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A Salvação dos Pecadores

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 90-111)

Movido pela perfeição do seu santo amor, Deus em Cristo substituiu-se por nós, pecadores. É esse o coração da cruz de Cristo. Ele nos leva agora a nos voltarmos do acontecimento para as suas conseqüências, do que aconteceu na cruz para o que ela alcançou. Por que tomou Deus o nosso lugar e levou o nosso pecado? O que realizou ele com seu auto-sacrifício e sua auto-substituição?

O Novo Testamento dá três respostas principais a essas perguntas, as quais podemos resumir com as palavras "salvação", "revelação" e "conquista". O que Deus fez em Cristo por meio da cruz é salvar-nos, revelar-se a si mesmo e vencer o mal. Neste capítulo enfocaremos a salvação mediante a cruz.

Seria difícil exagerar a magnitude das mudanças ocorridas como resultado da cruz, tanto em Deus quanto em nós, especialmente nos tratos de Deus conosco e em nosso relacionamento com ele. Verdadeiramente, quando Cristo morreu e ressurgiu dentre os mortos, raiou um novo dia, teve início uma nova era.

Esse novo dia é o "dia da salvação" (2 Coríntios 6:12), e as bênçãos "de tão grande salvação" (Hebreus 2:3) são tão ricamente diversas que não podemos defini-las adequadamente. Seriam necessários muitos quadros para retratá-las. Assim como a igreja de Cristo é apresentada na Escritura como a sua noiva e o seu corpo, como as ovelhas do seu rebanho e os ramos da sua videira, como a sua nova humanidade, sua casa ou família, como templo do Espírito Santo e pilar e fortaleza da verdade, da mesma forma a salvação de Cristo é ilustrada através da vivida imagem de termos como "propiciação", "redenção", "justificação" e "reconciliação", os quais se constituem o tema deste capítulo.

Além do mais, apesar de as imagens da igreja serem visualmente incompatíveis (não podemos perceber o corpo e a noiva de Cristo ao mesmo tempo), contudo, por trás de todas encontra-se a verdade de que Deus está chamando um povo para si mesmo, assim também apesar de as imagens da salvação serem incompatíveis (justificação e redenção conjuram respectivamente mundos diversos da lei e do comércio), contudo, por trás de todas encontra-se a verdade de que Deus em Cristo levou o nosso pecado e morreu a nossa morte a fim de nos libertar do pecado e da morte. Tais imagens são auxílios in- dispensáveis à compreensão humana dessa doutrina. E o que transmitem, por serem dadas por Deus, é verdadeiro. Entretanto, não devemos deduzir dessa afirmativa que compreender as imagens é esgotar o significado da doutrina. Pois além das imagens da expiação jaz o seu mistério, as profundas maravilhas que, penso eu, haveremos de explorar por toda a eternidade.

Acho que o termo "imagens" da salvação (ou da expiação) é melhor que "teorias" da salvação. Pois teorias em geral são conceitos abstratos e especulativos, ao passo que as imagens bíblicas da obra da expiação de Cristo são quadros concretos, e pertencem aos dados da revelação. Não são explicações alternativas da cruz, que nos provêem uma va- riação da qual escolhermos, mas complementares, cada uma contribuindo com uma parte vital ao todo. Quanto às imagens, a "propiciação" nos introduz aos rituais de um sacrário, a "redenção" às transações do mercado, a "justificação" aos procedimentos de

um tribunal de lei, e a "reconciliação" às experiências de casa ou familiares. Meu argumento é que a "substituição" não é uma "teoria" ou "imagem" que deva ser colocada ao lado das outras, mas, pelo contrário, o fundamento de todas elas, sem o qual perdem a força de convencer. Se Deus em Cristo não tivesse morrido em nosso lugar, não poderia haver propiciação, nem redenção, nem justificação, nem reconciliação. Além do mais, todas as imagens têm início no Antigo Testamento, mas são elaboradas e enriquecidas no Novo, particularmente ao serem diretamente relacionadas a Cristo e à sua cruz.

Propiciação

Os cristãos ocidentais de gerações passadas tinham bastante familiaridade com a linguagem da "propiciação" em relação à morte de Cristo. Pois a Bíblia contém três afirmações explícitas, feitas a ela por Paulo e João:

Paulo: ". . . Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé" (Romanos 3:24-25).

João: "Temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados... Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (1 João 2:1-2; 4:10).

Embora nossos antepassados conhecessem bem esse tipo de linguagem, não quer dizer que se sentiam à vontade em usá-la. "Propiciar" alguém significa apaziguar ou pacificar a sua ira. Será, pois, que Deus se enraivece? Se assim for, podem ofertas ou rituais pacificar a sua ira? Ele aceita subornos? Tais conceitos parecem mais pagãos do que cristãos. É compreensível que animistas primitivos considerassem essencial aplacar a ira dos deuses, espíritos ou ancestrais, mas são noções como essas dignas do Deus dos cristãos? Será que não devíamos crescer e ultrapassá-las? Em particular, devemos realmente crer que Jesus, mediante a sua morte, propiciou a ira do Pai, indu-zindo-o a abrir mão dela, e olhar para nós com favor em vez de ira?

Conceitos rudes de ira, sacrifício e propiciação devem, deveras, ser rejeitados. Não têm lugar na religião do Antigo Testamento, muito menos na do Novo. Isso não quer dizer, porém, que não há conceito bíblico dessas coisas. O que a Escritura nos revela é uma doutrina pura (da qual foram expurgadas todas as vulgaridades pagãs) da santa ira de Deus, seu auto-sacrifício amoroso em Cristo e a sua iniciativa de desviar a sua própria ira. É óbvio que "ira" e "propiciação" (o aplacar a ira) andam juntos. Quando a ira é expurgada de idéias indignas, a propiciação é também purgada. O oposto também é ver- dadeiro. São aqueles que não podem aceitar nenhum conceito da ira de Deus que repudiam todo o conceito de propiciação. Por exemplo, eis o que diz o professor A. T. Hanson: "Se você pensar na ira como uma atitude de Deus, não poderá evitar uma teoria de propiciação. Mas o Novo Testamento jamais fala da propiciação da ira, porque não a

concebe como uma atitude de Deus."1

E esse mal-estar para com as doutrinas da ira e da propiciação que tem levado alguns teólogos a reexaminar o vocabulário bíblico. Têm-se concentrado num grupo particular de palavras o qual tem sido traduzido por termos "propiciatórios", a saber o substantivo

hilasmos (1 João 2:2; 4:10), o adjetivo hilasterios (Romanos 3:25, onde pode ter sido

usado como substantivo) e o verbo hilaskomai (Hebreus 2:17; também Lucas 18:13 na passiva, que, talvez devesse ser traduzido por "ser propiciado — ou propício — a mim, pecador"). A pergunta crucial é se o objeto da ação expiatória é Deus ou o homem. Se for o primeiro, então a palavra correta é "propiciação" (pacificação de Deus); se o último, a palavra correta é "expiação" (ocupando-se com o pecado e com a culpa).

O teólogo britânico que liderou essa tentativa de reinterpretação foi C. H. Dodd.2 Eis o

seu comentário de Romanos 3:25: "O significado transmitido. . . é o da expiação, não o

opinião similar com relação a 1 João 2:2, a saber, que a expressão traduzida por

"expiação por nossos pecados" é "ilegítima, aqui como em outros lugares".4

O argumento de C. H. Dodd, desenvolvido com sua costumeira erudição, era lingüístico. Ele reconhecia que no grego pagão (tanto o clássico como o popular) o sentido normal do verbo hilaskonai era "propiciar" ou "aplacar" uma pessoa ofendida, especialmente uma divindade. Mas negou que era esse o seu significado no judaísmo helenístico, como evidenciado pela Septuaginta, ou no Novo Testamento. Ele argumentou que na Septuaginta kipper (o verbo hebraico para "expiar") às vezes era traduzido por outras palavras gregas que não hüaskomai, que significa "purificar" ou "perdoar"; que quando

hilaskomai pode ser traduzido por kipper o significado é expiação ou remoção da

impureza. Eis como ele resume o assunto: ''o judaísmo helenístico, como representado pela Septuaginta, não vê o 'cultus' como um meio de pacificar o desprazer da Divindade,

mas como um meio de livrar o homem do pecado."5 Deveras, na antigüidade, em geral

cria-se que "a realização de rituais prescritos. . . tinha o valor, por assim dizer, de um

poderoso desinfetante".6 Portanto, conclui ele, as ocorrências de hilaskomai no grupo de

palavras do Novo Testamento deviam ser interpretadas da mesma maneira. Por meio da sua cruz Jesus Cristo expiou o pecado; ele não propiciou a Deus.

A reconstrução do professor Dodd, embora aceita por muitos de seus contemporâneos e sucessores, foi submetida a rigorosa crítica por outros, em particular pelo Dr. Leon

Morris7 e pelo Dr. Roger Nicole.8 Ambos mostraram que as conclusões de Dodd

Repousavam ou em evidência incompleta ou em deduções questionáveis. Por exemplo, a sua avaliação do grupo hilaskomai no judaísmo helenístico não faz referência (1) aos livros dos macabeus, embora pertençam à Septuaginta e contenham várias passagens que tratam da "ira do Todo-poderoso" sendo desviada ou (2) aos escritos de Josefo, e de Filão, embora neles, como demonstra Friedrich Büchsel, prevaleça o significado de

"aplacar".9 Quanto à compreensão do Novo Testamento dessas palavras, F. Büchsel

ressalta o que C. H. Dodd passa por cima, que tanto na primeira carta de Clemente (final do primeiro século) como no "Pastor de Hermas" (começo do segundo) hilaskomai é cla- ramente usada com referência à propiciação de Deus. Portanto, para que a teoria de Dodd seja correta acerca da Septuaginta e do uso do Novo Testamento, ele teria de manter que "formam um tipo de ilha lingüística com poucos precedentes em tempos anteriores, pouca confirmação dos contemporâneos, e nenhum seguidor em anos poste- riores!"10

Mas temos de declarar que a tese dele é incorreta. Até no próprio cânon do Antigo Testamento há vários exemplos em que kipper e hilaskomai são usadas com referência à propiciação da ira dos homens (como Jacó pacificando a Esaú com presentes e o sábio

apaziguando a ira do rei11) ou de Deus (como Arão e Finéias que desviaram dos israelitas

a ira divina12). Mesmo nas passagens em que a tradução natural é "fazer expiação pelo

pecado", o contexto muitas vezes contém menção explícita à ira de Deus, o que implica

que o pecado humano pode ser expiado somente pelo desvio dessa ira.13 Esses

exemplos, ressalta Roger Nicole, são coerentes com o "uso predominante no grego

clássico e no coiné, em Josefo e Filão, nos escritores patrísticos e nos macabeus".14 A

conclusão de Leon Morris com relação ao Antigo Testamento é que, embora hilaskomai seja "uma palavra complexa", contudo, "o desvio da ira de Deus parece representar um substrato teimoso de significado do qual todos os usos podem ser naturalmente explicados".15

O mesmo é verdade quanto às ocorrências no Novo Testamento. A descrição de Jesus como o hilasmos em relação aos nossos pecados (1 João 2:2; 4:10) podia ser compreendida como significando simplesmente que ele os tenha levado ou os tenha cancelado. Mas também afirma-se que ele é nosso "Advogado junto ao Pai" (2:1), o que implica o desprazer daquele perante quem ele apela a nessa causa. Quanto à passagem de Romanos 3, o contexto é determinativo. Quer tradu-zamos hilasterion no versículo 25 por "o lugar da propiciação" (isto é, propiciatório, como em Hebreus 9:5), quer por "o

meio da propiciação (isto é, um sacrifício propiciatório), o Jesus que é assim descrito é designado por Deus como o remédio para a culpa universal humana sob a sua ira, ira que, para demonstrar, Paulo necessitou de dois capítulos e meio. Como Leon Morris justamente comenta: "A ira tem ocupado um lugar tão importante no principal argumento levantado nesta seção que somos justificados em procurar alguma expressão

indicativa de seu cancelamento no processo que traz a salvação".16 É verdade que em

Hebreus 2:17 hilaskomai é um verbo transitivo, tendo por objeto "os pecados do povo". Poderia, portanto, ser traduzido por "expiar" ou "fazer expiação". Contudo, esse significado não é indubitável.

Se concedermos que C. H. Dodd tenha perdido o seu argumento lingüístico, ou que, pelo menos, não "provou" o seu caso, e que o grupo de palavras hilaskomai significa "propiciação" e não "expiação", resta-nos ainda como retratar a ira de Deus e o seu

desvio. É fácil caricaturá-las de tal modo que as despeçamos como ridículas. Foi isso o

que fez William Neil na seguinte passagem:

É digno de nota que a escola teológica de "fogo e enxofre" que se deleita em idéias como as que dizem que Cristo foi feito um sacrifício a fim de apaziguar um Deus irado, ou que a cruz foi uma transação legal na qual uma vítima inocente é forçada a pagar a pena dos crimes de outro, uma propiciação de um Deus severo não encontra apoio em Paulo. Estas noções entraram na teologia cristã por meio da mente

legalista dos clérigos medievais; não são o cristianismo bíblico.17

Mas é claro que isso não é nem o Cristianismo da Bíblia em geral, nem o de Paulo em particular. E de duvidar que alguém jamais tenha crido em construção tão grosseira como essa. Pois são noções pagãs da propiciação, recobertas somente por uma capa cristã muito fina. Se quisermos desenvolver uma doutrina da propiciação verdadeiramente bíblica, necessitaremos distingui-la das idéias pagãs em três pontos cruciais, relacionados ao motivo da necessidade da propiciação, quem a fez e o que ela é.

Primeiro, o motivo pelo qual a propiciação é necessária é que o pecado suscita a ira de Deus. Isso não quer dizer (como temem os animistas) que ele é capaz de explodir à mais trivial provocação, muito menos que ele perde as estribeiras por nenhum motivo aparente. Pois nada há de caprichoso ou arbitrário no santo Deus. Nem jamais ele é irascível, malicioso, rancoroso ou vingativo. A ira dele não é misteriosa nem irracional. Jamais é imprevisível, mas sempre previsível por ser provocada pelo mal e pelo mal somente. A ira de Deus, como examinamos com mais detalhes no capítulo 4, é o seu antagonismo firme, constante, contínuo e descomprometido para com o pecado em todas as suas formas e manifestações. Em resumo, a ira de Deus está mundos à parte da nossa. O que provoca a nossa ira (a vaidade ferida) jamais provoca a dele; o que provoca a ira dele (o mal) raramente provoca a nossa.

Segundo, quem faz a propiciação? Num contexto pagão é sempre seres humanos que procuram desviar a ira divina mediante a realização meticulosa de rituais, ou através da recitação de fórmulas mágicas, ou por meio de oferecimento de sacrifícios (vegetais, animais e até mesmo humanos). Pensam que tais práticas aplaquem a divindade ofendida. Mas o evangelho começa com a afirmação ousada de que nada do que possamos fazer, dizer, oferecer ou até mesmo dar pode compensar os nossos pecados nem afastar a ira divina. Não há possibilidade alguma de bajularmos, subornarmos ou

persuadirmos Deus a nos perdoar, pois nada merecemos das suas mãos a não ser o

julgamento. Nem, como já vimos, tem Cristo, por meio do seu sacrifício, prevalecido sobre Deus a fim de que ele nos perdoe. Não, foi o próprio Deus que, em sua misericórdia e graça, tomou a iniciativa.

Esse fato já estava claro no Antigo Testamento, pois nele os sacrifícios eram reconhecidos não como obras humanas, mas como dádivas divinas. Eles não tornavam a Deus gracioso; eram providos por um gracioso Deus a fim de que pudesse agir graciosamente para com o seu povo pecaminoso. "Eu vo-lo tenho dado sobre o altar", disse Deus a respeito do sangue do sacrifício, "para fazer expiação pelas vossas almas"

(Levítico 17:11). E o Novo Testamento reconhece essa verdade com mais clareza, e não menos os textos principais acerca da propiciação. O próprio Deus "apresentou" ou "propôs" a Jesus Cristo como sacrifício propiciatório (Romanos 3:25). Não é que tenhamos amado a Deus, mas que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados (1 João 4:10).

Não podemos enfatizar demais que o amor de Deus é a fonte, e não a conseqüência da expiação. Como o expressou P. T. Forsyth: "A expiação não assegurou a graça, mas fluiu

dela".18 Deus não nos ama porque Cristo morreu por nós; Cristo morreu por nós porque

Deus nos amou. É a ira de Deus que necessitava ser propiciada, é o amor de Deus que fez a propiciação. Se pudermos dizer que a propiciação "mudou a Deus" ou que por meio dela ele mudou a si mesmo, esclareçamos que a sua mudança não foi da ira para o amor, da inimizade para a graça, visto que o seu caráter é imutável. O que a propiciação mudou foi os seus tratos para conosco. "A distinção que eu peço que vocês observem", escreveu P. T. Forsyth, é "entre uma mudança de sentimento e uma mudança de tratamento. . . o sentimento de Deus para conosco jamais necessitou mudar. Mas o tratamento de Deus com referência a nós, o relacionamento prático de Deus para

conosco — esse teve de mudar".19 Ele nos perdoou e nos recebeu no lar.

Terceiro, qual foi o sacrifício propiciatório? Não foi animal, vegetal nem mineral. Não foi uma coisa, mas uma pessoa. E a pessoa que Deus ofereceu não foi alguém mais, uma pessoa humana ou um anjo, nem mesmo o seu Filho considerado como alguém distinto dele ou exterior a si mesmo. Não, ele ofereceu-se a si mesmo. Ao dar o seu Filho, ele estava dando a si mesmo. Como escreveu repetidamente Karl Barth: "Foi o Filho de Deus, isto é, o próprio Deus". Por exemplo, "o fato de que foi o Filho de Deus, de que foi o próprio Deus, quem tomou o nosso lugar no Gólgota e, através desse ato, nos libertou da ira e do juízo divino, revela primeiro a implicação total da ira de Deus e a sua justiça

condenadora e punitiva". Repetimos, "porque foi o Filho de Deus, isto é, o próprio Deus,

que tomou o nosso lugar na Sexta-Feira da Paixão, para que a substituição fosse eficaz e pudesse assegurar-nos a reconciliação com o Deus justo. . . Somente Deus, nosso Senhor e Criador, poderia colocar-se como nossa segurança, poderia tomar o nosso lugar, poderia sofrer a morte eterna em nosso lugar como conseqüência de nossos pecados de

tal modo que ela fosse finalmente sofrida e vencida."20 E tudo isso, esclarece Barth, foi

expressão não somente da santidade da justiça divina, mas também das "perfeições do amor divino"; deveras, do "santo amor divino".

Portanto, o próprio Deus está no coração de nossa resposta às três perguntas acerca da propiciação divina. É o próprio Deus que, em ira santa, necessita ser propiciado, o próprio Deus que, em santo amor, resolveu fazer a propiciação, e o próprio Deus que, na pessoa do seu Filho, morreu pela propiciação dos nossos pecados. Assim, Deus tomou a sua própria iniciativa amorosa de apaziguar sua própria ira justa levando-a em seu próprio ser no seu próprio Filho ao tomar o nosso lugar e morrer por nós. Não há nenhuma grosseria aqui que evoque o nosso ridículo, apenas a profundeza do santo amor que evoca a nossa adoração.

Ao procurar, assim, defender e reinstituir a doutrina bíblica da propiciação, não temos intenção alguma de negar a doutrina bíblica da expiação. Embora devamos resistir a toda tentativa de substituir a propiciação pela expiação, damos boas-vindas a todas as tentativas que procuram vê-las unidas na salvação. Assim F. Büchsel escreveu que

"hilasmos. . . é a ação na qual Deus é propiciado e o pecado expiado".21 O Dr. David Wells

elaborou sucintamente sobre essa idéia:

No pensamento paulino o homem é alienado de Deus pelo pecado e Deus é alienado do homem pela ira. É na morte substitutiva de Cristo que o pecado é vencido e a ira desviada, de modo que Deus possa olhar para o homem sem desprazer, e o homem

olhar para Deus sem temor. O pecado é expiado, e Deus propiciado.22

Passaremos agora da "propiciação" para a "redenção". Ao procurarmos compreender a realização da cruz, as imagens mudam do santuário para o mercado, do reino cerimonial para o mercantil, dos rituais religiosos para as transações comerciais. Pois, no que tem de mais básico, "redimir" é comprar ou comprar de volta, quer como uma transação comercial quer como um resgate. Inevitavelmente, pois, a ênfase da imagem redentora se encontra em nosso estado deplorável — deveras, nosso cativeiro — no pecado que

tornou necessário um ato de salvação divina. A "propiciação" enfoca a ira de Deus a qual

foi aplacada pela cruz; a "redenção" centraliza-se na má situação dos pecadores da qual foram resgatados pela cruz.

E "resgate" é a palavra correta a ser usada. As palavras gregas lytroo (geralmente traduzida por "redimir'') e apolytrosis ("redenção") derivam-se de lytron ("um resgate" ou "o preço da soltura"), que era um termo quase técnico no mundo antigo para a compra ou a ma-numissão de um escravo. Em vista do "uso invariável de autores seculares", a saber, que esse grupo de palavras se refere a "um processo que envolve a liberação

através do pagamento de um preço de resgate",23 muitas vezes bem custoso, escreveu

Leon Morris, não temos liberdade alguma de diluir o seu significado numa liberação vaga

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 90-111)