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CAPÍTULO 1. UM ESTUDO DOS LETRAMENTOS ESCOLARES

1.4 Suporte teórico

1.4.3 A sala de aula como um lugar de conversas

A partir disso, retomamos o conceito de linguagem, enfatizando o seu caráter de atividade. A interação verbal pressupõe, por excelência, a interlocução oral entre os indivíduos no discurso, mas entende-se, neste estudo, que toda e qualquer expressão linguística, cujo fim seja uma interlocução entre um eu e um tu possa assim ser considerada. Conceber, a linguagem como uma “atividade” que se desenvolve numa relação dialógica (BAKHTIN, 1990), nos obriga a pensar como esse dialogismo ocorre em todas as situações de interação. De acordo com esse autor, o dialogismo se concretiza de duas formas: a) na presença dos locutores, como se verifica numa situação de fala, em que os mesmos se colocam como enunciadores no momento em que se dá a interlocução; b) na ausência física do alocutário, como é o caso da escrita ou dos monólogos. Em b), apesar de encontrarem-se distantes os alocutários, eles se constroem como enunciadores/enunciatários uma vez que, quem enuncia traz para a cena enunciativa o outro a quem sua enunciação se dirige.

Logo, toda interação verbal pressupõe um diálogo construído em uma relação de interlocução que se realiza, pelo menos, das seguintes formas: 1) entre interlocutores (o eu e o tu) reais numa interação face a face, ou seja, os sujeitos em situações orais (ou naturais) de interlocução (a voz em ação), na enunciação propriamente dita; 2) entre interlocutores imaginários, isto é, que estão ausentes da interlocução no momento de sua enunciação,

usando a escrita como forma de interagir com outros locutores (a ação através da letra, da escritura). Disso depreende-se que

Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social(BAKHTIN, 1990, p. 109).

Valendo-nos agora das premissas que regulam as situações de interlocução no que diz respeito a localizar os enunciadores em seu interior, podemos aplicá-las também nas relações estabelecidas em sala de aula, pois

No contrato de comunicação, há um quesito essencial: o direito à palavra que um parceiro deve conceder ao outro, para que se processe o jogo comunicativo. Torna-se indispensável, pois, que cada falante seja reconhecido como tal pelo seu parceiro na interlocução.

Charaudeau (1996, p. 258) salienta que “ele não é um sujeito falante sem o outro – nada de locutor sem interlocutor, nada de EU sem TU.” Existem, portanto, três condições que fundamentam o direito à palavra na perspectiva semiolinguística: a primeira refere-se ao SABER; a segunda ao PODER; e a última ao SABER-FAZER do sujeito comunicante.

O SABER refere-se ao conhecimento partilhado entre os actantes da comunicação. Nesse domínio, circulam os consensos que não são necessariamente a verdade sobre o mundo. No entanto, apresentam forte grau de verossimilhança. Os indivíduos, em uma dada sociedade, são levados à troca de práticas discursivas, em um campo de representações supostamente partilhadas. (...)

Analisando-se a condição que se refere ao PODER, tem-se que os indivíduos são levados a ter comportamentos diversos e a desempenhar papéis sociais diferentes uns dos outros que, em troca, dão-lhes status específicos (professor, jornalista,...). Assim, o sujeito está impregnado de realidade psicossocial no jogo comunicativo que o define. (...)

... o SABER-FAZER permite avaliar a atuação do indivíduo, como sujeito comunicante, julgando-o competente ou não. Para Machado (1996, p. 101), o SABER-FAZER refere-se “ao grau de encenação discursiva que o sujeito comunicante mantém nas diferentes circunstâncias comunicativas, sem esquecer a importância do projeto e fala do sujeito comunicante (...)” (PRAZERES, 2009, p. 54-5). Estão postas as regras do jogo interlocutivo, principalmente, no contexto da sala de aula: quem SABE, quem tem o PODER e quem SABE FAZER? As aulas são realizadas, conforme

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veremos, no Capítulo 3, por atividades com a língua em sua modalidade oral e escrita, apoiando-se em diferentes linguagens pelas e com as quais os conteúdos escolares, ditados pelos autores dos livros didáticos e pelos currículos, se fazem presentes pela mediação do professor. Como as aulas se desenvolvem através da modalidade oral da língua, as questões envolvidas na transposição didática se avultam.

Como o foco é a interação verbal, expressa por oralidade, por escrita e por outras linguagens nas práticas escolares de leitura e de escrita, as contribuições da Análise da Conversação são muito importantes, pois há de se considerar que, na construção dos conhecimentos, ocorrem ações entre os interlocutores e essas para serem bem sucedidas dependem da existência de interlocução entre professores e alunos. Por isso esses dois polos devem ser considerados também como objeto de nosso estudo. Não podemos centrar nos processos e esquecer os atores que neles interagem e os definem, porque

1) a conversação é, em essência, a prática social mais comum nas relações entre os indivíduos numa sociedade e, portanto, o deve ser na sala de aula. 2) é através da conversação que os indivíduos se identificam e (re)velam as suas mais profundas acepções; 3) é através da conversação que se criam as relações de controle social imediato; 4) a conversação exige que os participantes, além de terem habilidades linguísticas, sejam capazes de coordenar um enorme número de ações para garantir a eficácia da interação verbal (MARCUSCHI, 2005, p. 5).

É importante insistir neste ponto: a interação face a face não é condição essencial para que haja uma conversação, mas é necessário que haja uma interação centrada. Como exemplo disso, podemos pensar numa conversa entre duas pessoas ao telefone: elas interagem entre si, sua conversação é centrada em um tema ou temas, há mecanismos discursivos para controlar essa interação (os turnos de conversas, os sons pronunciados e que indicam que o outro está ouvindo, entendendo ou não, concordando ou não com o que lhe é dito). Pensemos, ainda, num site de bate-papo ou numa teleconferência entre duas ou mais pessoas. Os interlocutores estão ‘ausentes’, podem se encontrar a milhas de distância uns dos outros – apesar disso, em alguns casos, dependendo dos recursos tecnológicos que possuem, podem visualizar-se uns aos outros. Eles não estão em uma interlocução “cara a cara” – pelo menos, no sentido de comunicação real, pois os recursos de captação da imagem não garantem que se percebam todas as estratégias gestuais, expressivas e mesmo auditivas de todos os presentes nessa situação. Contudo, a interlocução é guiada por interesses comuns e a interação se faz.

A opção teórico-metodológica pela AC9 também se deve ao fato de que, prioritariamente, as atividades desenvolvidas em sala são centradas em determinado(s) tema(s) ou discussão de ponto(s) proposto(s) pelo professor ou por alunos e, apesar do controle exercido por aquele, a interação verbal se realiza. Há sempre o controle de um ou de outro interlocutor em qualquer situação de interação verbal. Estamos propondo considerar a sala de aula uma situação de conversa (retomaremos esse tema nos capítulos seguintes), demonstrando que essa é uma proposta coerente com os princípios da Análise da Conversação.

A conversação se constitui a partir de cinco características: (a) interação entre pelo menos dois falantes; (b) ocorrência de pelo menos uma troca de falantes. (c) presença de uma seqüência de ações coordenadas; (d) execução numa identidade temporal; (e) envolvimento numa interação centrada (MARCUSCHI, 2005, p. 15).

A conversa em sala é bastante assimétrica e talvez, deva-se, também, a esse fator a ocorrência de um baixo número de alunos que fazem intervenções de alguma natureza: responder e/ou fazer perguntas. Nem sempre é fácil para todos os interlocutores ‘roubar’ um turno de fala, pois as conversações obedecem a princípios, segundo os quais estão delimitados, no próprio processo de interação, o saber quem fala e quando fala. Exige-se o cumprimento de regras básicas a serem observadas pelos possíveis interlocutores:

Convém notar que o mecanismo que governa a tomada de turno é um sistema localmente comandado, tendo assim um caráter visceralmente contextual e não automatizado, segundo S/S/J (1974)10, as técnicas e regras desse mecanismo são:

Técnica I – O falante corrente escolhe o próximo falante, e este toma a palavra iniciando o próximo turno;

Técnica II – O falante corrente pára e o próximo falante obtém o turno pela auto-escolha.

As duas regras básicas para a operação dessas técnicas são:

Regra I - Para cada turno, a primeira troca de falante pode ocorrer se: (1a): o falante corrente, C, escolhe o próximo falante P, pela Técnica I.

(1b): o falante corrente, C, não usa a Técnica 1 de escolher o próximo, P, então qualquer participante da conversação pode – mas não necessariamente – auto-escolher-se como o próximo pela Técnica II.

(1c): o falante corrente, C, não escolhe o próximo, P, e nenhum outro falante se auto-escolhe, então o falante corrente, C, pode (mas não obrigatoriamente) prosseguir falando.

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Deste ponto em diante, poderemos, eventualmente, fazer referência à Análise da Conversação por AC.

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SACKS, H.; SCHEGLOFF, E. E.; JEFFERSON, G. A simplest systematic for the organization of turn-taking for conversation. Language, 50, 696-735.

Regra II – Se no primeiro lugar relevante para a troca de turno não ocorre nem (1a) nem (1b) e se dá (1c), em que o falante corrente, C, prossegue, então, as Regras (1a), (1b) e (1c) reaplicam-se no próximo primeiro lugar relevante para a transição, e, se esta não ocorrer, assim se procederá, recursivamente, até que se opere a transição (MARCUSCHI, 2005, p. 20-1).

Assim, para que as técnicas e regras acima se cumpram – o que não é muito fácil - é necessário que os interlocutores saibam quando se dá o fim do turno do outro e os sinais disso em sala de aula são, às vezes, muito sutis: a entonação baixa, o olhar fixo por alguns instantes em algum aluno, a pausa, uma hesitação, um silêncio, a linguagem corporal e outros índices ativados na situação conversacional instalada. Todos esses são marcadores extraverbais cuja significação deve ser conhecida por todos. Mas nem sempre essas técnicas e regras são obedecidas na sala de aula. Há momentos em que várias vozes se enunciam e isso é motivado pela própria ação do professor que estimula a resposta em coro.

Nesse caso a simultaneidade de vozes – marcada por respostas curtas (no caso uma palavra que seria o gancho para o turno seguinte da professora) não põe em risco a organização conversacional, mas contribui para que o professor possa dar continuidade ao tema que aborda. A “simultaneidade de vozes ocorre quando o turno é realizado desde o seu início por várias pessoas ao mesmo tempo” (...) e ela ativa alguns mecanismos reparadores de tomada de turno” (MARCUSCHI, 2005, p.23). Uma segunda característica que esse mecanismo possui é a “parada prematura de um falante”. No caso, temos vários falantes – os alunos respondem em coro – e o turno de falas que a eles é permitido regula-se pelo professor. Com isso, as sequências conversacionais – os vários turnos - dão ao professor a certeza de que os alunos o acompanham no raciocínio dele. Pelo menos, os estudantes dão as respostas esperadas.

Marcuschi (2005) distingue a sobreposição de falas da simultaneidade de falas. Enquanto a segunda indica dois turnos superpostos, ocorrendo ao mesmo tempo desde o início; a primeira índica a ocorrência de uma fala dentro da fala do outro. Uma das situações que pode provocar a sobreposição de vozes é a hesitação. Enquanto um interlocutor ainda está elaborando ou enunciando a sua fala outro se insere no turno e completa a informação. É preciso, também, observar que os silêncios, as pausas, as hesitações, segundo Marcuschi (2005), ao lado das perguntas e respostas, são importantes elementos organizadores da conversação.

Apesar de termos afirmado que há interação nas aulas observadas, ainda há a superioridade da voz do professor sobre a voz dos alunos. Quando convidados a dizer o que sabem, o que querem fazer, os alunos demonstram se atrapalharem, não estarem à vontade para fazer/dizer aquilo que deles se espera naquele instante. De um lado o discurso oral do professor que, mesmo no momento em que deseja fecundar o silêncio, “faz calar” seus alunos; de outro, o silêncio do aluno, apesar de ter-lhe sido dado o direito à palavra, acaba por fazê-lo sucumbir à palavra. Contudo, o silêncio, assim como as palavras, são múltiplos de significação (ORLANDI, 2007).