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Sofrimento e Glória

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 173-190)

O fato do sofrimento indubitavelmente tem sido o maior desafio à fé cristã em todas as gerações. Sua distribuição e grau parecem ser inteiramente ao acaso e, portanto, injustos. Os espíritos sensíveis perguntam se o sofrimento pode, de algum modo, reconciliar-se com a justiça e o amor de Deus.

No dia primeiro de novembro de 1755 Lisboa foi devastada por um terremoto. Sendo o Dia de Todos os Santos, as igrejas estavam cheias, e trinta foram destruídas. Dentro de seis minutos 15.000 pessoas tinham morrido e outras 15.000 estavam morrendo. Um dos muitos que foram atordoados pelas notícias foi o filósofo francês Voltaire. Durante meses ele aludiu ao terremoto em suas cartas em termos de apaixonado horror. Como podia alguém agora acreditar na bondade e onipotência de Deus? Ele ridicularizou as linhas de Alexandre Pope em seu Ensaio Acerca do Homem, que havia sido escrito numa vila segura e confortável de Twickenham:

E, a despeito do orgulho, a despeito da razão errante, Uma verdade é clara: O que quer que for, é certo.

Voltaire sempre se tinha rebelado contra essa filosofia do Otimismo. Poderia Pope repetir os seus versos, se se tivesse encontrado em Lisboa? A Voltaire pareciam ilógicas (interpretando o mal como bem), irreverentes (atribuindo o mal à Providência) e injuriosas (inculcando resignação em vez de ação construtiva). Ele expressou o seu protesto pela primeira vez em Poema Acerca do Desastre de Lisboa, que pergunta por que, se Deus é livre, justo e bom, sofremos sob o seu governo. É o antigo enigma de que Deus ou não é bom ou não é todo-poderoso. Ou ele deseja dar fim ao sofrimento mas não pode fazê-lo, ou ele poderia mas não quer. Qualquer que seja o caso, como podemos adorá-lo como Deus? O segundo protesto de Voltaire foi escrever seu romance satírico

Candide, a história de um jovem engenhoso, cujo mestre, o Dr. Pangloss, um professor de

Otimismo, continua a assegurá-lo de que "tudo acontece para o melhor no melhor de todos os mundos possíveis", em desafio às suas sucessivas calamidades. Quando naufragam perto de Lisboa, Candide quase morre no terremoto, e Pangloss é enforcado pela Inquisição. Escreve Voltaire: "Candide, aterrorizado, sem fala, sangrando, palpitando,

disse a si mesmo: Se este é o melhor de todos os mundos possíveis, como será o resto?"1

Todavia, o problema do sofrimento está longe de ser de interesse somente dos filósofos. Ele vem de encontro a quase todos nós na área pessoal; poucos passam pela vida inteiramente ilesos. Pode ser uma privação de infância que resultou numa desordem emocional para a vida toda, ou uma deficiência congênita da mente ou do corpo. Ou, de súbito e sem aviso, somos atacados por uma enfermidade dolorosa, somos despedidos do emprego, caímos na pobreza ou sofremos a morte de uma pessoa querida. Ou então, sem querer, ficamos sozinhos novamente, um relacionamento de amor se desfaz, o casamento se quebra e chegam o divórcio, a depressão e a solidão.

O sofrimento vem de muitas formas desagradáveis, e às vezes não só fazemos a Deus as nossas perguntas agonizantes: "Por quê?" e "Por que eu?" mas até mesmo, como Jó,

nos encolerizamos contra ele, acusando-o de injustiça e indiferença. Não conheço um

líder cristão mais sincero em confessar sua ira do que Joseph Barker, que foi ministro do Templo da Cidade de 1874 até sua morte em 1902. Ele diz em sua autobiografia que até à idade de 68 anos jamais teve uma dúvida acerca da religião. Então sua esposa faleceu, e sua fé entrou em colapso. "Naquela hora negra", escreveu ele, "quase me tornei um ateu. Pois Deus havia colocado os pés sobre as minhas orações e tratado as minhas petições com desprezo. Se eu tivesse visto um cão em agonias como as minhas, eu teria tido pena e ajudado a besta; contudo, Deus cuspiu sobre mim e lançou-me fora como

uma ofensa — fora na desolação do deserto e na noite negra e sem estrelas."2

É preciso dizer imediatamente que a Bíblia não supre solução completa ao problema do mal, quer seja mal "natural", quer "moral", isto é, quer na forma de sofrimento quer de pecado. Conseqüentemente, embora faça referência ao pecado e ao sofrimento praticamente em todas as suas páginas, seu interesse não é explicar a origem destes, mas ajudar-nos a vencê-los.

Meu objetivo neste capítulo é explorar a relação que possa existir entre a cruz de Cristo e os nossos sofrimentos. De modo que não apresentarei outros argumentos padrões acerca do sofrimento, incluídos nos livros textos, mas os mencionarei apenas como introdução.

Primeiro, segundo a Bíblia, o sofrimento é uma intromissão alheia ao bom mundo de

Deus, e não terá parte em seu novo Universo. É uma investida violenta e destrutiva de Satanás contra o Criador. O livro de Jó esclarece esse ponto. Também o fazem a descrição de Jesus de uma mulher enferma como estando "presa" por Satanás, o seu repreender as doenças como repreendia os demônios, a referência de Paulo a seu "espinho na carne" como "mensageiro de Satanás", e o retrato que Pedro fez do ministério de Jesus como

"curando a todos os oprimidos do diabo".3 Assim, não importa o que se possa dizer mais

tarde acerca do "bem" que Deus pode tirar do sofrimento, não devemos nos esquecer de que é bem extraído do mal.

Segundo, com freqüência o sofrimento é devido ao pecado. É claro que originalmente a doença e a morte entraram no mundo através do pecado. Mas agora estou pensando no pecado atual. Às vezes o sofrimento vem por causa do pecado de outros, como acontece quando as crianças sofrem nas mãos de pais desamorosos ou irresponsáveis, os pobres e os famintos sofrem pela injustiça econômica, os refugiados sofrem por causa das crueldades da guerra, e os que morrem nas estradas por causa de motoristas embriagados.

Outras vezes o sofrimento pode ser a conseqüência de nosso próprio pecado (o uso indevido de nossa liberdade) e até mesmo sua penalidade. Não devemos fazer vista

grossa às passagens bíblicas que atribuem a enfermidade ao castigo de Deus.4 Ao

mesmo tempo devemos repudiar firmemente a horrível doutrina hindu do carma, que atribui todo sofrimento a ações erradas nesta ou numa existência anterior, e a doutrina dos assim chamados consoladores de Jó, quase tão horrível quanto aquela. Apresentaram sua ortodoxia convencional de que todo sofrimento pessoal é devido ao pecado pessoal, e um dos principais propósitos do livro de Jó é contradizer essa noção popular mas

errônea. Jesus também rejeitou-a categoricamente.5

Terceiro, o sofrimento é devido à nossa sensibilidade humana à dor. O infortúnio é agravado pela dor (física ou emocional) que sentimos. Mas os sensores da dor do sistema nervoso central emitem valiosos sinais de aviso, necessários à sobrevivência pessoal e social. Talvez a melhor ilustração dessa verdade seja a descoberta do Dr. Paul Brand no Hospital Evangélico Velore, no Sul da Índia, de que o mal de Hansen (lepra) entorpece as extremidades do corpo, de modo que as úlceras e infecções que se desenvolvem sejam problemas secundários, devidos à perda de sensibilidade. Se vamos proteger-nos a nós mesmos, é necessário que as reações nervosas doam. "Graças a Deus por inventar a dor!", escreveu Philip Yancey. "Não acho que ele poderia ter feito um trabalho melhor. E linda."6

Quarto, o sofrimento é devido ao tipo de ambiente em que Deus nos colocou. Embora a maior parte do sofrimento humano seja causada pelo pecado humano (C. S. Lewis

calculou que chega a quatro quintos, e Hugh Silvester dezenove vinte avós, isto é, 95%7),

os desastres naturais como inundações, tufões, terremotos e secas não o são. É verdade que se pode argumentar que Deus não pretendia que as "áreas inóspitas" da Terra

fossem habitadas, muito menos ampliadas pela irresponsabilidade ecológica.8 Entretanto,

grande quantidade de gente continua vivendo onde nasceram e não têm possibilidade de mudar. O que se pode dizer, então, acerca das assim chamadas "leis" naturais que na tempestade e no vendaval implacavelmente esmagam pessoas inocentes?

C. S. Lewis foi ao ponto de dizer que "nem mesmo a Onipotência poderia criar uma sociedade de almas livres sem ao mesmo tempo criar uma Natureza relativamente independente e 'inexorável' ".9 "O de que precisamos para a sociedade humana",

prosseguiu Lewis, "é exatamente o que temos — algo neutro", estável e possuindo "uma natureza própria fixa", como a arena na qual podemos agir livremente uns para com os

outros e para com ele.10 Se vivêssemos em um mundo no qual Deus impedisse que o mal

acontecesse, como o Super-homem dos filmes de Alexander Salkind, a atividade livre e responsável seria impossível.

Sempre tem havido aqueles que insistem em que o sofrimento é sem sentido, e que não podemos detectar absolutamente nenhum propósito nele. No mundo antigo encontravam-se nesse grupo os estóicos (que ensinavam a necessidade de submissão corajosa às leis inexoráveis da natureza) e os epicureus (que ensinavam que o melhor escape do mundo imprevisível era a indulgência no prazer). E no mundo moderno, os existencialistas seculares acreditam que tudo, inclusive a vida, o sofrimento e a morte, é sem sentido e, portanto, absurdo.

Mas os cristãos não podem seguir por esse beco sem saída. Pois Jesus mencionou o sofrimento como sendo tanto para a "glória de Deus", para que o Filho fosse glorificado através dele, como "para que se manifestem nele as obras de Deus"." Essa afirmação de alguma maneira (ainda a ser explorada) parece significar que Deus está operando a revelação da sua glória no sofrimento e através dele, como fez (embora de modo diferente) por meio do de Cristo. Qual é, pois, o relacionamento entre o sofrimento de Cristo e o nosso? Como é que a cruz nos fala em nossa dor? Desejo sugerir, com base nas Escrituras, seis possíveis respostas a essas questões, as quais parecem passar gradativamente do mais simples ao mais sublime.

Perseverança paciente

Primeiro, a cruz de Cristo é um estímulo à perseverança paciente. Embora tenhamos de reconhecer o sofrimento como mal e, portanto, resistir a ele, contudo chega a época em que ele tem de ser aceito realisticamente. É então que o exemplo de Jesus, o qual o Novo Testamento coloca diante de nós para que o imitemos, traansforma-se em inspiração. Pedro conduziu a mente dos seus leitores ao sofrimento, especialmente se fossem escravos cristãos com donos severos durante a perseguição de Nero. Não lhes seria de nenhum crédito em particular o serem chicoteados por causa de algum malefício e o agüentarem com paciência. Mas se, por fazerem o bem, suportassem o sofrimento, essa atitude seria agradável a Deus. Por que? Porque o sofrimento não merecido faz parte do chamado cristão, visto que o próprio Cristo havia sofrido por eles, deixando-lhes o exemplo para que seguissem em seus passos. Embora sem pecado, ele foi insultado, mas jamais retaliou (1 Pedro 2:18-23).

Jesus deu o exemplo de perseverança bem como de não retaliação, o qual nos devia incentivar a perseverar na carreira cristã. Necessitamos olhar firmemente para Jesus, pois ele "suportou na cruz, não fazendo caso da ignomínia". Portanto: "Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossas almas" (Hebreus 12:1-3).

Embora esses dois exemplos se relacionem especificamente à oposição ou perseguição, parece legítimo dar-lhes uma aplicação mais ampla. Cristãos de todas as gerações, ao contemplarem os sofrimentos de Cristo, os quais culminaram na cruz, têm obtido a inspiração para suportar com paciência a dor não merecida, sem reclamar nem revidar.

É verdade que ele não teve de suportar muitos tipos de sofrimento. Contudo, seus sofrimentos foram notavelmente representativos. Tomemos Joni Eareckson como exemplo. Em 1967, uma adolescente linda e atlética, sofreu terrível acidente de mergulho na baía de Chesapeake, o qual a deixou quadriplégica. Ela conta a sua história com tocante honestidade, inclusive suas épocas de amargura, ira, rebeldia e desespero, e como, gradativamente, através do amor de familiares e amigos, ela chegou a confiar na soberania de Deus e construir uma nova vida de pintura com a boca e conferências públicas sob a bênção de Deus. Certa noite, mais ou menos três anos depois do acidente de Joni, Cindy, uma de suas amigas mais chegadas, assentada ao lado da cama de Joni, falou-lhe de Jesus, dizendo: "Ora, ele também ficou paralisado". Não lhe havia ocorrido

antes que na cruz Jesus sofreu dor parecida com a dela, ficando incapaz de se mover,

praticamente paralisado. Ela achou esse pensamento profundamente confortador.12

Santidade madura

Segundo, a cruz de Cristo é o caminho da santidade madura. Por mais extraordinário que possa parecer, podemos acrescentar: "foi para ele e o é para nós". É necessário que consideremos as implicações de dois versículos um tanto negligenciados da carta aos Hebreus:

Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse por meio de sofrimentos o Autor da salvação deles (2:10).

Embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem (5:8-9; cf. 7:28).

Os dois versículos falam de um processo no qual Jesus foi "aperfeiçoado", e os dois atribuem o processo de aperfeiçoamento ao seu "sofrimento". Não, é claro, que ele jamais tivesse sido imperfeito no sentido de haver cometido erros, pois Hebreus sublinha

a sua pureza.13 Antes, foi que ele necessitava de mais experiência e oportunidades a fim

de se tornar teleios, "maduro". Em particular, ele "aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu". Ele jamais foi desobediente. Mas seus sofrimentos foram o campo de teste no qual a sua obediência se tornou adulta.

Se o sofrimento foi o meio pelo qual o Cristo sem pecado se tornou maduro, tanto mais nós necessitamos dele em nossa pecaminosidade. É interessante que Tiago usa a mesma linguagem de "perfeição" ou "maturidade" com relação aos cristãos. Assim como o sofrimento conduziu Cristo à maturidade através da obediência, da mesma forma ele nos leva à maturidade por meio da perseverança.

Meus irmãos, tendo por motivo de toda a alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança. Ora, a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes {Tiago 1:2-4; cf. Romanos 5:3-5).

As Escrituras desenvolvem três imagens gráficas a fim de exemplificar como Deus usa o sofrimento com relação ao seu propósito de nos tornar santos, em outras palavras, semelhantes a Cristo. São a do pai que corrige os filhos, do trabalhador em metal que refina a prata e o ouro, e do lavrador que poda a sua vinha. Podemos ver o quadro do pai e dos filhos já em Deuteronômio, onde Moisés diz: "Sabe, pois, no teu coração que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor teu Deus." A metáfora

aparece novamente no livro de Provérbios, onde acentua-se que a disciplina do pai é

uma expressão do seu amor pelos filhos, e os versículos de Provérbios são citados na

carta aos Hebreus e ecoados na mensagem de Jesus à igreja laodicense.14

A passagem de Hebreus é a mais longa. Ensina que a disciplina paterna distingue os filhos verdadeiros dos ilegítimos; que Deus nos disciplina apenas para o nosso bem, a saber, "a fim de sermos participantes da sua santidade"; que no momento a disciplina é dolorosa, desagradável, mas que mais tarde ela "produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça", deveras, não para todos (pois alguns se rebelam contra a disciplina), mas para aqueles que se submetem a ela e, assim, são "por ela exercitados".

O segundo quadro de Deus como o de refinador de prata e ouro ocorre três vezes no Antigo Testamento, onde se torna claro que o lugar do refinamento de Israel foi na "fornalha da aflição", e Pedro o aplica à provação de nossa fé cristã em "várias provações". O processo é doloroso, mas por meio dele nossa fé (cujo valor é "muito mais precioso do que o ouro") terá a prova de que é genuína e resultará na glória de Jesus Cristo.15

O terceiro quadro o próprio Jesus desenvolveu em sua alegoria da videira, na qual a frutificação dos ramos (quase certamente um símbolo do caráter cristão) dependerá não somente de estarem na videira, mas também em serem podados pelo viticultor. A poda é processo drástico, que muitas vezes parece cruel, à medida que a videira é recortada e

deixada quase desnuda. Mas quando voltam a primavera e o verão, há muito fruto.16

As três metáforas descrevem um processo negativo, a disciplina da criança, a refinação do metal e a poda da videira. Mas as três também sublinham o resultado positivo — o bem-estar da criança, a pureza do metal e a frutificação da videira. Não devemos hesitar em dizer, portanto, que Deus pretende que o sofrimento seja um "meio da graça". Muitos dos seus filhos podem repetir a afirmação do Salmista: "Antes de ser afligido andava errado, mas agora guardo a tua palavra" (Salmo 119:67). Pois se o amor de Deus é amor santo, como o é, então se interessa não apenas em agir em santidade (como na cruz de Cristo), mas também em promover a santidade (no povo de Deus). Como já vimos, o sofrimento favorece a perseverança e purifica a fé. Ele também desenvolve a humildade, como na ocasião em que o espinho na carne de Paulo teve o propósito de impedir que ele se tornasse orgulhoso. E aprofunda a visão, como através do amor não correspondido de Oséias por Gômer foram-lhe reveladas a fidelidade e a paciência do amor de Yavé por Israel.17

Tampouco devíamos deixar de perceber os benefícios que podem advir à vida de outras

pessoas, como o altruísmo heróico dos que cuidam dos enfermos, dos senis e dos

deficientes, e o surgimento espontâneo da generosidade para com os povos famintos da África.

A igreja Católica Romana tradicionalmente tem falado de "sofrimento redentor". Seu ensino oficial é que, mesmo depois que a culpa de nossos malefícios é perdoada, seu castigo ainda deve ser completado aqui nesta vida ou no purgatório (que é "a igreja sofrendo"). Assim, o perdão não cancela a penitência, pois o castigo deve ser acrescentado ao perdão. As melhores penitências, além do mais, não são as designadas pela igreja mas as enviadas pelo próprio Deus — a saber, "cruzes, enfermidades, dores" — as quais propiciam o nosso pecado. Há, na verdade, "dois motivos para o sofrimento pelo pecado: primeiro, expiação a Deus, e segundo, reformulação de nossa alma." Pois o

sofrimento subjuga nossos apetites corporais, purifica-nos e restaura-nos.18

Esse tipo de ensino, que parece tanto subestimar a perfeição com a qual Deus, mediante Cristo, nos redimiu e nos perdoou, como atribuir eficácia expiadora a nossos sofrimentos, é muito ofensivo à mente e consciência protestante. Alguns católicos romanos, porém, usam a expressão "sofrimento redentor", simplesmente para indicar que a aflição, embora a alguns torne amargos, a outros transforma.

É nesse sentido que Mary Craig escreve do "poder redentor do sofrimento". Ela descreve como dois de seus quatro filhos nasceram com severas deficiências, Paulo, seu segundo filho, com a síndrome incapacitadora e desfiguradora de Hohler, e Nicholas, seu quarto filho, com a síndrome de Down. Ela conta a história de sua luta espiritual sem autopiedade ou melodrama. No capítulo final do seu livro, apropriadamente intitulado

Bênçãos, ela medita no significado do sofrimento, e é então que introduz a palavra

"redentor". "Em face da evidência", escreve ela, "não creio que o sofrimento seja, em última análise, absurdo ou sem sentido", embora "seja freqüentemente difícil continuar a convencer a nós mesmos" desse fato. A princípio reagimos com incredulidade, ira e desespero. Contudo, "o valor do sofrimento não está na dor que acarreta,. . . mas no que o sofredor faz com ele. . . É no pesar que descobrimos as coisas que são realmente importantes; é no pesar que descobrimos a nós mesmos".

Visto que Jesus é o único Redentor, e o Novo Testamento jamais usa a linguagem da redenção acerca de nada que fazemos, seremos sábios em não falar de "sofrimento redentor". "Sofrimento criativo", uma expressão popularizada pelo Dr. Paul Tournier em seu livro mais recente, seria melhor, desde que não se imagine que o sofrimento na realidade crie alguma coisa. Mas ele certamente estimula a "criatividade", e é essa a

mensagem. Tournier começa referindo-se a um artigo escrito pelo Dr. Pierre Rentchnick,

de Geneva, em 1975, intitulado "Órfãos Dirigem o Mundo". Tendo como base a vida dos

políticos mais influentes do mundo, ele fez a espantosa descoberta de que quase 300 deles foram órfãos, de Alexandre, o Grande, e Júlio César a Carlos V, e de Luís XIV a

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