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e

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Firmaram-se condições específicas para a condução de experimentos dessa natureza. O Código buscou impor limites à ciência desenfreada, determinando que o experimento não poderá ser realizado “de maneira casuística ou desnecessariamente”67, ou ainda, “sem o conhecimento prévio da evolução da doença através de testes realizados com animais”68.

Como padrões éticos que visam resguardar a dignidade da pessoa humana, o Código de Nuremberg trouxe a necessidade de impedir sofrimentos, danos desnecessários, possibilidade de morte ou invalidez permanente69, além de exigir a proporcionalidade entre o risco aceitável e o problema que o pesquisador, pessoa cientificamente qualificada, pretende resolver. Embora os preceitos éticos concedidos pelo Código tenham buscado garantir o respeito à dignidade da pessoa humana na condução de experimentos científicos, os efeitos esperados não foram prontamente alcançados.

Debora Diniz e Marilena Corrêa explicitam que as diretrizes éticas de Nuremberg não foram capazes de sensibilizar os médicos para o respeito necessário no uso de seres humanos em pesquisa clínica70 e, ao explicar os possíveis motivos dessa falha, citam Rothman (1991) que aduz:

O julgamento dos médicos nazistas em Nuremberg recebeu pouca cobertura da imprensa e, antes da década de 70, o próprio código raramente era citado ou discutido nas revistas médicas. Pesquisadores e clínicos americanos aparentemente consideravam Nuremberg irrelevante para seu próprio trabalho.71

responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente” (CÓDIGO de Nuremberg, 1947).

66 “O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento”

(CÓDIGO de Nuremberg, 1947).

67 Código de Nuremberg, 1947. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/nuremcod.htm.>

Acesso em 10 de dezembro de 2016.

68 Id.

69 “Exceto quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento” (CÓDIGO de

Nuremberg, 1947).

70 DINIZ, Débora; CORRÊA, Marilena. Declaração de Helsinque: relativismo e vulnerabilidade. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 17, v. 3, p. 679-688, maio-jun., 2001.

71 ROTHMAN, David. Making the Invisible Visible. Strangers at the Bedside. Washington, DC: Basic.

(35)

Com o decorrer do tempo notou-se que os preceitos de Nuremberg não foram amplamente incorporados ao mundo científico, eram vistos, todavia, como aplicáveis somente às atrocidades vivenciadas no nazismo, ou seja, só diziam respeito à medicina nazista, e não ao médico comum. Esse fato se tornou ainda mais evidente com o acontecimento do Caso Tuskegee, ocorrido após o Código de Nuremberg.

O Caso Tuskegee, consistiu na condução de um estudo clínico que “envolveu 600 homens negros, sendo 399 com sífilis e 201 sem a doença, da cidade de Macon, no estado do Alabama”72. O estudo objetivava observar a evolução da doença sem a administração de tratamento. Goldim relembra que, em 1929, já havia sido publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados históricos, relatando mais de 2 mil casos de sífilis não tratados.73 Ou seja, os objetivos do Caso

Tuskegee não eram essenciais.

Com isso, foi possível observar que mesmo sob a égide do Código de Nuremberg, o qual estabeleceu padrões éticos para a condução de experimentos com seres humanos, diversos indivíduos morreram no transcurso desse estudo pela impossibilidade de acesso ao tratamento, diga-se, que já existia.

Complementa Goldim:

A partir da década de 50 já havia terapêutica estabelecida para o tratamento de sífilis, mesmo assim, todos os indivíduos incluídos no estudo foram mantidos sem tratamento. Todas as instituições de saúde dos EEUU receberam uma lista com o nome dos participantes com o objetivo de evitar que qualquer um deles, mesmo em outra localidade recebesse tratamento. A inadequação do estudo foi seguindo o padrão conhecido como ‘slippery slope’, isto é, uma inadequação leva a outra e o problema vai se agravando de forma crescente. Da omissão do diagnóstico se evoluiu para o não tratamento, e deste para o impedimento de qualquer possibilidade de ajuda aos participantes.74

72 GOLDIM José Roberto. O Caso Tuskegee: quando a ciência se torna eticamente inadequada.

1999. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm>. Acesso em: 22 abr. 2016.

73 Id. 74 Id.

(36)

Em 1997, ainda estavam vivas 8 pessoas e o governo americano se desculpou publicamente pelo ocorrido.75 O filme Cobaias, do diretor Joseph Sargent (1997), tentou demonstrar o drama vivenciado pelos pacientes.

Entre outros exemplos ocorridos, a Síndrome da Talidomida76 nos anos 60, conhecida por ocasionar o nascimento de diversos bebês acometidos por Focomelia77. Cerca de 20 mil mulheres foram submetidas a testes clínicos para a eficácia da talidomida, mas sem o consentimento adequado. Estima-se que de 10 mil a 20 mil bebês em mais de 40 países foram afetados.78

Note-se que as diretrizes éticas estabelecidas pelo Código de Nuremberg não foram incorporadas no ethos científico dessa época, o qual permaneceu com as premissas praticadas no regime nazista.

Em 1966, Henry Beecher publicou um trabalho histórico no The New

England Journal of Medicine, levantando 22 estudos clínicos acometidos por graves

infrações éticas.79 Volnei Garrafa relembra dois casos relatados por Beecher em seu estudo, em um deles foi introduzido, em pacientes idosos hospitalizados, células hepáticas cancerosas, à revelia do consentimento desses indivíduos, informados que receberiam apenas “células”.

Noutro estudo clínico, com o fito de estudar anticorpos tumorais, o tumor de uma menina portadora de melanoma foi transplantado para a sua mãe, devidamente esclarecida e informada, com a omissão do quadro terminal da criança, a qual morreu um dia após o enxerto. A mãe faleceu 455 dias após o transplante.80

75 CANDIOTTO, César. Biopoder e racismo político: uma análise a partir de Michel Foucault. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis. Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 20-38, jul/dez. 2012.

Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/viewFile/1807-1384.2012v9n2p20/23512>. Acesso em: 21 jun. 2016.

76 Talidomida, medicamento desenvolvido na Alemanha, em 1954, inicialmente como sedativo. A

droga era dada às mulheres grávidas para combater os sintomas do enjoo matinal. Associação de portadores de Síndrome de Talidomina. Disponível em: <http://www.talidomida.org.br/>. Acesso em: 10 de jul. 2016.

77 Trata-se de uma síndrome caracterizada pela aproximação ou pelo encurtamento dos membros

junto ao tronco do feto – tornando-os semelhantes aos de uma foca.

78 ROONEY. A história da medicina, 2013, p. 207.

79 BEECHER, Henry. Ethics and clinical research. New England Journal of Medicine, 1966, n. 274,

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