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CAPÍTULO 1. UM ESTUDO DOS LETRAMENTOS ESCOLARES

1.4 Suporte teórico

1.4.7 Por uma noção de letramento(s): caminhos

Resta, ainda, uma pergunta: qual é conjunto de habilidades que compõe o(s) letramento(s)? Ao pensar sobre as formas de se avaliar ou medir o fenômeno que caracteriza o letramento, Soares (2003a) expressa sua preocupação por considerar que

O letramento cobre uma vasta gama de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais; o conceito de letramento envolve, portanto, sutilezas e complexidades difíceis de serem contempladas em uma única definição (SOARES, 2003b, p.68-9). A partir da segunda metade do século passado, segundo Marcuschi (2001),

...em especial dos anos 50 aos anos 80, particularmente entre os sociólogos, antropólogos e psicólogos sociais, encontramos a posição muito comum (prontamente assumida pelos linguistas) de que a invenção da escrita trazia uma “grande divisão” a ponto de ter introduzida uma nova forma de conhecimento e ampliação da capacidade cognitiva (em especial a escrita alfabética). Era a supremacia da escrita e a sua condição de tecnologia autônoma, percebida como diferente da oralidade do ponto de vista do sistema, da cognição e dos usos (p.26).

É o que ficou conhecido como “modelo autônomo” em que se dava supremacia à escrita, desconsiderando os usos sociais que dela se faz. Estudos nessa visão foram defendidos por Goody (1977), Olsen (1977) e Ong (1982). No entanto, como afirma Marcuschi (2001), a partir dos anos 80, a “autonomia da escrita” passou a ser ameaçada por estudos que reconhecem a existência de especificidade entre o oral e a escrita, com formas típicas de funcionamento e de produção de sentidos, além de se considerar os vínculos desses com as condições de sua produção. É o que se tornou conhecido como o “continuum fala - escrita”, ou seja, “uma visão que permitia observar a fala e a escrita mais em suas relações de semelhança do que diferença numa certa mistura de gêneros e estilos e evitando as dicotomias em sentido estrito” (p. 27). Esse modelo de análise, defendido por Tannen (1982), Coulmas e Ehlich (1983) e que foi muito criticado por Street (1995). De acordo com este autor, tal modelo tem uma visão muito restrita do que significa contexto social, nega que a escrita possua elementos paralinguísticos e não verbais e, ainda, preserva a mesma dicotomia entre fala e escrita dos estudos realizados segundo o “modelo autônomo do letramento”, cujos princípios norteadores são:

a) a ideia de que a escrita codifica lexical e sintaticamente os conteúdos, enquanto que a fala usa os elementos paralinguísticos como centrais;

b) a ideia de que o texto escrito é mais coesivo e coerente do que o oral, sendo a fala fragmentária e sem conexão (ou com uma conexão marcadamente interacional);

c) a noção de que a escrita conduz os sentidos diretamente a partir da página impressa, sendo que a fala se serve do contexto e das condições da relação face a face. (MARCUSCHI, 2001, p.29)

Para Barton e Hamilton (2000, p.8), letramento é entendido como uma “prática social” que, por sua vez, são “modos culturais de uso do letramento”. Assim, observar práticas é ater-se à análise dos diversos usos culturais realizados em contextos reais de uma sociedade. Já, quando se estuda o letramento em si, o que se faz é estudar os usos de textos escritos em contextos sociais.

Marcuschi (2001), fundamentado em Street (1995), postula a importância de se considerar os usos sociais e culturais da escrita, tendo em vista que não se pode analisar um texto sem

considerar as condições sociocomunicativas que o engendraram, pois “todo texto é um evento comunicativo numa dada prática social de uso da língua” (p. 32). Isso posto, o autor apresenta a sua tese sobre a questão da aproximação entre tratamentos e análises da fala e da escrita, defendendo que o que se propõe:

(...) é uma noção de contínuo (...) como uma relação escalar ou gradual em que uma série de elementos se interpenetram, seja em termos de função social, potencial cognitivo, práticas comunicativas, contextos sociais, nível de organização, seleção de formas, estilos, estratégias de formulação, aspectos constitutivos, formas de manifestação e assim por diante (MARCUSCHI, 2001, p. 35-36). Para Barton e Ivanic (1991), com base em Street (1995), defendem o conceito de “práticas de letramentos” que são “os modos culturais gerais de utilizar o letramento que as pessoas produzem num evento de letramento” (p. 2). Seriam, então, modelos em que as pessoas se pautam nos usos culturais para produzir significados para uma leitura ou para uma escrita. Entende-se por “prática comunicativa”, “o modo pelo qual essas atividades são inseridas nas instituições, situações ou domínios que, por sua vez, são implicados em outros processos maiores, sociais, econômicos, políticos e culturais” (STREET, 1993, p.13).

De acordo com Soares (2003b), letramento, no entanto, implica no domínio de um outro conjunto de “técnicas e instrumentos” distintos dos utilizados na alfabetização e, por isso mesmo, na origem já difere desse conceito. Assim, para a autora, “ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se letramento, que implica habilidades” (p. 9). Disso decorre que

Para estudar e interpretar o letramento (...), três tarefas são necessárias. A primeira é reformular uma definição consistente que permita estabelecer comparações ao longo do tempo e através do espaço. Níveis básicos ou primários de leitura e escrita constituem os únicos indicadores ou sinais flexíveis e razoáveis para responder a esse critério essencial (...) o letramento é, acima de tudo, uma tecnologia ou conjunto de técnicas usadas para a comunicação e para a decodificação e reprodução de materiais escritos ou impressos: não pode ser considerado nem mais nem menos que isso. (GRAFF, 1987a, p. 18-19, grifos do original).

As tentativas de definição (de letramento) estão quase sempre baseadas em uma concepção de letramento como um atributo dos indivíduos; buscam descrever os constituintes do letramento em termos de habilidades individuais. Mas o fato mais evidente a respeito do letramento é que ele é um fenômeno social (...). O letramento é um produto da transmissão cultural (...) Uma definição de letramento (...) implica a avaliação do que conta como letramento na época moderna em determinado contexto social...

social... (SCRIBNER, 198412, p. 7-8, grifos do original, apud SOARES, 2003a, p. 66)

A autora identifica nas definições propostas por esses autores duas dimensões do letramento: 1) a dimensão individual, entendida como um atributo pessoal, ou seja, simples posse individual das tecnologias mentais complementares de ler e escrever (WAGNER, 1983: p.5, apud SOARES, 2003b, p. 66). 2) a dimensão social, entendida como um fenômeno cultural, que explicita um conjunto de atividades sociais que envolvem a língua escrita e de exigências sociais de uso da língua escrita (SOARES, 2003a, p. 66).

Diante de toda essa discussão, concebemos o letramento conforme postulado por Soares (2003b), tendo em vista que aglutina tanto as habilidades necessárias para a produção e leitura de textos escritos quanto as dimensões individual e social que caracterizam o sujeito. Além disso, assim definido, o letramento fornece os subsídios para pensar a escrita e a leitura numa forma processual, assim como as práticas escolares que as orientam. Logo,

Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina- se letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos – para informar ou informar-se, para interagir com outros, para imergir no imaginário, no estético, para ampliar conhecimentos, para seduzir ou induzir, para divertir-se, para orientar-se, para apoio à memória, para catarse..., habilidades de interpretar e produzir diferentes tipos e gêneros de textos; habilidades de orientar-se pelos protocolos de leitura que marcam o texto ou de lançar mão desses protocolos, ao escrever; atitudes de inserção efetiva no mundo da escrita, tendo interesse e prazer em ler e escrever, sabendo utilizar a escrita para encontrar ou fornecer informação e conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma diferenciada, segundo as circunstâncias, aos objetivos, o interlocutor... (SOARES, 2003b, p.91-2).

Como estamos pesquisando aulas de Matemática, de Ciências e de Geografia que lidam também com o sistema numérico, nos propomos a conceber letramento conforme Batista e Ribeiro (2004), ao discutirem e analisarem algumas variáveis demonstradas pelos dados do INAF 2001 e 2003:

...letramento (...) designa, em sua heterogeneidade e variação, o

domínio de habilidades13 de uso da língua escrita e cálculo

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GRAFF H. J. The labyrinths of literacy. London: The Falmer Press, 1987a. (Tradução para o Português: Os

labirintos da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.).

SCRIBNER, S. Literacy in three metaphors. In: American Journal of Education, v. 93, no 1, 1984, p. 131-325. WAGNER, D. A. Ethno-graphies: an introduction. International Journal of the Sociology of language. v. 42, 1983, p. 5-8.

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Nota dos autores – “Usa-se aqui o termo “habilidades em seu sentido genérico, designando o conjunto de “saberes”, “capacidades” ou “competências” que caracterizam o domínio da língua escrita e do cálculo numérico” ( p. 36).

numérico e seu uso efetivo em práticas sociais, por indivíduos e

grupos sociais e sociedades, bem como o modo pelo qual esses indivíduos e grupos dão significado ao domínio e uso dessas habilidades e são por eles modificados14 (BATISTA e RIBEIRO, 2004, p. 3) (Negritos nossos).

Concebe-se, nesta pesquisa, em conformidade com Soares (2003b), Fonseca (2004) e Britto (2003), que há diferentes formas de letramento, pois

...o conhecimento é um produto social e aquilo que uma pessoa sabe e efetivamente faz se circunscreve nas condições históricas objetivas em que ela se encontra. Pode-se dizer que o que uma pessoa sabe e faz isoladamente é diferente do que ela sabe e faz em grupo ou em tarefas contextualizadas no entorno social (SOARES, 2003a, p. 53). É importante considerar essas distintas dimensões e os possíveis letramentos que o indivíduo traz consigo, porque isso será determinante para a definição de caminhos a seguir nesta pesquisa e o tratamento a ser dado aos dados observáveis sobre as práticas de leitura e de escrita no contexto escolar. Fonseca (2004), em consonância com essa noção de que os letramentos são vários e demandam habilidades específicas usa o termo numeramento ao estudar as habilidades Matemáticas necessárias ao exercício de atividades sociais que envolvam números. O numeramento designa, em conformidade com a concepção de letramento postulado por Soares (2003b), as habilidades necessárias ao indivíduo para operar com números, noções de quantidade, de proporção, enfim, resolução de problemas, medidas, fazer cálculos. Enfim, o numeramento envolve todo o conjunto de habilidades Matemáticas necessárias para o indivíduo realizar atividades e operações com números, abarcando, dessa forma, todas as multiplicidades de ações sociais que possam ser demandadas a ele. Logo,

Adotar uma visão socioconstrutivista da construção do letramento e da linguagem escrita significa, entre outras coisas, repensar as relações entre as modalidades oral e escrita do discurso neste processo. Significa também afirmar o papel constitutivo da interação social para a construção da linguagem (letrada) e, logo, para os usos e conhecimentos do objeto escrito construídos pela criança (ROJO, 1998, p.121)

Se letramento é o uso social das habilidades de escrita, de leitura e de cálculos em que aspecto ele se difere de alfabetismo? Rojo (2009) problematiza essas duas noções que

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Nota dos autores – “Embora o conceito de letramento abarque tanto habilidades quanto práticas de leitura e escrita, nesse artigo é utilizado preferencialmente o termo “alfabetismo” para se referir ao domínio de habilidades – para o que se toma como indicador os resultados do teste do INAF –, enquanto o termo “letramento” é reservado para expressar práticas socais de uso da leitura e da escrita. A expressão “cultura escrita” é empregada, indistintamente, para se referir ao conceito de letramento. A respeito desse conceito, cf.

guardam, em visão geral, muitas semelhanças e porque ambas não dão conta da complexidade que cada uma dessas envolve. Assim, ela explica a complexidade:

... estado ou condição envolve tanto as capacidades de leitura como as de escrita. (...) essas capacidades são múltiplas e muito variadas. Para ler, por exemplo, não basta conhecer o alfabeto e decodificar letras em sons da fala. É preciso também compreender o que se lê, isto é, acionar o conhecimento de mundo para relacioná-lo com os temas do texto, inclusive o conhecimento de outros textos/discursos (intertextualizar), prever, hipotetizar, inferir, comparar informações, generalizar. É preciso também interpretar, criticar, dialogar com o texto: contrapor a ele seu próprio ponto de vista, detectando o ponto de vista e a ideologia do autor, situando o texto em seu contexto. Reciprocamente, para escrever, não basta codificar e observar as normas da escrita do português padrão do Brasil; é também preciso textualizar: estabelecer relações e progressão de temas e ideias, providenciar coerência e coesão, articular o texto a partir de um ponto de vista levando em conta a situação e o leitor etc. (ROJO, 2009, p. 44-45).

De acordo com a autora, isso é alfabetismo e são essas as razões em que se baseiam os testes que têm o objetivo de medir os níveis de alfabetismo de uma dada parcela da população, como é o caso do Índice Nacional de Alfabetismo (INAF). Em vistas dessa problematização que nos pareceu adequada aos objetivos a que nos propomos neste estudo, concebemos com ela essa noção de alfabetismo e assumimos que

trabalhar com a leitura e escrita na escola hoje é muito mais que trabalhar com alfabetização ou com os alfabetismos: é trabalhar com os letramentos múltiplos, com as leitura múltiplas – a leitura na vida e a leitura na escola – e que os conceitos de gêneros discursivos e as suas esferas de circulação podem nos ajudar a organizar esses textos, eventos e práticas de letramentos (ROJO, 2009, p. 118)

A realidade da sala de aula e da vida cotidiana nos mostram que a noção de letramento(s), no singular ou no plural, não dá conta de abarcar o universo de linguagens com que convivemos em nossas práticas sociais – na escola e na vida. Nesse sentido, no Capítulo 4, já incorporamos a noção de letramentos múltiplos, conforme postulado por Rojo (2004).

Retomando a justificativa que apresentamos no início deste capítulo, outros termos serão incorporados a este estudo, tendo como justificativa para essa incorporação a observação e o tratamento dos dados selecionados.