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A Penetrante Influência da Cruz

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 190-200)

No primeiro capítulo procurei estabelecer a centralidade da cruz na mente de Cristo, na Escritura e na história; no último examinarei como, a partir desse centro, a influência da cruz se estende para fora até penetrar toda a vida e fé cristã. Antes, porém, de desenvolver esse tema, pode-nos ser útil pesquisar o território que atravessamos.

Em resposta à pergunta "Por que Cristo morreu?" refletimos que, embora Judas o tivesse entregado aos sacerdotes, os sacerdotes a Pilatos, e Pilatos aos soldados, o Novo Testamento indica que o Pai o "entregou" e que Jesus "deu-se a si mesmo" por nós. Essa verdade nos levou a olhar abaixo da superfície ao que estava acontecendo, e investigar as implicações das palavra de Jesus no cenáculo, no jardim do Getsêmani e examinar o grito de abandono.

Já se tornara evidente que sua morte relacionava-se com nossos pecados, e, assim, na Segunda Parte chegamos ao próprio coração da cruz. Começamos tratando do problema do perdão como o conflito entre a majestade de Deus e a gravidade do pecado. E embora tenhamos rejeitado as teorias da "satisfação", concluímos no capítulo 5 que Deus deve "satisfazer-se a si mesmo". Isto é, ele não pode contradizer a si mesmo, mas deve agir de modo que expresse seu perfeito caráter de santo amor. Mas como podia ele fazer isso? Nossa resposta (capítulo 6) foi que a fim de satisfazer a si mesmo ele substituiu-se a si mesmo em Cristo por nós. Ousamos apresentar a "auto-satisfação pela auto-substituição" como a essência da cruz.

Na Terceira Parte olhamos além da cruz para suas conseqüências, deveras, sua realização, em três esferas: a salvação dos pecadores, a revelação de Deus e a conquista do mal. Quanto à salvação, estudamos as quatro palavras "propiciação", "redenção", "justificação" e "reconciliação". Essas são "imagens" do Novo Testamento, metáforas do que Deus fez na morte de Cristo e por meio dela. Contudo, a "substituição" não é outra imagem; é a realidade que jaz por trás de todas elas. Vimos, então (capítulo 8), que Deus revelou completa e finalmente o seu amor e justiça exercendo-os na cruz. Quando se nega a substituição, obscurece-se a auto-revelação de Deus, mas quando se afirma a substituição, o brilho da sua glória aumenta. Assim, tendo-nos concentrado até aqui na cruz tanto como realização objetiva (salvação do pecado) quanto influência subjetiva (mediante a revelação do santo amor), concordamos em que Christus Victor é um terceiro tema bíblico, o qual retrata a vitória de Cristo sobre o diabo, a lei, a carne, o mundo e a morte, e a nossa vitória através dele (capítulo 9). Dei o título de "Vivendo Sob a Cruz" à Quarta Parte porque a comunidade cristã é essencialmente uma comunidade da cruz. De fato, a cruz radicalmente alterou todos os nossos relacionamentos. Agora adoramos a Deus em celebração contínua (capítulo 10), compreendemos a nós mesmos e damos a nós mesmos no serviço a outros (capítulo 11), amamos os nossos inimigos, procuramos vencer o mal com o bem (capítulo 12), encarando o desconcertante problema do sofrimento à luz da cruz (capítulo 13).

Sete afirmações na carta aos Gálatas

A fim de enfatizar, em conclusão, a influência penetrante da cruz, a saber, que não podemos eliminá-la de nenhuma área de nosso pensamento e vida, examinaremos a carta de Paulo aos Gálatas. São dois os motivos principais dessa escolha. Primeiro, indiscutivelmente é a primeira carta do apóstolo. Não é este o lugar para determinar os prós e os contras das teorias gálata-sul ou gálata-norte. A semelhança com a carta aos Romanos pode sugerir a última data, mas a situação pressuposta em Gálatas se enquadra melhor na cronologia de Atos e fortemente favorece uma data anterior. Nesse caso a carta foi escrita por volta de 48 A.D., quinze anos depois da morte e ressurreição

de Jesus. Segundo, o evangelho de Paulo em Gálatas (o qual ele defende, juntamente com sua autoridade apostólica, como vindo de Deus, não do homem) focaliza-se na cruz. Deveras, a carta contém sete admiráveis afirmações acerca da morte de Jesus, e cada uma delas ilumina uma faceta diferente. Colocando-as juntas, obtemos uma compreen- são espantosamente completa da influência penetrante da cruz.

1. A cruz e a salvação (1:3-5)

Graça a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai, e do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

Essas palavras fazem parte da saudação introdutória de Paulo. Em geral uma saudação epistolar como essa seria casual ou convencional. Mas Paulo a usa como uma declaração teológica cuidadosamente equilibrada acerca da cruz, a qual indica o interesse do apóstolo na carta.

Primeiro, a morte de Jesus foi tanto voluntária quanto determinada. Por um lado, ele "se entregou a si mesmo pelos nossos pecados", livre e voluntariamente. Por outro, sua autodoação foi "segundo a vontade de nosso Deus e Pai". Deus Pai propôs e desejou a morte de seu Filho e a predisse nas Escrituras do Antigo Testamento. Contudo, Jesus abraçou esse propósito de livre e espontânea vontade. Ele dispôs sua vontade a fim de fazer a vontade do Pai.

Segundo, a morte de Jesus foi pelos nossos pecados. O pecado e a morte são integralmente relacionados através da Escritura como causa e efeito, como já vimos. Geralmente o que peca e o que morre são a mesma pessoa. Aqui, entretanto, embora os pecados sejam nossos, a morte é de Cristo: ele morreu pelos nossos pecados, levando a penalidade deles em nosso lugar.

Terceiro, o propósito da morte de Jesus foi resgatar-nos. A salvação é uma operação de resgate, empreendida pelas pessoas cuja situação é tão desesperadora que não podem salvar-se a si mesmas. Em especial, ele morreu a fim de nos salvar "deste mundo perverso". Tendo Cristo inaugurado uma nova era, as duas eras se sobrepõem no presente. Mas ele morreu a fim de nos resgatar da antiga era e assegurar nossa transferência à nova, de modo que já vivêssemos a vida da era vindoura.

Quarto, o resultado presente da morte de Jesus é graça e paz. "Graça" é o seu favor livre e imerecido, e "paz" é a reconciliação com ele e uns com os outros, fruto da operação da graça. A vida da era vindoura é uma vida de graça e paz. Paulo continua a referir-se a ela nos versículos seguintes, nos quais ele exprime seu espanto de que os Gálatas tão rapidamente tivessem desertado aquele que os tinha chamado "na graça de Cristo" (v. 6). Pois o chamado de Deus é um chamado da graça, e o evangelho de Deus é um evangelho da graça.

Quinto, o resultado eterno da morte de Jesus é que Deus será glorificado para sempre. As referências dos versículos 3-5 à graça e à glória, como parte da mesma sentença, são surpreendentes. A graça provém de Deus; a glória é devida a ele. Esse epigrama contém toda a teologia cristã.

Aqui, pois, em uma sentença grávida, carregada, encontra-se a primeira declaração de Paulo em Gálatas acerca da cruz. Embora ela tivesse sido determinada eternamente pela vontade do Pai, Jesus se entregou voluntariamente por nós. A natureza da sua morte foi

sofrer a penalidade pelos nossos pecados, e o seu propósito resgatar-nos da antiga era e

transferir-nos à nova, na qual recebemos graça e paz no presente e Deus recebe glória para sempre.

2. A cruz e a experiência (2:19-21)

Porque eu, mediante a própria lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si

mesmo se entregou por mim. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão.

Se já não conhecêssemos o versículo 20, ele nos pareceria extraordinário. Que Jesus Cristo foi crucificado sob Pôncio Pilatos é fato histórico estabelecido, mas o que estaria Paulo querendo dizer ao afirmar que ele foi crucificado com Cristo? Como fato físico era, manifestamente, inverdade, e como fato espiritual era difícil de compreender.

Necessitamos examinar o contexto. Os versículos 15-21 em geral tratam da justificação, como um Deus justo pode declarar justos os injustos. Mas, em especial, afirmam que os pecadores são justificados não pela lei (que recebe sete referências) mas pela graça de Deus mediante a fé. Três vezes no versículo 25 o apóstolo insiste em que ninguém pode ser justificado pela lei. Teria sido muito difícil afirmar com mais força do que ele o faz a impossibilidade da autojustificação, isto é, de ganharmos a aceitação pela obediência da lei. Por que acontece isso? Porque a lei condena o pecado e prescreve a morte como sua penalidade. Assim, a função da lei é condenar, não justificar.

Visto que a lei clama por minha morte como infrator da lei, como posso ser justificado? Somente cumprindo o requisito e morrendo a morte exigida por ela. Se eu mesmo tivesse de fazer tudo isso, contudo, seria meu fim. De modo que Deus providenciou outra maneira. Cristo levou a penalidade da minha quebra da lei, e a bênção do que ele fez se tornou minha porque estou unido com ele. Sendo um com Cristo, posso dizer: "morri para a lei" (v. 19), cumprindo as suas exigências, porque "estou crucificado com Cristo" e agora ele vive em mim (v. 20).

Como acontece em Romanos 6 e em Gálatas 2, a declaração de nossa morte e ressurreição com Cristo é a resposta de Paulo à acusação de antinomianismo. E óbvio que ninguém pode ser justificado mediante a observância da lei. Mas isso não significa que estou livre para quebrá-la. Pelo contrário, é inconcebível que eu continue a pecar. Por quê? Porque morri; fui crucificado com Cristo; minha vida de pecados recebeu a condenação que merecia. Em conseqüência eu (o eu velho e pecaminoso) já não vivo.

Mas Cristo vive em mim. Ou, como é evidente que estou vivo, posso dizer que a vida que

agora vivo é completamente diferente. E o velho "eu" (pecaminoso, rebelde e culpado) que já não vive. É o novo "eu" (justificado e livre de condenação) que vive pela fé no Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim.

E importante compreendermos que Paulo se refere à morte e à ressurreição de Cristo, e à nossa morte e ressurreição mediante a união com ele. O apóstolo apresenta a mesma verdade de duas maneiras. Com referência à morte de nossa velha vida, ele pode dizer: "me amou e a si mesmo se entregou por mim" e: "morri. . . Estou crucificado com Cristo". Com referência à ressurreição a uma nova vida, ele pode dizer: "Cristo vive em mim" e "vivo para Deus" (v. 19) ou: "Vivo pela fé no Filho de Deus" (v. 20).

Resumindo, Cristo morreu por mim, e eu morri com ele, cumprindo as exigências da lei e pagando a justa penalidade do pecado. Então Cristo ressurgiu e vive. E eu vivo por meio dele, partilhando sua vida de ressurreição. A justificação pela fé, pois, não elimina a graça de Deus (v. 21). Nem (como em Romanos 6) a toma por assentado, dizendo: "onde o pecado abundou, superabundou a graça". Não, a justificação mediante a fé magnifica a graça de Deus, declarando que a justificação é pela graça somente. É o conceito de justificação pela lei que elimina a graça de Deus, pois se uma situação justa diante de Deus fosse possível pela obediência à lei, então a morte de Cristo seria supérflua.

3. A cruz e a pregação (3:1-3)

Ó Gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado? Quero apenas saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé? Sois assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais agora vos aperfeiçoando na carne?

Paulo acabou de descrever (em 2:11-14) seu encontro público com Pedro em Antioquia, porque Pedro havia-se afastado da comunhão da mesa com os gentios cristãos, e, assim, de fato havia contraditado a livre aceitação de Deus deles pela graça. Paulo prosseguiu a

ensaiar os argumentos que tinha usado com Pedro a fim de provar a doutrina da justificação pela fé. Agora ele se lança numa expressão de espantada indignação. Ele acusa os Gálatas de insensatez. Ele usa a palavra "insensato" (anoetos) duas vezes, que significa ter falta de nous, inteligência. A insensatez deles é tão incaracterística e tão inaceitável que o apóstolo pergunta quem os "fascinou". Ele implica que devem ter sido enfeitiçados, talvez pelo Arquienganador, embora sem dúvida por meio de falsos mestres

humanos. Pois a sua distorção presente do evangelho é totalmente incompatível com o

que ouviram de Paulo e de Barnabé. Ele, portanto, lembra-os de sua pregação de quando esteve com eles. Ele retratou a Jesus Cristo publicamente perante os seus olhos como tendo sido crucificado por causa deles. Como, pois, podiam imaginar que, tendo começado a vida cristã mediante a fé no Cristo crucificado, precisavam continuá-la por meio da sua própria realização?

Temos muito que aprender com esse texto acerca da pregação do evangelho.

Primeiro, pregar o evangelho é proclamar a cruz. É verdade que devemos acrescentar a ela a ressurreição (1:1; 2:19-20). Da mesma forma devemos acrescentar que Jesus nasceu de uma mulher sob a lei (4:4). Mas o evangelho em essência é as boas novas do Cristo crucificado.

Segundo, pregar o evangelho é proclamar visualmente a cruz. Paulo usa um verbo admirável, prographo. Geralmente esse verbo significa "escrever anteriormente", por exemplo, "escrevi há pouco" (Efésios 3:3). Mas grapho pode às vezes significar "desenhar" ou "pintar" em vez de "escrever", e pro pode significar "ante" em lugar de (ante nossos olhos) em vez de em tempo (previamente). De modo que Paulo aqui compara sua pregação do evangelho a uma enorme tela de pintura ou a um cartaz que publicamente exibe um anúncio. O assunto dessa pintura ou desse cartaz foi Jesus Cristo na cruz. E claro que não era literalmente uma pintura, pois foi criada com palavras. Contudo, era tão visual e tão vivida em seu apelo à imaginação dos Gálatas que o cartaz foi apresentado "ante os vossos olhos". Uma das maiores artes ou dons da pregação do evangelho é transformar os ouvidos das pessoas em olhos, e fazê-las ver o que estamos falando.

Terceiro, pregar o evangelho é proclamar a cruz visualmente como uma realidade

presente. Jesus Cristo havia sido crucificado pelo menos quinze anos antes da data em

que Paulo escrevia, e, em nosso caso, quase dois milênios atrás. O que Paulo fez através da sua pregação (e devemos fazer por meio da nossa) foi trazer aquele evento passado para o presente. O ministério tanto da palavra quanto do sacramento pode fazer isso. Ele pode vencer a barreira do tempo e tornar os eventos passados em realidades presentes de tal modo que as pessoas tenham de reagir a eles. É quase certo que nenhum dos leitores de Paulo esteve presente na crucificação de Jesus; contudo, a pregação do apóstolo a trouxe perante seus olhos de modo que podiam vê-la, e para a sua experiência existencial de modo que ou deviam aceitá-la ou rejeitá-la.

Quarto, pregar o evangelho é proclamar a cruz como uma realidade visual, presente e

permanente. Pois o que nós (como Paulo) devemos colocar perante os olhos das pessoas

não é apenas Christos staurotheis (aoristo) mas Christo estauromenos (perfeito). O

tempo verbal enfatiza não tanto que a cruz foi um evento histórico do passado, mas que sua validade, poder e benefícios são permanentes. A cruz jamais deixará de ser o poder da salvação de Deus para os que crêem.

Quinto, pregar o evangelho é proclamar a cruz também como objeto de fé pessoal. Paulo não apresentou o Cristo crucificado ante os olhos deles para que pudessem apenas olhar para ele e se admirar. O propósito do apóstolo era persuadi-los a virem e colocarem sua confiança em Cristo como seu Salvador crucificado. E era isso que tinham feito. O motivo do espanto de Paulo era que, tendo recebido a justificação e o Espírito pela fé, eles imaginavam poder continuar na vida cristã por meio de suas próprias realizações. Era uma contradição do que Paulo tinha apresentado ante os seus olhos.

Todos quantos, pois, são das obras da lei, estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las. E é evidente que pela lei ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé. Ora, a lei não procede de fé, mas: Aquele que observar os seus preceitos, por eles viverá. Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro; para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos pela fé o Espírito prometido.

Esses versículos constituem uma das exposições mais claras da necessidade, significado e conseqüência da cruz. Paulo se exprime em termos tão fortes que alguns comentaristas não puderam aceitar o que ele escreveu acerca da maldição que Cristo se tornou por nós. A. W. F. Blunt, por exemplo, escreveu em seu comentário: "A linguagem

desse texto é admirável, quase chocante. Não ousaríamos usá-la."1 Joachim Jeremias

também a chamou de uma "frase chocante" e falou de sua "ofensa original".2 Entretanto,

o apóstolo Paulo realmente usou esse tipo de linguagem, e Blunt certamente tinha razão em acrescentar que "Paulo quer dizer cada palavra que proferiu". De modo que temos de aceitá-la.

Têm-se feito diversas tentativas para suavizá-la. Primeiro, sugeriu-se que Paulo deliberadamente despersonalizou a "maldição" chamando-a de "maldição da lei". Mas a expressão em Deuteronômio 21:23 é "maldito de Deus"; não podemos pensar seriamente que Paulo esteja contradizendo a Escritura. Segundo, propôs-se que o "fazer-se maldição"

expressa a simpatia de Cristo pelos infratores da lei, não uma aceitação objetiva do seu

juízo. Eis a interpretação de Blunt: "Não foi por meio de uma ficção forense que Cristo levou os nossos pecados, mas por um ato de genuíno sentimento de companheirismo", qual uma mãe que tem um filho que erra mas que "sente que a culpa dele é também

dela".3 Essa, porém é uma evasão; não faz justiça às palavras de Paulo. Como disse

Jeremias, "fez-se" é "uma circunlocução para a ação de Deus".

Terceiro, diz-se que a declaração de Paulo de que Cristo se tornou "maldição" por nós fica aquém de afirmar que ele na realidade foi "maldito". Mas segundo Jeremias "maldição" é uma "metonímia do amaldiçoado", e devíamos traduzir essa frase como "Deus fez Cristo um amaldiçoado por causa de nós". Esse versículo é, então, paralelo ao de 2 Coríntios 5:21 que diz: "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós". E seremos capazes de aceitar as duas frases, deveras, adorar a Deus pela verdade delas, porque "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo" (2 Coríntios 5:19) mesmo quando ele fez Cristo tanto pecado quanto maldição.

Lutero compreendeu bem claramente o que Paulo queria dizer e expressou suas implicações com característica singeleza:

Nosso Pai misericordioso, vendo-nos oprimidos e vencidos pela maldição da lei, de modo que jamais poderíamos livrar-nos dela por meio de nosso próprio poder, enviou seu único Filho ao mundo e pôs sobre ele todos os pecados de todos os homens, dizendo: Sê tu Pedro, o negador; Paulo, perseguidor, blasfemador e cruel opressor; Davi, o adúltero; o pecador que comeu do fruto no Paraíso; o ladrão que foi pendurado na cruz; e brevemente, sê tu a pessoa que cometeu os pecados de todos

os homens; vê que, portanto, pague-os e os satisfaça.4

Necessitamos sentir a lógica do ensino de Paulo. Primeiro, todos os que confiam na lei

estão sob maldição. No começo do versículo 10 Paulo novamente emprega a expressão

que usou três vezes em 2:16, a saber, "todos quantos, pois, são das obras da lei" (literalmente). O motivo pelo qual Paulo pode declarar que tais estão "debaixo de maldição" é que as Escrituras dizem que estão. "Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas que estão no livro da lei, para praticá-las" (cf. Deuteronômio 27:26). Ser humano algum jamais "permaneceu" em "praticar" o que a lei requer. Ninguém, a não ser Jesus, conseguiu prestar tal obediência contínua e total, de modo que "ê

evidente" (v. 11) que "pela lei ninguém é justificado diante de Deus", porque ninguém a guardou.

Além disso, a Escritura também diz que "o justo viverá pela fé" (Habacuque 2:4), e

viver "pela fé" e viver "pela lei" são dois estados completamente diferentes (v. 12). A conclusão é inevitável. Embora teoricamente os que obedecem à lei viverão, na prática ninguém viverá, porque ninguém ainda lhe obedeceu. Portanto, não podemos obter a salvação dessa maneira. Pelo contrário, longe de sermos salvos pela lei, somos

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 190-200)