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A situação atual das crianças: um momento de ambivalência

5. Crianças: atores sociais e co-produtoras de cultura

5.3. A situação atual das crianças: um momento de ambivalência

As mudanças em torno dos conceitos de criança e infância que têm permeado os paradigmas científicos não surgiram em meio a um vazio social. Ao contrário, relacionam-se ao debate que se instaurou em torno dos direitos sociais da criança, aos questionamentos em torno do “adultocentrismo” e às mudanças nas relações entre crianças e adultos.

Segundo Salles (2005), atualmente vê-se uma tendência à promoção de relações menos díspares entre adultos e crianças. Ao contrário da diferença bem marcada estabelecida anteriormente entre os membros das duas faixas etárias, percebe-se hoje uma nova forma de reconhecimento social da infância que tende a aproximá-la da idade adulta, especialmente no que se refere a direitos sociais e de consumo. Segundo a autora, alguns estudos realizados a partir da década de 80 têm apontado transformações nas relações entre pais e filhos, as quais tendem a ser mais “abertas”. A autoridade exclusiva e inquestionável dos pais abre espaço ao diálogo e à igualdade, que juntamente com a afeição e a compreensão passam a fundamentar essas relações.

No que diz respeito ao direito de consumo, Salles (2005) cita Castro (1998), a qual aponta esse direito como um aspecto que também tende a promover a igualdade entre crianças, jovens e adultos. Conforme a autora, estando a sociedade impregnada pela cultura de consumo, a criança – consumidor potencial e real descoberto como valioso nicho de mercado – passa a ter direito a consumir, posto que a felicidade na sociedade consumista liga-se diretamente aos bens que se possui ou pode possuir. E, ainda que o consumo seja restrito, tendo em vista que depende da condição social e econômica, o referencial de felicidade como condições de consumo é o mesmo em toda sociedade, sendo diferente o que se consome nos diferentes grupos sociais. Assim, mesmo havendo diferenças quanto a preferências e objetos de consumo, crianças e adultos se

encontram no espaço consumista que a sociedade lhes oferece e do qual os estimula a fazer parte. Conforme exposto na seção anterior, o “adultocentrismo” como ponto de referência em estudos envolvendo a criança e a infância tem sido questionado dentro de vários ramos das Ciências Sociais. Na sociedade, esse questionamento também tem tido lugar à medida que surge uma tendência a privilegiar o que é próprio da juventude em detrimento de outras etapas da vida, estabelecendo-se assim novos modelos sociais. Conforme assinala Debert (1999), na sociedade contemporânea ocorre um “embaçamento etário”, no qual o que antes parecia bem definido para cada etapa etária, tais como comportamentos, vestuário e expectativas, está se diluindo. Adultos e velhos têm procurado receitas de “como envelhecer sem parecer velho”, privilegiando produtos, conselhos e comportamentos que lhes permitam parecer o mais jovens possível. Crianças também desejam “crescer” mais rapidamente, adotando estilos, gírias, roupas, acessórios e comportamentos que lhes caracterizem como jovens, tendendo mesmo a se definir como pré- adolescentes em torno dos dez anos de idade. O culto à beleza, à aparência e à necessidade de manter-se jovem dissemina-se pela sociedade (SALLES, 2005). Vive-se um momento em que a juventude assume um lugar de destaque em detrimento das outras etapas da vida, questionando assim a hegemonia do adulto como modelo a ser atingido.

A constituição das crianças como sujeitos de direitos sociais é outro ponto de partida para a revisão dos conceitos de criança e infância no contexto social e científico. Conforme expõe Sirota (2001, p. 19), “esse momento simboliza o acesso da criança, ao final de uma longa história de emancipação, ao estatuto de sujeito e à dignidade da pessoa”.

Em 1959, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprova por unanimidade a Declaração dos Direitos da Criança. Vinte anos depois, essa organização declara 1979 o Ano Internacional da Criança e nesse contexto, concomitante a várias manifestações em torno das condições de vida e dos direitos das crianças, emergem as iniciativas que culminariam, dez anos mais tarde, na Convenção sobre os Direitos das Crianças – uma espécie de carta magna, que diferente da Declaração, estabelece-se como lei para os estados signatários. Atualmente, a Convenção é ratificada por quase todos os países do mundo, excetuando-se Somália e Estados Unidos (CASTELFRANCHI, 2005; PINTO, 1997).

serviços estatais às normas constantes da mesma. No Brasil, isso se deu através do Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionado em 1990. O Estatuto estabelece direitos que se enquadram no que Sarmento e Pinto (1997, p. 19) chamaram de “tradicional distinção entre direitos” de proteção, provisão e participação, e faz recair sobre a sociedade, a família, a comunidade e o poder público o dever de assegurá-los. Destaca-se o artigo 4° do Título I que dispõe

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990)

Infelizmente, sabe-se que nem todas crianças brasileiras, ou mesmo do mundo, são assistidas integralmente pelas regulamentações desse Estatuto e da Convenção sobre os Direitos das Crianças, tendo em vista as condições de vida a que estão submetidas. Segundo Sarmento e Pinto (1997), a publicação de normas jurídicas não é suficiente para alterar as condições de vida desfavoráveis a que muitas crianças estão sujeitas, pois que as desigualdades e a discriminação se enraízam na estrutura social, sendo a inobservância dos direitos da infância baseada em condições econômicas, sociais e culturais. Desse modo, percebe-se que na verdade não há uma realidade infantil, mas realidades infantis coexistentes. Pode-se aqui destacar ao menos duas: uma que comporta crianças tuteladas e protegidas, que têm acesso ao consumo e se tornam mais próximas dos adultos no que se refere a ocupar uma posição de ser de direitos, contar com maior liberdade e um certo grau de autonomia, e outra que não acessa esses benefícios. No entanto, numa perspectiva ampla – ainda que sem ignorar as crianças não assistidas – a Convenção sobre os Direitos das Crianças colocou a criança numa posição de destaque como sujeito de direitos.

Os três pontos acima apresentados, seja a promoção de relações mais igualitárias entre crianças e adultos, o questionamento ao “adultocentrismo” e a assunção da criança a um posto de ser de direitos por meio da criação e implantação de leis, levam a criança a uma posição diferenciada, colocando-a como possuidora de características que até então não lhe eram atribuídas, tais como: autonomia, capacidade de expressão, de elaboração e de escolha. Contudo,

para Salles (2005), no que se refere a certas práticas sociais e políticas, as crianças ainda são de certa forma excluídas. Mesmo existindo maior liberdade e autonomia para elas, o poder do adulto permanece, e é ele quem dita o espaço que a criança pode ocupar.

Sarmento e Pinto (1997) destacam a condição paradoxal que envolve a infância na contemporaneidade em diferentes aspectos. Os autores ressaltam que o principal fator para que se aumentasse a atenção dada às crianças na sociedade contemporânea é a redução de seu número relativo na população. Isto é, passou-se a olhar para as crianças porque existem menos crianças no mundo. A visibilidade que a criança adquire pode trazer efeitos contraditórios, posto que pode gerar denúncias sem oferecer soluções que exterminem o problema de fato. Nas escolas, esperam- se das crianças que ajam como tal, todavia, não raramente, criticam-se seus comportamentos infantis. No que diz respeito aos direitos das crianças, ainda que esses tenham sido proclamados, suas condições de vida não melhoraram substancialmente e a infância constitui-se no grupo etário mais vitimado pela pobreza e por situações de opressão e prejuízo às condições de vida.

Referindo-se ao estatuto social da infância, Pinto (1997) argumenta a existência de duas posições diferentes. Uma delas

considera a criança como um ser carente, não autónomo19, em devir, que se torna adulto mediante a interacção com os adultos. Outra que parte da assunção de que as crianças são atores sociais, dotados de competências, capazes de um certo limiar de iniciativa perante as circunstâncias em que vivem. Na primeira acepção, a infância é vista predominantemente como objecto dos projectos e iniciativas dos adultos e merecedora de protecção e educação. Na segunda, ela é entendida como possuidora de um certo grau de autonomia. (PINTO, 1997, p. 64)

Como assinala Salles (2005), nota-se a existência de certa ambivalência no que se refere à situação da criança. Ao mesmo tempo em que lhe é oferecida certa igualdade em relação ao adulto, a criança ainda é considerada um ser digno de tutela e proteção que vive um momento de preparação para tornar-se adulto, acentuando-se assim as diferenças etárias e a “superioridade” deste. A autora considera que essa ambivalência possa ser reflexo do processo de transição vivido

na atualidade, havendo uma sobreposição das duas tendências.

A criança tem trilhado um caminho para ocupar uma posição, na comunidade científica e na sociedade como um todo, que seja mais pertinente à sua real condição de ser humano completo. As aparências indicam que os adultos estão vendo e ouvindo a criança com outro olhos e outros ouvidos, que a percebem, ouvem e reconhecem como ela realmente é – ator social, capaz de pensar, opinar, participar. Nesse movimento, os adultos estão se capacitando para ver além do véu que eles mesmos haviam lançado sobre as crianças durante os longos anos de sua hegemonia, como ser pronto e ideal, responsável pela condução dos pequenos. Todavia, não é tarefa fácil deixar para trás os vieses que essa hegemonia adulta acarretou e por isso o momento atual é de transição, em que alguns já se permitem ver a criança como participante da construção social, enquanto outros ainda a consideram sob as antigas marcas e conceitos. O resultado final desse processo não está totalmente claro, mas vislumbra-se uma nova posição para as crianças, em que serão mais ouvidas, respeitadas como seres de direitos, atuantes e co-autoras do destino da sociedade.

É como ator social e produtora de cultura, capaz de construir e expressar suas opiniões e representações sociais, que a criança faz parte desse trabalho.