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Autocompreensão e Autodoação

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 151-164)

A cruz revoluciona a nossa atitude para com nós mesmos e também para com Deus. De modo que a comunidade da cruz, além de ser uma comunidade de celebração, é também uma comunidade de autocompreensão. Embora isso possa parecer uma reversão ao individualismo, não deve ser assim, visto que a autocompreensão tem o propósito de autodoação. Como pode alguém dar o que não sabe que possui? Daí ser essencial a busca da identidade própria.

Quem somos, pois? Como devemos pensar de nós mesmos? Que atitude devemos adotar para com nós mesmos? Essas são questões que não podem receber respostas satisfatórias sem referência à cruz. Uma auto-estima baixa é comparativamente comum hoje. Muitos possuem sentimentos de inferioridade aleijantes. Às vezes a origem desses sentimentos encontra-se numa infância destituída, às vezes numa tragédia mais recente de ser indesejado ou desamado. As pressões de uma sociedade competitiva pioram as coisas. E outras influências modernas tornam-nas ainda piores. Onde quer que as pessoas sejam política ou economicamente oprimidas, sentem-se diminuídas. O preconceito racial e sexual, e o trauma de ser declarado "redundante", podem determinar a autoconfiança de qualquer pessoa. A tecnologia rebaixa as pessoas, como disse certa vez Arnold Toynbee, a "números de série marcados num cartão, com o objetivo de viajar pelas vísceras de um computador". Nesse ínterim, etólogos, como Desmond Morris, dizem-nos que não passamos de animais, e behavioristas, como B. F. Skinner, que não passamos de máquinas, programadas para produzir respostas automáticas a estímulos externos. Não é de admirar que muitos hoje sentem-se como se fossem nulidades sem valor.

Em reação exagerada a esse conjunto de influências, e caminhando na direção oposta encontra-se o movimento popular do "potencial humano". "Sejam vocês mesmos, expressem-se, cumpram-se a si mesmos!", grita o movimento, e enfatiza "o poder do pensamento positivo", juntamente com a necessidade do "pensamento da possibilidade" e "atitudes mentais positivas". Com o louvável desejo de construir a auto-estima, o movimento dá a impressão de que nosso potencial de desenvolvimento é praticamente ilimitado. Surgiu toda uma literatura em torno desse conceito, a qual foi descrita e docu- mentada pelo Dr. Paul Vitz em seu livro A Psicologia Como Religião: A Seita da Auto-

adoração. Escreve ele: "A psicologia transformou-se em religião, em particular uma

forma de humanismo secular baseado na adoração do eu". Ele começa analisando "os quatro teoristas do eu mais importantes", a saber, Erich Fromm, Carl Rogers, Abraham Maslow e Rollo May, todos os quais, com diferentes voltas e torneios, ensinam a bondade intrínseca da natureza humana, e a conseqüente necessidade de auto-respeito incondicional, autoconscientização e auto-atualização.

Essas teorias do eu têm sido popularizadas por meio da "análise transacional" ("Eu Estou Ok; Você Está Ok") e dos Seminários de Treinamento de Erhard, aos quais o Dr. Vitz corretamente chama de "autodeificação espantosamente literal". Ele também cita um anúncio na revista Psychology Today como exemplo do "jargão autista": "Eu amo a mim. Eu não sou convencido. Eu sou apenas um bom amigo de mim mesmo. E eu gosto de fazer tudo aquilo que me faz sentir bem.

Infelizmente, muitos cristãos parecem ter-se permitido serem sugados para esse movimento, sob a falsa impressão de que o mandamento de Moisés, endossado por

Jesus, de que amemos a nosso próximo como a nós mesmos é um mandamento tanto para que amemos a nós mesmos como ao nosso próximo. Mas na realidade não o é. Podemos deduzir três argumentos.

Primeiro, e gramaticalmente, Jesus não disse: "o primeiro mandamento é amar o Senhor teu Deus, o segundo é amar o teu próximo, e o terceiro é amar a ti mesmo". Ele falou apenas do primeiro grande mandamento e do segundo que era semelhante a esse. O acréscimo de "como a ti mesmo" provê um guia tosco, fácil e prático do amor ao próximo, porque "ninguém jamais odiou a sua própria carne" (Efésios 5:29). Nesse aspecto é como a Regra de Ouro: "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles" {Mateus 7:12). A maioria de nós ama a si mesmos. De modo que sabemos como gostaríamos de ser tratados, e isso nos dirá como tratar os outros. O amor próprio é um fato que deve ser reconhecido e uma regra que deve ser usada, não uma virtude a ser elogiada.

Segundo, e lingüisticamente, o verbo é agapao, e o amor agape significa auto-sacrifício no serviço de outros. Portanto, não pode ser autodirigido. O conceito de sacrificar-nos a nós mesmos a fim de servir a nós mesmos é tolice.

Terceiro, e teologicamente, o auto-amor é a compreensão bíblica do pecado. Pecador é o ser curvado em direção de si mesmo (no dizer de Lutero). Um dos sinais dos últimos dias é que os homens serão antes amigos "dos prazeres que amigos de Deus" (2 Timóteo 3:1-5). O seu amor será desviado de Deus e do próximo para si mesmos.

Como, pois, devemos ver a nós mesmos? Como podemos renunciar aos dois extremos do auto-ódio e do auto-amor, e não desprezar nem deleitar-nos em nós mesmos? Como podemos evitar uma auto-avaliação baixa demais ou alta demais, e em vez disso obedecer à ad-moestação de Paulo: "digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo, além do que convém, antes, pense com moderação" (Romanos 12:3)? A cruz de Cristo supre a resposta, pois ela nos convoca tanto para a autonegação como para a auto-afirmação. Mas, antes que estejamos na posição de examinar essas exortações complementares, ela nos diz que já somos novas criaturas porque morremos e ressur- gimos com Cristo.

É nesse aspecto que a morte de Jesus deve ser corretamente chamada de "representativa" como também "substitutiva". O "substituto" é aquele que age no lugar de outro de tal modo que torne desnecessária a ação desse outro. O "representante" é aquele que age em favor de outro, de tal modo que envolva esse outro em sua ação.

Assim, a pessoa que, em tempos passados servia ao exército (por dinheiro) em vez da que fora convocada era um "substituto". Também o é o jogador de futebol que joga no lugar de outro que sofreu um ferimento. O recruta convocado e o jogador ferido agora estão inativos; foram substituídos.

O agente, porém, que serve como "representante" de sua firma, recebe a autoridade para agir em nome da firma. Ele não fala em lugar da firma, mas por ela. A firma se responsabiliza pelo que ele diz e faz.

Da mesma forma, como nosso substituto, Cristo fez por nós o que não podíamos fazer por nós mesmos: levou o nosso pecado e o nosso juízo. Mas, como nosso representante ele fez o que nós, estando unidos a ele, também fizemos: nós morremos e ressurgimos com ele.

A mais extensa exposição de Paulo desse extraordinário mas maravilhoso tema

aparece no começo do capítulo 6 de Romanos.1 Veio como resultado da sugestão

maligna de que, tendo em vista que quando o pecado aumentou, a graça aumentou ainda mais, poderiamos muito bem continuar pecando para que a graça aumentasse ainda mais (5:20—6:1). Paulo, indignadamente repudia a idéia pela simples razão de que morremos para o pecado e, portanto, já não podemos viver nele (6:2). Quando foi que ocorreu essa morte? Em nosso batismo: "Ignorais que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai,

assim também andemos nós em novidade de vida" (6:3-4). De modo que o batismo dramatiza visivelmente a nossa participação na morte e ressurreição de Jesus. É por isso que se pode dizer que morremos para o pecado, para que não mais andássemos nele.

A peça que falta no quebra-cabeça é que a morte de Cristo (da qual partilhamos pela fé interiormente e pelo batismo externamente) foi uma morte para o pecado: "Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus" (v. 10). Há apenas um sentido no qual pode-se dizer que Jesus "morreu para o pecado", e esse é que ele levou a sua penalidade, visto que o "salário do pecado é a morte" (v. 23). Tendo pago o salário do pecado (ou levado a sua penalidade) ao morrer, ele ressurgiu para uma nova vida. Assim também nós, em união com ele. Nós também morremos para o pecado, não no sentido de que pagamos pessoalmente a sua penalidade (Cristo fez isso em nosso lugar, em vez de nós), mas no sentido de que partilhamos do benefício da sua morte. Visto que a penalidade do pecado já foi levada, e a sua dívida, paga, estamos livres do horrível fardo da culpa e condenação. E ressurgimos com Cristo para uma nova vida, tendo deixado para trás de nós solucionada a questão do pecado.

Como, pois, poderíamos continuar vivendo no pecado para o qual morremos? Não é impossível, pois ainda temos de tomar precauções a fim de não permitir que o pecado reine em nós (vv. 12-14). Mas é inconcebível, por ser incompatível com o fato de nossa morte e ressurreição com Jesus. Foram a morte e a ressurreição que nos separaram de nossa velha vida; como jamais poderíamos pensar em voltar a ela? É por isso que temos de considerar-nos "mortos para o pecado, mas vivos para Deus" (v. 11). Morrer para o pecado não significa fingir que morremos para o pecado e ressurgimos para Deus, quando sabemos muito bem que não o fizemos. Pelo contrário, sabemos que, em união com Cristo, partilhamos a sua morte e ressurreição, e assim nós mesmos morremos para o pecado e ressurgimos para Deus; devemos, portanto, lembrar-nos constantemente desse fato e levar uma vida coerente com ele. William Tyndale expressou-o com termos caracteristicamente vividos no final do seu prólogo ao livro sobre Romanos:

Agora, leitor, vá, e de acordo com a ordem do escrito de Paulo, faça o mesmo. . . Lembre-se de que Cristo fez essa expiação para que você não irasse a Deus novamente; nem ele morreu para os seus pecados para que você ainda vivesse neles; nem o purificou para que você retornasse, como o porco, ao seu antigo lamaçal; mas para que você pudesse ser uma nova criatura, e vivesse uma nova vida

segundo a vontade de Deus, e não da carne.2

Barth compreendeu a natureza radical desse ensino e aludiu a ele em sua seção sobre a justificação. "A sentença que foi executada como o julgamento divino na morte de Jesus é que. . . Eu sou o homem de pecado, e que este homem de pecado e, portanto, eu mesmo, estou pregado na cruz e crucificado (no poder do sacrifício e obediência de Jesus Cristo em meu lugar), que eu, portanto, estou destruído e substituído. . ." Este é o lado negativo da justificação. Mas "no mesmo julgamento em que Deus nos acusa e nos condena como pecadores, e nos entrega ã morte, ele nos perdoa e nos coloca numa nova vida na presença dele e com ele". Essas duas coisas vão juntas, "nossa morte real e nossa vida real além da morte", a destruição pela morte e a substituição pela ressurreição, o "Não" e o "Sim" de Deus à mesma pessoa.3

Se aceitarmos esse fato fundamental acerca de todos os que estão em Cristo, a saber, que morremos e ressurgimos com ele, de modo que nossa vida antiga de pecado, culpa e vergonha foi terminada e teve início uma vida inteiramente nova de santidade, perdão e liberdade, qual deve ser nossa atitude para com nosso novo eu? Visto que o nosso novo eu, embora redimido, ainda está caído, será necessária uma atitude dupla, a saber, de autonegação e de auto-afirmação, ambas iluminadas pela cruz.

Primeiro, o chamado à autonegação. O convite de Jesus é claro: "Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me" (Marcos 8:34). Jesus acaba de predizer os seus sofrimentos e morte pela primeira vez. "Era necessário" que lhe acontecesse, diz ele (v. 31). Mas agora ele expressa implicitamente um "deve" aos seus seguidores também. Ele deve ir à cruz; eles devem tomar a sua cruz e segui-lo. Deveras, devem fazê-lo "diariamente". E, como a contra-parte negativa, se alguém não toma a sua

cruz e não o segue, não é digno dele e não pode ser seu discípulo.4 Dessa maneira, pode-

se dizer, todo cristão é tanto um Simão de Cirene quanto um Barrabás. Como Barrabás, escapamos da cruz, pois Cristo morreu em nosso lugar. Como Simão de Cirene, carregamos a cruz, pois ele nos chama a tomá-la e segui-lo (Marcos 15:21).

Os romanos haviam feito da cruz uma vista comum em todas as suas províncias colonizadas, e a Palestina não era exceção. Todo rebelde condenado à crucificação era forçado a levar a sua cruz, ou pelo menos o patibulum (o braço da cruz), para o local da execução. Plutarco escreveu que ''todo criminoso condenado à morte carrega nas costas

a sua própria cruz"5. De modo que João escreveu acerca de Jesus "carregando a sua cruz,

saiu para o lugar chamado Calvário" (João 19:17). Tomar a cruz, portanto, e seguir a Jesus, é "colocar-se na posição de um condenado a caminho da execução".6 Pois se

estamos seguindo a Jesus com uma cruz nos ombros, há somente um lugar para o qual nos dirigirmos: o local da crucificação. Como disse Bonhoeffer: "Quando Cristo chama

uma pessoa, ele a chama para vir e morrer".7 Nossa "cruz", portanto, não é um marido

irritadiço ou uma mulher rancorosa. É, antes, o símbolo da morte do eu.

Embora Jesus possa ter tido a possibilidade de martírio em mente, a natureza universal de seu chamado ("se alguém. . .") sugere uma aplicação mais ampla. Certamente é a autonegação que, mediante essa imagem vivida, Jesus está descrevendo. Negar a nós mesmos é comportar-nos para com nós mesmos como Pedro o fez para com Jesus quando o negou três vezes. O verbo é o mesmo (aparneomai). Ele o deserdou, repudiou, voltou-lhe as costas, A autonegação não é negar a nós mesmos certos luxos como bombons, bolos, cigarro e coquetéis (embora possa incluir essas coisas); é, em verdade, negar ou deserdar os nossos próprios seres, renunciando a nosso suposto direito de seguir o nosso próprio caminho. "Negar-se a si mesmo é. . . voltar-se da idolatria da centralidade do eu".8

Paulo deve estar-se referindo à mesma coisa quando escreveu que os que pertencem a Cristo "crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências" (Gálatas 5:24). Quadro algum poderia ser mais gráfico do que esse: pegar um martelo e pregos a fim de pregar nossa natureza caída, e escorregadia na cruz, matando-a assim. A palavra tradicional para esse ato é "mortificação"; é a determinação contínua mediante o poder do Espírito Santo de mortificar "os feitos da carne", para que através dessa morte

possamos viver em comunhão com Deus.9

De fato, Paulo escreve em suas cartas acerca de três diferentes tipos de morte e ressurreição, as quais são parte integrante de nossa experiência cristã. Levanta-se muita confusão quando falhamos em diferençá-las. A primeira (que já examinamos) é a morte para o pecado e a subseqüente vida para Deus, a qual acontece a todos os cristãos mediante a virtude de nossa união com Cristo em sua morte e ressurreição. Através dela partilhamos dos benefícios tanto da morte de Cristo (seu perdão) quanto da sua ressurreição (seu poder). Esse tipo de morte é inerente à nossa conversão/batismo.

A segunda é a morte para o eu, a qual recebe vários nomes, como tomar a cruz, ou negar, crucificar ou mortificar a nós mesmos. Como resultado, vivemos uma vida de comunhão com Deus. Essa morte não é algo que aconteceu a nós, e que agora se nos ordena que "consideremos" ou que recapitulemos dele, mas algo que nós mesmos deliberadamente devemos fazer, embora mediante o poder do Espírito, mortifiçando nossa antiga natureza. Deveras, todos os cristãos o fizeram, no sentido de que é um aspecto essencial de nosso arrependimento original e contínuo, e não podemos ser

discípulos de Cristo sem ela. Mas temos de manter essa atitude, isto é, tomar a nossa cruz diariamente.

O terceiro tipo de morte e ressurreição é o que mencionei no capítulo 9. E o carregar em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida dele seja revelada em nosso corpo (2 Coríntios 4:9-10). Claramente, a arena dessa morte são os nossos corpos. Refere-se à enfermidade, à perseguição e à mortalidade deles. É nesse aspecto que Paulo podia dizer tanto "morro diariamente" (1 Coríntios 15:30-31) quanto "enfrentamos a morte todo o dia" (Romanos 8:36). Pois é uma fragilidade física contínua. Mas então a "ressurreição", a vitalidade interior ou a renovação da vida de Jesus dentro de nós, também é contínua (2 Coríntios 4:16).

Para resumir, a primeira morte é legal; é uma morte ao pecado mediante a união com Cristo em sua morte ao pecado (levando a sua penalidade), e a ressurreição resultante com ele leva à nova vida de liberdade a qual os pecadores justificados desfrutam. A segunda morte é moral; é uma morte para o ego à medida que mortificamos a antiga natureza e os seus ímpios desejos, e a ressurreição que se segue leva a uma nova vida de justiça em comunhão com Deus. A terceira morte é física; é uma morte para a segurança, um "ser entregue à morte por amor de Jesus", e a ressurreição correspondente é o poder de Cristo o qual ele aperfeiçoa em nossa fraqueza. A morte legal foi uma "morte para o pecado de uma vez por todas", mas as mortes moral e física são experiências diárias — até mesmo contínuas — para o discípulo cristão.

Fico a imaginar a reação dos leitores até aqui, especialmente quanto à ênfase que dou ao morrer para o ego, ou, antes, mortificá-lo, crucificando-o! Espero que você se tenha sentido incomodado. Expressei uma atitude para com o ego tão negativa que pode

parecer que me pus ao lado dos burocratas e tecnocratas, dos etólogos e dos

behavioristas, em diminuir o valor dos seres humanos. Não é que o que escrevi seja errado (pois foi Jesus quem ordenou que tomássemos a nossa cruz e o seguíssemos até à morte), mas esse é apenas um lado da verdade. Implica que nosso ser é totalmente mau, e que, por causa dessa maldade, deve ser completamente repudiado, de fato, "cruci- ficado".

Afirmação própria

Mas não devemos deixar de lado outra posição bíblica. Ao lado do chamado explícito de Jesus à autonegação encontra-se o seu chamado implícito à auto-afirmação (o que não é, de modo nenhum, a mesma coisa que amor próprio). Ninguém que lê os Evangelhos como um todo pode ter a impressão de que Jesus possui uma atitude negativa para com os seres humanos, nem que a tivesse estimulado nos outros. Acontece justamente o oposto.

Considere, primeiro, o ensino de Jesus acerca das pessoas. É verdade que ele chamou a atenção para o mal e para as coisas feias que procedem do coração humano (Marcos 7:21-23). Entretanto, ele também falou do "valor" dos seres humanos aos olhos de Deus.

São muito mais valiosos do que pássaros ou animais, disse ele.10 Qual era o fundamento

desse juízo de valores? Deve ter sido a doutrina da criação, a qual Jesus tirou do Antigo Testamento, a saber, que os seres humanos são a coroa da atividade criadora de Deus, e que ele criou o homem à sua própria imagem. É a imagem divina em nós que nos dá o nosso valor distintivo. Em seu excelente livro Um Cristão Olha Para Si Mesmo o Dr. Anthony Hoekema cita um jovem negro norte-americano que, rebelando-se contra os sentimentos de inferioridade nele inculcados pelos brancos, pregou uma faixa na parede do seu quarto, a qual dizia: "Eu sou eu e sou bom, porque Deus não produz lixo".

Segundo, temos de considerar a atitude de Jesus para com as pessoas. Ele não desprezou a ninguém e a ninguém rejeitou. Pelo contrário, fez tudo o que podia para honrar àqueles a quem o mundo desonrava, e aceitar àqueles a quem o mundo abandonava. Ele foi cortês com as mulheres em público. Convidou os pequenos que fos- sem a ele. Ele proferiu palavras de esperança aos samaritanos e aos gentios. Ele permitiu

que leprosos se aproximassem e que uma meretriz o ungisse e lhe beijasse os pés. Ele fez amizade com os rejeitados da sociedade, e ministrou aos pobres e aos famintos. Em todo esse diversificado ministério brilha o respeito compassivo que ele tinha para com os seres humanos. Ele reconheceu o valor dos homens e os amou, e, amando-os, aumentou- lhes ainda mais o valor.

Terceiro, e em particular, devemos lembrar-nos da missão e morte de Jesus pelos seres humanos. Ele tinha vindo para servir, não para ser servido, dissera ele, e para dar a sua vida em resgate por muitos. Nada indica mais claramente o grande valor que Jesus atribuía às pessoas do que a sua determinação de sofrer e morrer por elas. Ele era o Bom Pastor que foi ao deserto, enfrentando a dureza e arriscando-se ao perigo, a fim de procurar e salvar uma única ovelha perdida. De fato, ele deu a sua vida pelas ovelhas. Somente quando olhamos para a cruz é que vemos o verdadeiro valor dos seres hu-

No documento John Stott - A Cruz de Cristo (páginas 151-164)