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CAPÍTULO 2. ESCOLA, PROFESSORES E ALUNOS

2.9 Caracterizando os alunos e a turma

Configurados os contextos familiar e escolar em que se inserem os alunos, é tempo de caracterizar a turma. Os alunos são adolescentes com idades entre 14 e 18 anos, sendo que uma grande maioria completou os quinze anos em 2007, ano em que se deu a observação das aulas. O grupo é formado por 15 meninas e 13 meninos e 25 deles ingressaram nessa escola em 1999. Ao longo dos oito anos de permanência, várias foram as organizações feitas e o perfil do grupo foi se alterando, pois é critério básico de enturmação da escola mesclar, a cada ano, os alunos das três turmas de um mesmo ano escolar, garantindo que, ao longo do período de estudos, todos se conheçam, além de terem tido um número variado de professores.

A configuração da turma em 2007, contudo, teve como origem o atendimento a demandas que foram sendo pautadas ao longo dos anos: a inclusão de três alunos retidos no ano anterior, sendo dois com necessidades de acompanhamentos mais específicos em leitura e escrita. Duas meninas vieram das duas outras turmas de 6º ano por questões de falta de adaptação ao grupo de origem. Em resumo, cinco novos alunos foram incorporados ao grupo e dois saíram dele para duas outras turmas.

No geral, a turma é composta por adolescentes que se envolvem nas atividades propostas e seus pais participam da vida escolar deles, estando presentes nas atividades em que são solicitados e acompanhando-os, quando os filhos permitem isso. Os alunos que foram inseridos, por diferentes motivos, não concordaram com as mudanças feitas pelos professores do ano anterior e isso repercutiu negativamente sobre a turma. A situação deles foi agravada por apresentarem níveis bastante diferenciados de domínio dos conteúdos estudados em relação ao grupo maior de alunos e por não desejarem estar na turma ou na escola.

A presença desses alunos imprimiu ao grupo outro desenho, em consequência do quadro de indisciplina que se instalou: certa desorganização por excesso de brincadeiras e conversas, falta de participação nas aulas e não cumprimento de tarefas escolares. Mas esse novo perfil, se, por um lado, influenciou no ritmo de aprendizagem da turma, por outro, não conseguiu inibir os avanços daqueles que sempre estiveram comprometidos com seu processo de ensino e de aprendizagem.

Tendo em vista a organização do próximo capítulo que tratará, além das concepções de leitura e escrita de professores e alunos, das habilidades de leitura e de escrita dos alunos, optamos, neste momento, por dar ênfase aos alunos que, via de regra, são casos à parte, pois, em período igual ou superior aos oito anos de estudo, ainda não conseguem sucesso no que diz respeito às práticas escolares e atividades de linguagens na escola (CHARLOT, 2000; MILLET & THIN, 2005).

Na turma estudada, há cinco casos de alunos que a escola acompanha mais de perto. Um desses trata-se de Tomás, um garoto com 16 anos já completos e que foi diagnosticado por equipe médica transdisciplinar como portador de leve distúrbio mental (retardo mental). Esse quadro clínico exige acompanhamento especial nas atividades pedagógicas de leitura e de escrita. Tomás sabe ler e escrever, mas não consegue estabelecer relações entre textos,

de sua realidade imediata. No desempenho oral, ele consegue falar sobre seus aprendizados, relacionando-os com seus conhecimentos prévios, construindo significados, mas sua memória de longo prazo não retém essas informações. O aprendizado só se concretiza em mínimas etapas que se somam às anteriores e com necessidade de retomadas muito frequentes. Assim, sua escrita guarda as marcas desses lapsos que exigem tempo e estratégias diferenciadas para serem sistematizadas por ele.

Com base nas competências definidas pelo SAEB para alunos ao fim do Ensino Fundamental, podemos avaliar o domínio de leitura e de escrita desse aluno em:

1) domínio da norma culta – ele demonstra conhecimento regular da norma culta, com graves e frequentes desvios gramaticais, de escolha de registro e de convenções da escrita, pouco aceitáveis nessa etapa de escolaridade. Ele oscila entre o nível 1 e 2 das competências do SAEB.

2) compreensão da proposta de escrita de textos (tema e gênero textual) – ele desenvolve tangencialmente o tema, apresenta embrionariamente o tipo de texto solicitado. Em textos narrativo que se espera sejam mais fáceis de se fazer – referenciando a proximidade com estratégias da fala – ele não consegue manter uma regularidade textual, sendo sua escrita pautada por dados de sua realidade, com raríssimas extrapolações e marcas de autoria. Seu desempenho configura o nível 2 das competências do SAEB.

3) construção da coerência textual – ele frequentemente apresenta informações, fatos e opiniões precariamente relacionados ao tema proposto para a escrita. Não consegue defender seu ponto de vista. Está no nível 2 das competências do SAEB.

4) construção da coesão textual – ele demonstra precário conhecimento sobre os elementos de articulação gramatical. Sua competência nesse item oscila entre o nível 1 e 2 do SAEB.

Seus textos orais e escritos são, comumente, curtos, fortemente organizados em torno da oralidade e com baixa informatividade, sem progressão temática. Participou de diferentes estratégias de ensino, porém, nos 11 anos de escola, pouco se conseguiu efetivamente fazer em termos da construção e aprimoramento do seu domínio da leitura e da escrita.

Em decorrência de como a família percebe a sua condição mental, da concepção sobre o papel da escola, das projeções para o futuro desse garoto (ele está fadado a ser, segundo a

mãe e irmã, “um marginal, um zero à esquerda, por ser burro demais e desrespeitar todo mundo”) e da sua não aceitação no âmbito familiar, seu comportamento na escola foi-se tornando inadequado. Ele desenvolveu um grau alto de indisciplina e que exigiu intervenções do Conselho Tutelar: infrequente às aulas, não conseguia acompanhar os trabalhos realizados, recusava-se a fazer as atividades diferenciadas que lhe eram propostas, agressivo com alguns colegas e professores, responsável por atos de depredação do patrimônio da escola, roubos. Um quadro típico do que Millet & Thin (2005) configuram como “casos de ruptura escolar”. Ele permaneceu matriculado no 9o ano em 2009, mas acabou abandonando os estudos.

Duas outras alunas têm pais com Ensino Fundamental completo e a frequência delas às aulas é garantida pelo recurso da Bolsa Escola. As dificuldades que elas apresentam nos conteúdos escolares estão mais relacionadas à falta de envolvimento nos estudos e não em razão das condições socioeconômicas familiares ou de problemas de ordem cognitiva. Os pais enviam- nas à escola, mas elas sistematicamente não chegam lá e, quando vêm, estão focadas em outras coisas (conversas, recados pelo celular, namoro) e não participam das atividades escolares. Não cumprem as tarefas por uma decisão pessoal. A escola não teve o apoio das famílias delas, porque as mães não se achavam fortes o bastante para exigir outro comportamento das filhas e os pais nunca compareceram à escola. Ambas ficaram retidas no 8o ano escolar, em 2007, por insuficiência de frequência e de produção escolar. Uma delas, Raquel – depois de trabalhar como aprendiz num escritório (de agosto a setembro) -, descobriu o quanto a escola a ajudou a escrever bem e, por isso mesmo, a se destacar de outros adolescentes trabalhadores e de adultos. Os elogios no trabalho foram os responsáveis para determinar uma nova postura em relação aos estudos: em 2008, foi aprovada e está hoje cursando o ensino médio (na unidade de Ensino Médio e Profissionalizante). A Raquel, quando se dispunha a fazer os trabalhos solicitados, demonstrava saber muito sobre a construção de textos escritos e sobre o estabelecimento de relações na leitura. Aliás, seus textos eram de razoáveis a bons. A outra – Brena - foi transferida pela família para uma escola pública próxima de sua casa, conseguiu também concluir o Ensino Fundamental e ingressou no ensino médio em outra escola na sua região. Suas dificuldades eram grandes tanto no que dizia respeito à leitura (estabelecimento de relações entre textos lidos) quanto na produção de textos orais e escritos. Com base no SAEB, seu desempenho escrito era razoável.

Paulo é outro caso. Sua família tem as seguintes características: a mãe não completou o Ensino Fundamental; o pai abandonou a casa há muitos anos; moram juntas quatro pessoas – sendo a avó materna, a mãe e os dois filhos. A família reside em uma área de grande risco social, localizada próximo ao centro da capital e não necessita de ajuda financeira (Bolsa Escola ou recursos do fundo de bolsas da universidade) para garantir a permanência do aluno na escola. A família de Paulo se mantém por recursos próprios e tanto a mãe como a avó estiveram em contato constante com a escola. Apesar de todas as ações dos profissionais da escola, da família e do Conselho Tutelar, o aluno insistia em ficar à margem do contexto escolar. Justifica ele próprio o seu comportamento hostil, pelo desejo de frequentar uma escola noturna e trabalhar para ajudar em casa. Ele confessa, ainda, que seu desejo maior é investir mais em sua vida artística: ele e a mãe participam de um grupo de danças de rua e outro de quadrilhas. A mãe, contudo, insistia em mantê-lo nessa escola, porque acreditava que assim ele poderia ter uma vida diferente dos outros membros da família e seria mais bem preparado para enfrentar as adversidades do contexto social em que vivem. Esse quadro configura, pois, uma reação do aluno aos planos da família e não decorre de qualquer dificuldade dele de aprendizagem (MILLET & THIN, 2005).

Em 2007, Paulo foi retido no 8o ano por infrequência e, por conseguinte, produção escolar abaixo do mínimo. Em 2008, finalmente ele convenceu a família de que sua permanência nessa escola estaria comprometida pela vontade dele de fazer outras coisas e acabaria por ser reprovado novamente. Foi transferido para uma escola pública noturna. Segundo o aluno, essa escola tem mais a ver com ele, situa-se bem próximo de sua casa e ainda pode fazer os shows sem problema.

Caso semelhante foi o de João, um garoto de 15 anos cujos pais se divorciaram e o pai decidiu morar nos Estados Unidos. O maior desejo de João era mudar-se e viver com o pai. Ao contrário dos seus três colegas, sua família possui boas condições financeiras. A forma de lutar contra a interdição de sua vontade era sendo infrequente à escola e, quando presente, não se envolvendo com nada do que lhe era proposto. Ele rompe com a escola, não por não ter se adaptado a ela; ao contrário, durante seis anos de estudo, ele tinha comportamento bem distinto do que demonstrou nos últimos dois anos. As poucas produções escritas que entregou eram de bom nível de desempenho em geral, mas não foram consideradas suficientes em quantidade para aprovação. Em 2008, os familiares o transferiram de escola. Não houve como resgatar informações sobre a sua continuidade ou não de estudos.

Esses alunos participaram desta pesquisa e, apesar de seus comportamentos e resultados escolares não corresponderem ao quadro geral da turma, eles trouxeram dados bem significativos: cada um deles desenvolveu uma forma peculiar de lidar com os modos e as ações da escola, foram por ela reprovados, mas não há registros, entre os itens pesquisados neste estudo, de que, no seu cotidiano, eles não consigam realizar práticas sociais de uso da escrita.

A Raquel é um caso que desperta um olhar especial. No contexto escolar, ela não teve produção oral ou escrita que a destacasse do restante da turma, mas, ao ser posta diante de outras práticas sociais de escrita e de leitura, isso aconteceu. Ao responder ao questionário sobre as práticas sociais de uso da escrita, ela foi logo reconhecendo que o seu desempenho se deve às práticas escolares. Essa constatação é um dado precioso neste estudo, pois é atrás dessa resposta que estamos: as práticas escolares de leitura e de escrita contribuem para as práticas sociais e práticas de linguagem no cotidiano dos estudantes?

Ao fim de 2007, nessa turma, esses foram os cinco alunos retidos, tendo em comum todos eles um quadro de infrequência às aulas, de descumprimento das tarefas, de desempenho escolar não compatível com o tempo de permanência na escola.

Em relação aos outros 23 alunos, destaca-se, nos dois anos finais do Ensino Fundamental, o envolvimento com a melhoria do seu desempenho escolar, demonstrando uma preocupação com a continuidade dos estudos no Ensino Médio. Eles alegam que precisam estudar muito, porque necessitam, principalmente, aprender a Matemática e, também, porque estarão no meio de alunos que fizeram cursos preparatórios e estudaram em escolas particulares.

Esse grupo de alunos foi sempre, apesar dos comportamentos de alguns deles, concebido pelo conjunto de professores como uma turma com grande potencial, sempre disposta a aceitar os desafios propostos e, em várias oportunidades e disciplinas, surpreenderam seus professores e monitores de modo positivo nas apresentações de processo e/ou de resultados de pesquisas a eles propostas.

Esse dado sobre a satisfação dos professores com os resultados do desempenho escolar dos alunos foi importante para definir esses alunos como sujeitos de pesquisa. Embora reclamassem de um ou de outro aspecto do desempenho escolar escrito desses alunos, reconheciam que havia elementos positivos a serem considerados em relação ao modo como

quando apresentarmos dados relativos ao olhar dos professores sobre as produções de leitura e de escrita dos alunos).