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Amando a Nossos Inimigos

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 164-173)

Viver sob a cruz" significa que todos os aspectos da vida da comunidade cristã são moldados e coloridos por ela. A cruz não somente invoca a nossa adoração (de modo que desfrutamos uma celebração contínua e eucarística), e nos capacita a desenvolver uma auto-estima equilibrada (de modo que aprendemos tanto a compreender a nós mesmos como a dar de nós mesmos), mas ela também dirige a nossa conduta em relação com os outros, incluindo-se os nossos inimigos. Devemos ser "imitadores de Deus, como filhos amados", e andar "em amor, como também Cristo" nos amou "e se entregou a si mesmo por nós" (Efésios 5:1-2). Mais do que isso, devemos exibir em nossos relacionamentos a combinação de amor e justiça que caracterizou a sabedoria de Deus na cruz.

A reconciliação e a disciplina

Mas, como, na prática, devemos combinar amor e justiça, misericórdia e severidade, e assim andarmos no caminho da cruz, com freqüência é difícil saber e mais difícil ainda fazer. Tomemos a "reconciliação" ou o "fazer a paz" como exemplo. Os cristãos são cha- mados para ser "pacificadores" (Mateus 5:9) e buscar a paz e empenhar-se por alcançá-la (1 Pedro 3:11). Ao mesmo tempo, reconhece-se que o fazer a paz jamais pode ser uma atividade unicamente unilateral. A instrução: "Tende paz com todos os homens" é quali- ficada com duas condições "se possível", e "quanto depender de vós" (Romanos 12:18). O que devemos fazer, pois, quando é impossível viver em paz com alguém porque essa pessoa não está disposta a viver em paz conosco? O lugar onde devemos começar a nossa resposta é na bem-aventurança já citada. Pois aí, ao dizer que os pacificadores são

"bem-aventurados", Jesus acrescentou que "serão chamados filhos de Deus".1 Ele deve

ter querido dizer que o fazer a paz é uma atividade tão caracteristicamente divina que,

aqueles que nela se empenham, através dela revelam sua identidade e demonstram sua

autenticidade como filhos de Deus.

Porém, se quisermos que o nosso fazer a paz seja modelado segundo o de nosso Pai celestial, concluiremos imediatamente que é algo bem diferente de apaziguamento. Pois a paz que Deus concede, jamais é uma paz barata, mas sempre custosa. Ele é, de fato, o pacificador preeminente do mundo, mas quando decidiu reconciliar-se conosco, seus "inimigos", que havíamos rebelado contra ele, "fez a paz" através do sangue da cruz de Cristo (Colossenses 1:20). A reconciliação dele conosco, de nós com ele mesmo, e de judeus, gentios e outros grupos hostis uns com os outros, custou-lhe nada menos do que a dolorosa vergonha da cruz. Não temos o direito de esperar, portanto, que nosso empenho na obra da reconciliação não nos custe nada, quer nossa participação na disputa seja como o partido ofensor ou como o ofendido, quer como um terceiro partido ansioso a que inimigos voltem a ser amigos novamente.

Que forma pode tomar esse custo? Com freqüência, começará com o ouvir paciente e doloroso a ambos os lados, a tensão do testemunhar amarguras e recriminações, a luta por compreender cada posição, e o esforço de entender as incompreensões que causaram a ruptura da comunicação. O ouvir honesto pode revelar faltas não suspeitadas, as quais, por sua vez, precisarão ser admitidas, sem lançar mão de subterfúgios para preservar as aparências. Se a culpa for nossa, haverá a humilhação do pedido de desculpas, a humilhação mais profunda de fazer restituição onde for possível, e a humilhação mais profunda de todas que é confessar que as feridas que causamos levarão tempo para sarar e não podem ser facilmente esquecidas. Se, por outro lado, não fomos nós quem causamos o mal, então talvez tenhamos de suportar o embaraço de reprovar ou repreender a outra pessoa, arriscando, assim, perder a sua amizade. Embora os seguidores de Jesus jamais tenham o direito de recusar perdão, muito menos fazer vingança, não nos é permitido baratear o perdão, oferecendo-o prematuramente onde não houver arrependimento. "Se teu irmão pecar contra ti", disse Jesus, "repreende-o", e só então "se ele se arrepender, perdoa-lhe" (Lucas 17:3).

O incentivo à pacificação é o amor, mas ele se degenera em apaziguamento sempre que a justiça é ignorada. Perdoar e pedir perdão são dois exercícios custosos. Toda pacificação cristã autêntica exibe o amor e a justiça — e, portanto, a dor — da cruz.

Voltando-nos dos relacionamentos sociais em geral para a vida familiar em particular, os pais cristãos hão de querer que sua atitude para com os filhos seja marcada pela cruz. O amor é a atmosfera indispensável na qual os filhos crescem para a maturidade emocional

Contudo, esse não é o amor mole e sem princípios, que estraga as crianças, mas o "amor santo" que procura o seu bem-estar maior, não importando o custo. Deveras, visto que o próprio conceito de paternidade humana provém da eterna paternidade divina (Efésios 3:14-15), os pais cristãos hão de naturalmente modelar o seu amor no de Deus. Conseqüentemente, o verdadeiro amor paterno não elimina a disciplina, visto que "o Senhor corrige a quem ama". De fato, é quando Deus nos corrige que ele nos trata como filhos. A falta de correção da parte de Deus poderia mostrar que somos seus filhos ilegítimos e não seus filhos autênticos (Hebreus 12:5-8).

O amor genuíno também se enraivece, sendo hostil a tudo o que, nos filhos, se opõe ao seu bem maior. A justiça sem a misericórdia é por demais severa, e a misericórdia sem a justiça é por demais leniente. Além do mais, os filhos sabem disso automaticamente. Pos- suem um sentido inato de ambas as coisas. Se fizeram algo que sabem ser errado, também sabem que merecem a punição, e tanto desejam quanto esperam recebê-la. Sabem também de imediato se o castigo está sendo oferecido sem amor ou contrariamente à justiça. Os dois clamores mais pungentes de um filho são: "Ninguém me ama" e: "Não é justo". O sentido de amor e justiça dos filhos vem de Deus, que os fez à sua imagem, e que se revelou como amor santo na cruz.

O princípio que se aplica à família, aplica-se também à família da igreja. Ambos os tipos de família precisam de disciplina, e pela mesma razão. Entretanto, hoje é rara a disciplina na igreja, e onde ela é exercida, muitas vezes é inabilmente administrada. As igrejas têm a tendência de oscilar entre a severidade extrema, que excomunga os membros pelas ofensas mais triviais, e a frouxidão extrema, que jamais nem mesmo admoesta os ofensores. O Novo Testamento, porém, oferece instruções claras acerca da disciplina, por um lado sua necessidade por causa da santidade da igreja, e por outro, seu propósito construtivo, a saber, se possível, ganhar e restaurar o membro ofensor.

O próprio Jesus tornou bem claro que o objetivo da disciplina não era humilhar, muito menos alienar a pessoa envolvida; antes, ganhá-la de novo. Ele determinou um procedimento que se desenvolveria através de fases. A primeira fase é uma confrontação pessoal com o ofensor, "entre ti e ele só", durante a qual, se ele o ouvir, será ganho. Se ele se recusar a ouvir, na segunda fase devem-se levar várias outras pessoas a fim de estabelecer a repreensão. Se ele ainda se recusar a ouvir, deve-se levar o caso à igreja,

para que ele possa ter uma terceira oportunidade de se arrepender. Se ele ainda obstinadamente se recusar a ouvir, somente então deve ser excomungado (Mateus 18:15-17).

O ensino de Paulo era parecido com o de Jesus. O membro da igreja apanhado em pecado deve ser restaurado em espírito de brandura e humildade; isso seria um exemplo de levar os fardos uns dos outros e assim cumprir a lei do amor de Cristo (Gálatas 6:1-2). Mesmo a entrega a Satanás, mediante a qual presumivelmente Paulo se referia à excomunhão de um flagrante ofensor, tinha um propósito positivo, a fim de "não mais blasfemarem" (1 Timóteo 1:20), ou pelo menos a fim de que "o espírito seja salvo no dia do Senhor" (1 Coríntios 5:5). Assim toda ação disciplinar deve exibir o amor e a justiça da cruz.

Mais desconcertante do que esses exemplos extraídos da vida de indivíduos, da família e da igreja é a administração da justiça pelo estado. Pode a revelação de Deus na cruz ser aplicada também a esta área? Mais particularmente, pode o estado usar força, ou seria ela incompatível com a cruz? E claro que a cruz em si foi um ato conspícuo de violência pelas autoridades, envolvendo uma violação flagrante da justiça e uma execução brutal. Contudo, foi igualmente um ato conspícuo de não violência da parte de Jesus, que se permitiu ser injustamente condenado, torturado e executado sem resistir, muito menos retaliar. Além do mais, o Novo Testamento apresenta o comportamento dele como o modelo do nosso: "Se, entretanto, quando praticais o bem, sois igualmente afligidos e o suportais com paciência, isto é grato a Deus. Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos" (1 Pedro 2:20-21). Entretanto, esse texto provoca muitas questões. Será que a cruz nos submete a uma aceitação não violenta de toda violência? Invalida ela o processo de justiça criminal e a assim chamada "guerra fria"? Proíbe a cruz o uso de todo tipo de força, de modo que os postos de soldado, policial, magistrado ou carcereiro seriam incompatíveis com o cristão?

Atitudes cristãs para com o mal

A melhor maneira de procurar respostas a essas perguntas é examinar com todo o cuidado os capítulos doze e treze da carta de Paulo aos Romanos. São parte do apelo que o apóstolo faz para que seus leitores cristãos reajam corretamente às "misericórdias de Deus". Durante onze capítulos ele revelou a misericórdia de Deus tanto em entregar o seu Filho para morrer por nós como em nos conceder a plena salvação que ele, desse modo, obteve para nós. Qual deve ser a nossa resposta à misericórdia divina? Devemos (1) apresentar os nossos corpos a Deus por sacrifício vivo, e com mentes renovadas discernir e fazer a sua vontade (12:1-2); (2) pensar de nós mesmos com juízo sóbrio, nem vangloriando-nos de nós mesmos, nem despre-zando-nos a nós mesmos (v. 3); (3)

amar uns aos outros, usando nossos dons a fim de servir uns aos outros, e viver em

harmonia e humildade (vv. 4-13, 15-16); e (4) devemos abençoar os que nos perseguem e fazer o bem a nossos inimigos (vv. 14, 17-21). Por outras palavras, quando as misericórdias de Deus nos apanham, todos os nossos relacionamentos são radicalmente transformados: obedecemos a Deus, compreendemos a nós mesmos, amamos uns aos outros e servimos a nossos inimigos.

É pelo quarto relacionamento apresentado acima que nos interessamos agora. A oposição dos incrédulos está subentendida. A pedra de tropeço da cruz (que oferece salvação como um dom livre e não merecido), o amor e a pureza de Jesus (que envergonham o egoísmo humano), os mandamentos prioritários de amar a Deus e ao próximo (que não deixam lugar para o amor próprio) e o chamado a tomar a nossa cruz (que é por demais ameaçador) — essas coisas despertam oposição a nós porque despertam oposição ao Senhor e ao seu evangelho. É esse, pois, o pano de fundo de nosso estudo do capítulo 12 de Romanos. Há pessoas que nos "perseguem" (v. 14), que nos fazem "mal" (v. 17), que até podem ser descritas como nossos "inimigos" (v. 20).

Qual deve ser nossa reação para com nossos perseguidores e nossos inimigos? O que requerem de nós as misericórdias de Deus? Como deve a cruz, em que a misericórdia de Deus brilha no seu apogeu, influenciar a nossa conduta? De especial instrução, no se- guinte trecho de Romanos 12 e 13, são as quatro referências que Paulo faz ao bem e ao mal:

O amor seja sem hipocrisia. Detestai o mal, apegando-vos ao bem. . . Abençoai aos que vos perseguem, abençoai, e não amaldiçoeis. Alegrai-vos com os que se alegram, e chorai com os que choram. Tende o mesmo sentimento uns para com os outros; em lugar de serdes orgulhosos, condescendei com o que é humilde; não sejais sábios aos vossos próprios olhos. Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai- vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor. Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.

Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade

que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De

modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da pu- nição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço. Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra (Romanos 12:9, 14—13:7).

Essa passagem tem a aparência de uma meditação autoconsciente sobre o tema do bem e do mal. Eis as quatro alusões do apóstolo a eles:

Detestai o mal, apegando-vos ao bem (12:9).

Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens (12:17).

Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem (12:21).

A autoridade é ministro de Deus para teu bem. . . É ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal (13:4).

Esses versículos em particular definem qual deve ser nossa atitude para com o mal. Primeiro, devemos odiar o mal. "O amor seja sem hipocrisia. Detestai o mal, apegando- vos ao bem" (12:9). Essa justaposição do amor e do ódio parece imprópria. Normalmente vemos essas duas coisas como mutuamente exclusivas. O amor expulsa o ódio, e o ódio expulsa o amor. A verdade, porém, não é assim tão simples. Sempre que o amor é "sem hipocrisia", é moralmente discernidor. Jamais finge que o mal seja qualquer outra coisa, nem o justifica. O comprometimento com o mal é incompatível com o amor. O amor busca o bem maior dos outros e, portanto, odeia o mal que o estraga. Deus odeia o mal porque seu amor é santo; nós também devemos odiá-lo.

Segundo, não devemos tornar a ninguém mal por mal. "Não torneis a ninguém mal por mal. . . não vos vingueis a vós mesmos, amados" (12:17,19). O povo de Deus está totalmente proibido de fazer vingança e retaliação. Pois tornar o mal por mal é acrescentar um mal a outro. E se odiámos o mal, como podemos acrescentar a ele? Ouvimos aqui um eco claro do Sermão do Monte: "Não resistais ao perverso", Jesus dissera. Isto é, como esclarece o contexto, "não vos vingueis a vós mesmos". E, na cruz, Jesus exemplificou com perfeição o seu próprio ensino, pois "quando ultrajado, não

revidava com ultraje, quando maltratado não fazia ameaças" (1 Pedro 2:23). Pelo contrário, devemos "fazer o bem" (12:17) e "viver em paz com todos os homens" (12:18). Isto é, o bem, não mal, e a paz, não a violência, devem caracterizar a nossa vida.

Terceiro, devemos vencer o mal. Uma coisa é odiar o mal e outra recusar-se a revidá-lo; melhor ainda é vencê-lo ou derrotá-lo. "Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem" (12:21). Paulo indicou nos versículos anteriores o modo de se fazer isso, dando eco a mais palavras do Sermão do Monte. Jesus havia dito: "Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam; bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que

vos caluniam."2 Agora Paulo escreve: "Abençoai aos que vos perseguem" (12:14), e "se o

teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer" (12:20).

Devemos desejar o bem às pessoas, abençoando-as, e fazer o bem às pessoas, servindo-as. Na nova comunidade de Jesus as maldições devem ser substituídas pelas bênçãos, a malícia pela oração, e a vingança pelo serviço. De fato, a oração extirpa a malícia do coração; os lábios que abençoam não podem, ao mesmo tempo, amaldiçoar; a mão que está ocupada no serviço fica restringida de fazer vingança. "Amontoar brasas vivas sobre a cabeça" do inimigo parece um ato inamistoso, incompatível com o amor por ele. Mas é uma figura de linguagem que significa causar um profundo sentimento de vergonha — não a fim de ferir ou humilhar, mas a fim de levá-lo ao arrependimento, e assim, "vencer o mal com o bem".

A tragédia do pagar o mal com o mal é que, ao fazê-lo, acrescentamos mal ao mal e assim, aumentamos a quantidade de mal no mundo. Isso ocasiona o que Martinho Lutero chamou de "a reação em cadeia do mal", à medida que o ódio multiplica o ódio e a

violência multiplica a violência "numa espiral descendente de destruição".3 A glória de

amar e servir a nossos inimigos, entretanto, é que, ao fazê-lo, diminuímos a quantidade de mal no mundo. O exemplo supremo disso é a cruz. A disposição de Cristo de levar o escárnio dos homens e a ira de Deus trouxe salvação a milhões. A cruz é a única alquimia que transforma o mal em bem.

Quarto, o mal deve ser punido. Se considerássemos apenas as três primeiras atitudes para com o mal, seríamos culpados de grave seletividade bíblica e, portanto, de desequilíbrio. Pois Paulo prossegue a escrever acerca do castigo do mal pelo estado. Todos aqueles que lêem com cuidado esses capítulos percebem o contraste — até mesmo uma aparente contradição — que contêm. O apóstolo diz-nos que não devemos vingar-nos a nós mesmos e que a vingança pertence a Deus (12:19). Novamente, diz-se- nos que não devemos tornar a ninguém mal por mal e que Deus retribuirá (12:17, 19). Assim, primeiro se nos proíbem a vingança e a retribuição, e a seguir são atribuídas a Deus. Não é isso intolerável? Não. O motivo por que essas coisas nos são proibidas não é que o mal não mereça ser castigado (ele merece, e deve ser punido), mas que a prerrogativa de castigo é de Deus e não nossa.

Assim, como Deus castiga o mal? De que modo ele expressa a sua ira contra os malfeitores? A resposta que de imediato me vem à mente é "no juízo final", e isso é verdade. Os impenitentes estão acumulando ira contra si mesmos "para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus" (Romanos 2:5). Mas temos de esperar até esse dia? Não há outro modo pelo qual a ira de Deus se revela agora?

Há, de acordo com Paulo. O primeiro modo encontra-se na deterioração progressiva de uma sociedade ímpia, mediante o qual Deus "entrega" à depravação descontrolada de mente e conduta aqueles que deliberadamente sufocam o conhecimento que têm de Deus e da bondade (Romanos 1:18-32). Esse é um resultado da ira divina. O segundo é mediante os processos judiciais do estado, visto que a autoridade é "ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal" (Romanos 13:4). Nesse sentido, escreve o Dr. Cranfield, o estado é "uma manifestação parcial, antecipada e provisional da ira de

Deus contra o pecado".4

É importante observar que Paulo usa os mesmos termos no final do capítulo 12 de Romanos e no início do 13. As palavras "ira" (orgé) e "vingança/castigo" (ekdikesis e

ekdikos) ocorrem em ambas as passagens. Embora sejam proibidas ao povo de Deus em

geral, são designadas aos "ministros" de Deus em particular, a saber, os oficiais do estado. Muitos cristãos encontram grande dificuldade no que percebem aqui ser uma

"dualidade" ética.5 Gostaria de tentar esclarecer essa questão.

Primeiro, Paulo não está comparando duas entidades, a igreja e o estado, como na doutrina bem conhecida de Lutero acerca dos dois reinos, o reino da destra de Deus (a igreja), que possui uma responsabilidade espiritual exercida mediante o poder do evangelho, e o reino da sua esquerda (o estado) que possui uma responsabilidade política ou temporal exercida mediante o poder da espada. Jean Lasserre denomina esse ponto de "doutrina tradicional" (pois Calvino também a sustentava, embora a tenha expressado com termos diferentes), e o resume da seguinte maneira:

Deus encarregou a igreja com o dever de pregar o evangelho, e o estado com o dever de assegurar a ordem política; o cristão é tanto membro da igreja como cidadão do país; na primeira condição, ele deve obedecer a Deus, conformando-se à ética do evangelho. . . na última condição, ele deve obedecer a Deus, conformando-

se à ética política da qual o juiz é o estado. . .6

É verdade que Deus concede à igreja e ao estado responsabilidades diferentes, ainda que seja necessário acentuar que elas se sobrepõem, não são dirigidas por éticas diversas e ambas estão sob o senhorio de Cristo. Mas na realidade não é essa a questão dos capítulos 12 e 13 de Romanos.

Segundo, Paulo não está fazendo diferença entre duas esferas de atividade cristã, a privada e a pública, de modo que (para dizê-lo de uma maneira um pouco rude) devemos amar nossos inimigos em particular e odiá-los em público. O conceito de um

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 164-173)