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3. Representações sociais

3.4. Representação social da criança

Ao nascer, a criança insere-se em um mundo repleto de significados, símbolos e conceitos, os quais lhe são apresentados pelos adultos. Como pontua Duveen (2003), o mundo que espera pela criança já se encontra estruturado pelas representações sociais de sua

comunidade, assim seu lugar está garantido em um conjunto sistemático de relações e práticas sociais já estabelecidas.

Duveen e Lloyd (2005) ressaltam que a criança nasce em uma “sociedade pensante” – conforme as proposições de Moscovici – e as representações sociais compõem o “ambiente pensante” com o qual terá que lidar. Desenvolver competência para participar como ator nessa sociedade implica compartilhar às representações sociais da mesma. Assim, a criança se envolve no trabalho de estabelecer contato com as representações sociais que lhe são apresentadas, a fim de fazer também parte do grupo social.

Sobre a representação social da criança, diz Jovchelovitch (2004) que o objeto-mundo só se torna conhecido aos indivíduos após estes o haverem representado, num trabalho de co- construção duro e longo que envolve a criança, seus cuidadores e o objeto-mundo. Por objeto- mundo, a autora designa tudo aquilo que existe para os seres humanos, seja o próprio Eu, o Outro, objetos físicos, artefatos culturais e saberes acumulados. Desse modo, é por meio do trabalho de representar, que o mundo – aqui significando tudo que diz respeito ao indivíduo, inclusive ele mesmo – passa a ser conhecido e significante para o sujeito que representa.

Além do trabalho de conhecer e significar o mundo, as representações sociais contribuem para a construção de identidade dos sujeitos, um processo que se inicia na infância. Segundo Duveen (2003), há um entrelaçamento entre a internalização das representações sociais e os processos de construção de identidades, pois as representações constituem o mundo como ele é percebido pelos sujeitos e permitem a sustentação de identidades que posicionam o sujeito nesse mundo. Tendo uma idéia em relação ao mundo que o cerca, o sujeito pode localizar-se nele e ter parâmetros sobre como atuar – seja em relação ao mundo que o cerca, seja em relação aos objetos e sujeitos que dele também participam.

Assim, as representações sociais estão presentes na vida dos indivíduos desde a mais tenra infância, sendo a criança inserida em um mundo estruturado por estas. Conforme ressalta Moscovici (2005a, p. 108), elas “influenciam o desenvolvimento do indivíduo desde a primeira infância, desde o dia em que a mãe, com todas as suas imagens e conceitos, começa a ficar preocupada com o seu bebê”. Tal influência está estampada no modo como a criança percebe o mundo que a cerca e se posiciona no mesmo em consonância com os parâmetros da sociedade em que está inserida.

Quanto ao processo de aquisição das representações sociais pelas crianças, as formulações propostas por Jean Piaget e Levy Vygotsky sobre o desenvolvimento do pensamento infantil, oferecem contribuições importantes, ainda que ambas as teorias apresentem diferenças relevantes em relação à Teoria das Representações Sociais.

Para Piaget (1994) há duas formas da criança adquirir conhecimento: através da transmissão social e da elaboração cognitiva. A primeira forma se dá em relações ditas heterônomas, ou seja, em que existe uma assimetria de poder. Aqui, a criança adquire conhecimento proveniente de uma figura dominante e com autoridade sobre ela, usualmente um adulto. A segunda forma se dá em um processo de reconstrução, em que as informações recebidas do ambiente são elaboradas por meio de debate e discussão em um grupo no qual predominam as relações autônomas, ou seja, em que os companheiros com os quais discute, usualmente outras crianças, encontram-se em igualdade de condições. Segundo Duveen (2003), os jogos de “faz-de-conta” entre crianças pequenas são um exemplo desse processo de reconstrução do conhecimento social, pois “o mundo social é literalmente reconstruído na medida em que a criança o entendeu” (DUVEEN, 2003, p. 273).

Molnár (2005), ao descrever a organização de um dos grupos de crianças protagonistas de seu livro, Os meninos da rua Paulo, exemplifica essa reconstrução do conhecimento social pela criança em seu “faz-de-conta”.

Podia-se imaginar lugar mais agradável para folguedos? Nós, meninos da cidade, não queríamos saber de outro. O grund da rua Paulo era chão e representava para nós as savanas americanas. Quanto ao terreno de trás, o da serraria, era para nós todo o resto: a cidade, a floresta, a serra, quer dizer, coisa diferente segundo a necessidade de cada dia. [...] Havia quatro ou cinco desses fortes em diferentes pontos do terreno, e cada um deles tinha o seu capitão, assim como o seu tenente e o seu alferes. Era essa a organização do exército. De soldados rasos, infelizmente, só havia um. Em todo o grund, os capitães e os tenentes davam ordens, mandavam fazer exercícios e impunham castigos a um único soldado. (MOLNÁR, 2005, p. 38)

As proposições de Vygotsky, se comparadas às de Piaget, referem-se apenas à primeira forma de aquisição de conhecimentos apontadas por este. Para Vygotsky (1993), o desenvolvimento do pensamento na criança vai do social para o individual. A criança internaliza de maneira progressiva, através do contato com adultos e crianças com mais conhecimentos, as práticas coletivas de sua comunidade. Assim, tem-se que os processos psicológicos constituem-

se socialmente, no contato com os membros do grupo a que a criança pertence. Por exemplo em relação à linguagem, o autor defende que é na comunicação verbal com os adultos que a criança adquire bases para desenvolver seus conceitos, pois é o adulto que mostra à criança o significado das palavras.

Ainda que os modelos propostos por esses autores – Piaget e Vygotsky – possibilitem amplo entendimento sobre a aquisição do conhecimento pela criança, nenhum dos dois oferece bases para uma análise da criança como um ator social em desenvolvimento, pois cada um deles direciona seu olhar para um sujeito específico, ainda que não negue a existência de um outro. O enfoque piagetiano, centrado no “sujeito epistêmico” acaba por atribuir apenas um reconhecimento parcial ao significado das representações sociais, estruturadoras do mundo social em que a criança se insere. Vygotsky, por sua vez, ainda que considerando a criança como “sujeito cultural”, atribui à cultura a idéia de um conjunto de signos com função cognitiva e exclui o sentido em que os signos expressam os valores de um grupo social (DUVEEN, 2003). Desse modo, ainda que contribuam para que se entenda a aquisição do conhecimento pela criança como um processo que sofre influência do meio social e da cultura, o que vai ao encontro das proposições da Teoria das Representações Sociais, os dois modelos se afastam da mesma por não reconhecerem a posição da criança como ator social.

Há vários estudos envolvendo representações sociais de crianças e adolescentes, por exemplo, Guareschi (1993); Rutland (1998); Menin (2000, 2003); Oliveira et al. (2001); Roazzi, Federicci e Wilson (2001); Souza Filho e Durandegui (2003); Martins, Trindade e Almeida (2003); Carbone e Menin (2004); Oliveira et al. (2005) e Siman (2005). Todavia, vale ressaltar que nesses estudos não foram apresentadas teorizações específicas sobre a representação social dos atores sociais dessas faixas etárias.

Segundo Rutland (1998), é usualmente questionado se ao estudar as representações sociais da criança, não se estaria simplesmente renomeando conceitos já estudados até então, tais como conhecimento ou estruturas cognitivas. O autor defende que há diferenças importantes a serem consideradas e destaca a ênfase dada, na Teoria das Representações Sociais, ao aspecto social do conhecimento, ou seja, à influência do contexto social. Além disso, ressalta a existência de uma preocupação maior com o conteúdo do conhecimento e das crenças infantis que com as operações cognitivas universais e ainda, a preocupação com a linguagem, tendo em vista que este é o modo como as crianças representam o conteúdo de seu conhecimento.

De modo geral, o que não se pode perder de vista em estudos sobre a representação social da criança, é que esta é um ator social em interação com os demais e a sociedade de modo geral. Como tal, é também um “sábio amador”, que apreende as informações e as elabora nas interações sociais que vivencia, contribuindo para a construção da sociedade com suas representações sociais. Dessa forma, considera-se adequado o emprego da Teoria das Representações Sociais como base para o desenvolvimento do presente trabalho.