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O Problema do Perdão

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 45-60)

O "olhar abaixo da superfície" do capítulo anterior pode ter provocado em alguns leitores uma reação de impaciência. "A simples ceia no cenáculo", você pode estar dizendo, "e até mesmo a oração de agonia no jardim e o grito da cruz, tudo isso deve ter explicação mais direta. Por que você complica tudo com o seu teologizar tortuoso?" É uma reação compreensível.

Em particular, a nossa insistência de que segundo o evangelho a cruz de Cristo é o único fundamento sobre o qual Deus perdoa pecados confunde a muita gente. "Por que o nosso perdão depende da morte de Cristo?" perguntam. "Por que Deus não nos perdoa simplesmente, sem a necessidade da cruz?" Como disse certo cínico francês: "le bon

Dieu me pardonnera; c'est son métier".1 "Afinal de contas", pode continuar o discordante,

"se pecamos uns contra os outros, requer-se que perdoemo-nos uns aos outros. Somos até mesmo advertidos das terríveis conseqüências da falta de perdão. Por que Deus não pratica o que prega e é igualmente generoso? Não é preciso que ninguém morra para que nos perdoemos uns aos outros. Então por que Deus cria tanta confusão acerca de perdoar-nos e até declara que sem o sacrifício do seu Filho pelo pecado o perdão é impossível? Parece uma superstição primitiva a qual as pessoas modernas há muito deviam ter atirado fora."

É essencial fazer essas perguntas e responder a elas. Podemos dar-lhes, de imediato, duas respostas, embora necessitemos do restante do capítulo a fim de elaborá-las. A primeira resposta vem do arcebispo Anselmo em seu grande livro Cur Deus Homo?, escrito no final do século onze. Escreveu ele que se alguém imagina que Deus pode

simplesmente nos perdoar como nós perdoamos uns aos outros, essa pessoa "ainda não pensou na seriedade do pecado", ou literalmente "que peso tão grande o pecado é" (I.XXI). Poderíamos expressar a segunda resposta de modo similar: "Você ainda não considerou a majestade de Deus". Quando a percepção que temos de Deus e do homem, da santidade e do pecado, é tortuosa, então nossa compreensão da expiação provavelmente também será tortuosa.

O fato é que a analogia entre o nosso perdão e o de Deus está muito longe de ser exata. É verdade, Jesus nos ensinou a orar, dizendo: "Perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós temos perdoado aos nossos devedores". Mas ele estava ensinando a impossibilidade de perdão da parte da pessoa que não perdoa, e, assim, a obrigação que o perdoado tem de perdoar, como deixa claro a parábola do servo incompassivo; ele não

estava fazendo um paralelo entre Deus e nós com relação à base do perdão.2

Argumentarmos que "perdoamo-nos uns aos outros incondicionalmente, que Deus faça o mesmo por nós", trai não sofisticação mas superficialidade, visto que deixa de lado o fato elementar de que não somos Deus. Somos indivíduos particulares, e os pequenos delitos das outras pessoas são danos pessoais. Deus não é um indivíduo particular, contudo, e o pecado tampouco é mero dano pessoal. Pelo contrário, o próprio Deus é o criador das leis que quebramos e o pecado é rebeldia contra ele.

A pergunta crucial que devemos fazer, portanto, é diferente. Não é por que "Deus acha

difícil perdoar, mas como é que ele acha possível, de algum modo, fazê-lo". Como disse

Emil Brunner: "O perdão é o oposto de tudo aquilo que podemos ter como certo. Nada é

menos óbvio do que o perdão".3 Ou, nas palavras de Carnegie Simpson: "O perdão, para

o homem, é o mais claro dos deveres; para Deus é o mais profundo dos problemas".4

O problema do perdão é constituído pela colisão inevitável entre a perfeição divina e a rebeldia humana, entre Deus como ele é e nós como somos. O obstáculo ao perdão não é somente o nosso pecado nem somente a nossa culpa, mas também a reação divina em amor e ira para com os pecadores culpados. Pois embora, deveras, "Deus seja amor",

contudo, temos de lembrar-nos de que o seu amor é "um amor santo",5 amor que anseia

pelos pecadores enquanto ao mesmo tempo se recusa a tolerar o pecado. Como, pois, poderia Deus expressar o seu santo amor? — seu amor em perdoar pecadores sem comprometer a sua santidade, e a sua santidade ao julgar os pecadores sem frustrar o seu amor? Confrontado pela maldade humana, como poderia Deus ser verdadeiro a si mesmo, como amor santo? Nas palavras de Isaías, como poderia ele ser simultaneamente "Deus justo e Salvador" (45:21)? Porque, apesar da verdade de que Deus tenha demonstrado a sua justiça tomando a iniciativa de salvar o seu povo, as palavras "justiça" e "salvação" não podem ser tomadas como sinônimos. Pelo contrário, a iniciativa divina salvadora era compatível com a sua justiça e a expressava. Na cruz, em santo amor, o próprio Deus, através de Cristo, pagou a penalidade completa de nossa de- sobediência. Ele levou o juízo que merecemos a fim de trazer-nos o perdão que não merecemos. Na cruz, a misericórdia e a justiça divina foram igualmente expressas e eternamente reconciliadas. O santo amor de Deus foi "satisfeito".

Todavia, estou correndo rápido demais. O motivo pelo qual muitos dão respostas erradas às perguntas acerca da cruz, e até mesmo fazem perguntas erradas, é que não pensaram cuidadosamente na seriedade do pecado nem na majestade de Deus. Para que possamos fazê-lo agora, revisaremos quatro conceitos bíblicos básicos, a saber, a gra- vidade do pecado, a responsabilidade moral do homem, a culpa verdadeira e a falsa, e a ira de Deus. Veremos a nós mesmos, assim, sucessivamente como pecadores, responsáveis, culpados e perdidos. Não será um exercício agradável, e, no seu decurso, nossa integridade será testada.

A gravidade do pecado

A própria palavra "pecado", em anos recentes, desapareceu do vocabulário da maioria das pessoas. Pertence à fraseologia religiosa tradicional que, pelo menos no Ocidente

cada vez mais secularizado, muitos agora declaram sem sentido. Além do mais, se alguém menciona o "pecado", na maioria das vezes é compreendido mal. O que é, pois?

O Novo Testamento emprega cinco palavras gregas principais para o pecado, as quais juntas retratam os seus aspectos variados, tanto passivos como ativos. A mais comum dessas palavras é hamartia, que descreve o pecado como um não atingimento do alvo, ou fracasso em alcançar um objetivo. Adikia é "iniqüidade", e poneria é o mal de um tipo vicioso ou degenerado. Ambos os termos parecem falar de uma corrupção ou perversão de caráter. As palavras mais ativas são parabasis (com a qual podemos associar

paraptoma), uma "transgressão", o ir além de um limite conhecido, e anomia, "falta de

lei", o desrespeito ou violação de uma lei conhecida. Cada caso subentende um critério objetivo, um padrão a que falhamos em atingir ou uma linha que deliberadamente cruzamos.

Presume-se, por toda a Escritura, que este critério ou ideal foi estabelecido por Deus. É, de fato, sua lei moral, que expressa seu caráter justo. Não é, contudo, a lei do seu próprio ser somente; é também a lei do nosso, visto que ele nos criou à sua imagem, e ao fazê-lo, escreveu os requisitos da sua lei em nossos corações (Romanos 2:15).

Há, portanto, uma correspondência vital entre a lei de Deus e nós, e pecar é transgredir a lei (1 João 3:4), ofender nosso bem-estar mais elevado, como também ofender a autoridade e o amor de Deus.

A ênfase da Escritura, porém, é sobre a autocentralidade ímpia do pecado. Cada pecado é uma quebra do que Jesus chamou de o primeiro e grande mandamento, não apenas o fracasso de amar a Deus com todo o nosso ser, mas também a recusa ativa de reconhecê-lo e obedecer-lhe como o nosso Criador e Senhor. Rejeitamos a posição de dependência que o fato de sermos criados envolve, e procuramos ser independentes. Pior ainda, ousamos proclamar nossa auto-inde-pendência, nossa autonomia, o mesmo que reivindicar a posição que somente Deus pode ocupar. O pecado não é um lapso lamentável de padrões convencionais; a sua essência é a hostilidade para com Deus (Romanos 8:7), manifesta em rebeldia ativa contra ele. Ele tem sido descrito em termos de "livrar-se do Senhor Deus" a fim de colocarmos a nós mesmos no seu lugar, num espírito altivo de "poderosidade divina". Emil Brunner resume esse pensamento muito bem, ao dizer: "Pecado é desafio, arrogância, desejo de ser igual a Deus. . . Asserção da independência humana contra Deus. . . Constituição da razão autônoma, moralidade e cultura". É com muita razão que ele intitulou o livro do qual tiramos essa citação "Homem em Revolta".

Uma vez que tenhamos visto que cada pecado que cometemos é uma expressão (em diferentes graus de autoconsciência) desse espírito de revolta contra Deus, seremos capazes de aceitar a confissão de Davi: "Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos" (Salmo 51:4). Ao cometer o adultério com Bate-Seba, e ao arranjar para que Urias, o marido dela, fosse morto na batalha, Davi havia cometido ofensas extremamente sérias contra eles e contra a nação. Contudo, eram as leis de Deus que ele tinha quebrado e, por isso, era contra Deus que, em última análise, havia pecado.

Talvez seja a profunda relutância de encarar a gravidade do pecado que tem levado à sua omissão do vocabulário de muitos de nossos contemporâneos. Um observador arguto da condição humana, que notou o desaparecimento da palavra, é o psiquiatra americano Karl Menninger. Ele escreveu a esse respeito em seu livro "O que Foi Feito do Pecado?" Descrevendo a indisposição da sociedade ocidental, o seu humor geral de tristeza e condenação, ele acrescenta que "sente-se a falta de qualquer menção de 'pecado' ". "Essa palavra já esteve na mente de todos, mas agora poucas vezes se ouve. Será que isso significa", pergunta ele, "que o pecado não faz parte de todos os nossos problemas. . .? Será que ninguém comete pecados? Para onde, deveras, foi o pecado? O que aconteceu a ele?" Investigando as causas do desaparecimento do pecado, o Dr. Menninger nota primeiro que "muitos pecados antigos têm-se transformado em crimes",

de modo que a responsabilidade pela sua solução passou da igreja para o Estado, do sacerdote para o policial, ao passo que outros se dissiparam em doenças, ou pelo menos nos sintomas de doenças, de forma que nesses casos o tratamento substituiu o castigo. Um terceiro e conveniente artifício chamado "irresponsabilidade coletiva" capacitou-nos a transferir a culpa de nosso comportamento desviado de nós mesmos como indivíduos para a sociedade como um todo ou para um dos seus muitos agrupamentos.

O Dr. Menninger prossegue fazendo um apelo não somente pela volta da palavra "pecado" ao nosso vocabulário, mas também por um reconhecimento da realidade que ela expressa. Não podemos despedir o pecado como mero tabu cultural ou erro social. Devemos levá-lo a sério. Acrescenta ele: "O clérigo não pode minimizar o pecado e manter o seu papel correto em nossa cultura". Pois o pecado é "uma qualidade implicitamente agressiva — uma crueldade, um ferimento, um afastamento de Deus e do restante da humanidade, uma alienação parcial, ou um ato de rebelião. . . O pecado possui uma qualidade voluntariosa, desafiadora ou desleal: alguém é desafiado ou ofendido ou magoado". Ignorar isto seria desonesto. Confessá-lo capacitar-nos-ia a fazer algo a seu respeito. Além do mais, a volta do pecado inevitavelmente levaria ao "reavivamento ou reafirmação da responsabilidade pessoal". De fato, a "utilidade" de reviver o pecado é que a responsabilidade seria revivida com ele.

A responsabilidade moral humana

Mas será justo culpar os seres humanos por sua má conduta? Somos realmente responsáveis pelas nossas ações? Ou será que, em vez de agentes livres, não passamos de vítimas de outras agências, e, assim, sofremos mais pecado contra nós mesmos do que nós mesmos pecamos? Temos ao nosso alcance toda uma gama de bodes expiatórios — os genes, a química corporal (um desequilíbrio hormonal temporário), o temperamento herdado, o fracasso de nossos pais durante a primeira infância, a criação, o ambiente educacional e social. Juntos, estes parecem constituir um álibi infalível.

Talvez jamais tenha havido tentativa maior de minar o conceito tradicional de responsabilidade do que o livro do Professor B. F. Skinner, intitulado Além da Liberdade e

Dignidade. A tese dele é que "os terríveis problemas que nos encaram no mundo hoje"

(especialmente as ameaças da explosão populacional, a guerra nuclear, a fome, as doenças e a poluição) poderiam todos ser resolvidos por "uma tecnologia do comportamento humano". Isto é, "poderiam ser feitas vastas mudanças no comportamento humano" através de mudanças no ambiente. O homem poderia ser programado para comportar-se corretamente. O que o impede, pois? Resposta: o conceito do "homem autônomo", sua suposta "liberdade" {no que ele é tido como res- ponsável por suas ações) e a sua suposta "dignidade" (em que lhe é dado crédito por suas realizações). Estas coisas, porém, são uma ilusão, pois "uma análise científica transfere para o ambiente tanto a responsabilidade como a realização". O homem deve ter a coragem de criar um ambiente ou cultura social que "adequadamente molda e mantém o comportamento daqueles que vivem nele." Isto é essencial à sobrevivência da humanidade, o que é mais importante do que o conceito tradicional "elogioso" de nossa "liberdade e dignidade". É certo que C. S. Lewis chamou essa transferência da liberdade e dignidade da pessoa para o ambiente de "a abolição do homem". O que seria abolido, porém, é apenas o "homem autônomo. . . o homem defendido pela literatura da liberdade e dignidade". De fato, "há muito que se sente a necessidade da sua abolição". Olhando para o futuro, no qual o homem cria o ambiente que o controla, e assim realiza um "gigantesco exercício no controle próprio", B. F. Skinner termina o seu livro com as palavras: "Ainda não vimos o que o homem pode fazer do homem." É um prospecto enregelante do determinismo autodeterminado.

Contudo, o espírito humano se rebela contra ele. Certamente podemos aceitar o conceito da "responsabilidade diminuída", mas não a dissolução total de toda a responsabilidade, exceto em circunstâncias mais extremas. Um paralelo entre

responsabilidade moral e responsabilidade legal a esta altura é instrutivo. Geralmente falando, a lei criminal assume que as pessoas têm o poder de escolher obedecer à lei ou quebrá-la, e trata-as de acordo. Entretanto, a responsabilidade do crime pode ser atenuada, e até mesmo excluída por certas condições "justificativas". Em seus ensaios sobre a filosofia da lei intitulados Castigo e Responsabilidade, H. L. A. Hart define o princípio como segue: "Em todos os sistemas legais avançados, a responsabilidade da condenação por crimes sérios torna-se dependente, não apenas do ofensor, pelo fato de ter cometido esses atos externos proibidos pela lei, mas também pelo fato de tê-los

praticado em certa estrutura mental, ou sob determinada vontade".6 Esse estado de

mente e de vontade é conhecido tecnicamente como mens rea que, embora possa ser traduzido literalmente por mente culpada, na realidade refere-se à "intenção" da pessoa. Por exemplo, a distinção entre o homicídio intencional e o não intencional, isto é, entre o assassínio e o homicídio não premeditado volta diretamente à lei mosaica. O princípio também possui uma aplicação mais ampla. Se a pessoa comete um delito enquanto está fora de si, sob pressão ou como um autômato, não se pode estabelecer a responsabilidade criminal. A provocação pode reduzir o assassínio a homicídio não premeditado. A contestação por insanidade tem sido aceita durante anos, e tem sido interpretada desde as Regras de McNaghten de 1843 como "doença da mente", levando a coisas como "um defeito da razão", e que o ofensor ou não conhecia a "natureza e a qualidade do ato que estava praticando", ou, se o conhecia, "não sabia que o que estava fazendo era errado". Todavia, as Regras foram criticadas por se concentrarem na igno- rância do ofensor, em vez de na falta de capacidade de controle próprio. De forma que o Ato de Infanticídio de 1938 faz provisão para atos cometidos por uma mulher quando "o equilíbrio de sua mente foi perturbado por motivo de ela não se ter recuperado totalmente do efeito do parto. . .", e o Ato de Homicídio de 1957 provê que uma pessoa "não será condenada por assassínio se estiver sofrendo de uma anomalia mental. . . a qual prejudicou substancialmente a responsabilidade mental de seus atos. . ." Assim, também, o Parlamento Inglês decidiu que criança alguma abaixo de dez anos de idade pode ser considerada culpada de um delito, ao passo que entre as idades de dez a quatorze anos é necessário que se prove especificamente que a criança sabia que o que estava fazendo era seriamente errado.

Assim, a responsabilidade legal depende da responsabilidade mental e moral, isto é, da

mens rea, a intenção da mente e da vontade. As objeções baseadas na falta de

conscientização ou de controle, porém, sempre necessitarão de ser definidas com precisão, e constituem-se exceções. O acusado certamente não pode apelar para sua herança genética ou criação social como desculpa de um comportamento criminal, muito menos para a negligência pessoal ("Simplesmente não pensava no que fazia"). Não, em geral, o procedimento de julgar, condenar e sentenciar em nossos tribunais descansa sobre o conceito de que os seres humanos são livres para fazer escolhas e responsáveis pelas escolhas que fazem.

A mesma coisa acontece nas situações do dia-a-dia. Admitimos que somos condicionados por nossos genes e por nossa educação, mas o espírito humano (para não mencionar a mente cristã) protesta contra o reducionismo segundo o qual o ser humano não passa de um computador (programado para realizar e responder) ou um animal (à mercê de seus instintos). Contra esses conceitos apelamos ao sentido inerradicável do homem de que, dentro de limites razoáveis, somos agentes livres, capazes de tomar nossas decisões e decidir nossas próprias ações. Quando uma alternativa se nos apresenta, sabemos que somos capazes de escolher. E quando fazemos uma escolha er- rada, reprovamos a nós mesmos, porque sabemos que podíamos ter-nos comportado de

modo diferente. Também agimos na assunção de que as outras pessoas são livres e

responsáveis, pois tentamos persuadi-las a aceitar nossa perspectiva, e "todos nós

Acho que Sir Norman Anderson tem razão em chamar a atenção para esse senso humano de responsabilidade. Por um lado, escreve ele, podemos especular acerca da extensão a que as pessoas são "pre-condicionadas pela constituição e condição de seus cérebros, pela estrutura psicológica que herdaram ou adquiriram, pelo curso cego e inevitável da 'natureza' ou pela soberania de um Deus Criador, para se comportarem do modo como o fazem". Mas, por outro lado, é possível "afirmar inequivocamente que não há motivo nenhum para supor que os homens comuns estão enganados em sua firme convicção de que têm, dentro de limites, uma liberdade de escolha e ação genuína, e que esta traz, necessariamente, uma medida correspondente de responsabilidade moral".8

Os três contribuintes às Preleções sobre o Cristianismo Contemporâneo de Londres, em 1982, intituladas Livres para Ser Diferentes, chegaram à mesma conclusão. O Professor Malcolm Jeeves falou e escreveu como psicólogo, o Professor Sam Berre como geneticista, e o Dr. David Atkinson como teólogo. Juntos, investigaram as influências da "natureza" (nossa herança genética), da "nutrição" (nosso condicionamento social) e da "graça" (a iniciativa amorosa e transformadora de Deus) sobre o comportamento humano. Concordaram em que estas coisas, evidentemente, tanto amoldam como restringem o nosso comportamento. Entretanto, suas preleções foram uma rejeição vigorosa e interdisciplinar do determinismo e uma asserção da responsabilidade humana. Embora o assunto todo seja, compreensivelmente, complexo, e não nos seja possível desembaraçar todos os fios, contudo os três contribuintes foram capazes de expressar esta conclusão comum:

Não somos autômatos, incapazes de fazer qualquer coisa a não ser reagir mecanicamente aos genes, ambiente ou até mesmo à graça de Deus. Somos seres pessoais criados por Deus para si mesmo. . . Além do mais, o que Deus nos deu não deve ser visto como um dom estático. Nosso caráter pode ser refinado. Nosso comportamento pode mudar. Nossas convicções podem amadurecer. Nossas dádivas

podem ser cultivadas. . . Nós, de fato, somos livres para ser diferentes. . .9

Quando nos voltamos para a Bíblia, descobrimos a mesma tensão, da qual temos consciência em nossa experiência pessoal, entre as pressões que nos condicionam e nos controlam, e nossa responsabilidade moral permanente. A Bíblia dá ênfase à influência de nossa herança, o que somos "em Adão". A doutrina do pecado original significa que a própria natureza que herdamos está manchada e distorcida pela centralidade do ego. É, portanto, de dentro do coração dos homens, ensinou Jesus, que procedem os pensamentos maus e as más ações (Marcos 7:21-23). Não é de surpreender que ele também descreveu o pecador como escravo do pecado (João 8:34). De fato, somos escravizados ao mundo (moda e opinião pública), à carne (nossa natureza caída), e ao diabo (forças demoníacas). Mesmo depois que Cristo nos liberta e nos torna seus

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