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"Nenhum homem que vive muito tempo escapa à velhice; é um fenômeno inelutável e irreversível.”

Simone Beauvoir

O desejo de vencer a morte acompanha a humanidade há tempos. Possivelmente por representar a finitude, a idéia da morte é indesejada e afastada pelos homens de modos variados. Segundo Elias (2001), a busca pelo afastamento da morte é uma tendência muito antiga na história da humanidade, todavia, no decorrer de seu desenvolvimento, os modos usados para tal sofreram alterações. Antes, a idéia de continuidade da vida em outro lugar – muito difundida em diversas correntes religiosas– era mais forte e intensa entre as pessoas. Atualmente, os meios mais expressivos para esse afastamento da morte são a busca incessante e quase frenética pelo prolongamento da vida, utilizando os avanços científicos como meios, e o afastamento de velhos e moribundos por meio da institucionalização dos cuidados para com eles.

Vencer a morte, ou seja tornar o ser humano imortal, não é uma realidade e não parece ser um alvo fácil ou próximo de ser atingido, ao contrário da longevidade, que já é fato concreto. Como exemplo do aumento da longevidade, pode-se recorrer a dados demográficos brasileiros, que demonstram, conforme levantamentos feitos pelo IBGE, que em 1910 a expectativa de vida ao nascer, para o brasileiro, era de 33,4 anos, em 2000 alcançava 64,8 anos e em 2004, 71,7 anos (OLIVEIRA; ALBUQUERQUE, 2005). Assim, mesmo que não se viva eternamente, passou-se a viver por mais tempo.

O aumento da longevidade e do número de velhos contribuiu para que a velhice se tornasse mais presente, posto que mais visível, na sociedade contemporânea. A divulgação de dados demográficos indicando esse crescimento da população de velhos gerou um aumento do interesse científico, mercadológico e político em torno da velhice, que passou a ter mais espaço e visibilidade na mídia, no meio acadêmico – contando inclusive com o surgimento da Gerontologia, a ciência do envelhecimento – e mesmo no âmbito político. O chamado "fenômeno do

envelhecimento populacional" passou a ser utilizado como justificativa para pesquisas e preocupações em torno da velhice, do processo de envelhecimento e dos velhos. Todavia, a causa real desse interesse não está na simples divulgação desses números, mas na presença dos velhos na sociedade e conseqüentemente nas alterações sociais que o fato acarreta, seja nas configurações familiares, nas demandas por ampliações e mudanças nas políticas de saúde pública e previdência social, seja na criação de uma nova fatia de mercado consumidor.

Debert (1999) chama atenção para a importância de buscar compreender outras possíveis razões responsáveis por mudanças nas imagens e nas formas de gestão do envelhecimento, dirigindo os questionamentos e explicações para além da questão demográfica. Busca-se nessa parte do trabalho, compreender as mudanças nas formas pelas quais a velhice, o velho e o envelhecimento são representados pelos grupos sociais. Ganha relevância então, o ato de pensar sobre a(s) velhice(s) que têm sido alvo de estudo e pesquisa e para além disso, que representações de velho e velhice estão sendo construídas, reconstruídas e disseminadas a partir das imagens e informações vindas de estudos científicos e da mídia.

Entender como a velhice é percebida, definida e divulgada pela sociedade é um meio de compreender as ações, comportamentos e sentimentos para com a mesma por parte da sociedade ou por parte dos próprios velhos. Isso se dá porque a própria definição ou enquadramento de uma pessoa como membro de um grupo classificado como um “grupo de velhos” é um ato social, na medida em que esta pessoa se reconhece e é reconhecida como velha pela sociedade. Assim, estão em pauta crenças, explicações, definições, enfim o conhecimento que os grupos sociais elaboram e utilizam para compreender e lidar com a velhice como objeto social, portanto sua representação social.

Nesse sentido, faz-se necessário refletir sobre o fato de que a velhice, como classe etária, não é simplesmente determinada pela idade cronológica, ainda que muitas vezes por razões práticas é a esta idade que se recorra para definir o velho, nesse caso, o indivíduo com idade superior a 60 anos em países em desenvolvimento e 65 anos em países desenvolvidos – apesar de que, para algumas questões legais, o limite é 65 anos também no Brasil.

Outros parâmetros considerados para enquadrar um indivíduo na velhice podem ser além da idade cronológica, a idade funcional, a psicológica, a social e a biológica. Por idade funcional,

entende-se o grau de conservação do nível de capacidade adaptativa comparada à idade cronológica. Quanto à idade psicológica, diz-se que é a relação entre a idade cronológica do indivíduo e as capacidades que prenunciam seu potencial de funcionamento futuro, tais como aprendizagem, percepção e memória. A idade social refere-se à avaliação da capacidade de adequação de um indivíduo ao desempenho de papéis e comportamentos esperados para pessoas de sua idade, num dado momento da história de cada sociedade. A idade biológica remete a aspectos biofisiológicos ou corporais, contudo mensurá-la não é tarefa fácil tendo em vista a inexistência de marcadores biofisiológicos seguros e eficazes do processo de envelhecimento. Há ainda que se levar em conta o senso subjetivo de idade, ou seja a avaliação que cada indivíduo faz de indicadores biológicos, sociais e psicológicos de seu envelhecimento em comparação a outros indivíduos de mesma idade (PAPALÉO NETTO, 2002).

Portanto, quando o assunto é definir ou pensar sobre o que é ser velho, vários parâmetros podem ser utilizados. Ainda que a idade cronológica seja relevante e habitualmente a mais utilizada, por de certo modo facilitar a padronização e a aplicação de normas sociais, tornar-se velho e ser considerado como tal, é um processo que envolve, além de aspectos biológicos, psicológicos e sociais, a maneira como as pessoas se vêem e são vistas, ou seja, se elas se identificam ou são identificadas com as características atribuídas ao que se denomina velho por seu grupo social. Os valores sociais, os conceitos e os padrões determinados pela sociedade para definir a velhice são fatores fundamentais para essa classificação, ou poderia ser dito, para a definição da identidade social de velho. Desse modo, a velhice não deve ser encarada simplesmente como um resultado natural do desenvolvimento humano, mas também como uma produção do grupo social que a define como tal.

4.1. VELHICE: UMA CATEGORIA SOCIALMENTE PRODUZIDA

O estabelecimento dos grupos etários simplesmente como categorias naturais da vida tem algumas de suas raízes no modo como a ciência os encarou durante um considerável período de tempo. Sob influências de moldes científicos dominantes, as ciências ocupadas em explicar o curso da vida humana apresentaram um processo linear de desenvolvimento a ser seguido pelos seres humanos fortemente atrelado a aspectos biológicos, conferindo-lhe um caráter natural e

universal. Vários teóricos da Psicologia do Desenvolvimento, por exemplo, defenderam teorias baseadas em fases evolutivas. A idéia central nessas teorias era a de que o indivíduo, numa determinada faixa etária, deveria necessariamente passar pela fase evolutiva correspondente, devendo superá-la para alcançar a fase seguinte. E assim, cada fase evolutiva corresponderia a um grupo etário específico.

A idéia de que as idades estão unicamente ligadas ao desenvolvimento biológico perde força com a contribuição de estudos etnográficos empreendidos por antropólogos. Tais estudos fortaleceram a idéia de que cada sociedade utiliza-se de conceitos próprios para construir e elaborar seu sistema etário. De acordo com Debert (1998), a pesquisa antropológica demonstra que por meio de rituais, o processo biológico é elaborado simbolicamente da maneira própria de cada sociedade, demarcando os limites entre as idades pelos quais cada indivíduo passa. Através de etnografias e estudos relacionados, percebe-se que, apesar de haver grades de idades em todas as sociedades, cada uma tem sua maneira de elaborar seu sistema etário, atribuindo valores, comportamentos e costumes para cada idade conforme o momento histórico e cultural.

Featherstone (1998) também considera que o curso da vida é construído social e historicamente de diversos modos, conforme as sociedades. Mais que isso, aponta para a colonização do curso da vida, “um processo por meio do qual a duradoura fase da vida [...] é crescentemente diferenciada e demarcada em fases com conjuntos específicos de problemas e soluções” (FEATHERSTONE, 1998, p. 52). Em seu ponto de vista, há especialistas – como os psicólogos do desenvolvimento – que na tentativa de descobrir estágios universais do desenvolvimento humano, acabam por produzir ou inventar novas fases e problemas. Dentre os estágios criados na história recente cita a adolescência, as menopausas masculina e feminina e a crise de meia-idade.

Na mesma direção, Park (2005a) ressalta que a utilização da idade cronológica, medida em anos, é uma forma utilizada para orientar as ações do Estado e das instituições socializadoras. Citando Groppo (2005, apud PARK, 2005a), a autora pontua que instituições sociais, orfanatos, escolas, grupos juvenis, universidades, mídias eletrônicas e indústria cultural foram usadas pelo processo de modernização para moldar a juventude, que na pós-modernidade, passa a ser vista como um estilo de vida, sendo o consumismo o definidor do comportamento juvenil. Desse modo, as etapas da vida podem inserir-se num processo de reinvenção ou reconstrução e, por

conseqüência suas representações também.

Como exemplo, em relação à construção da infância como uma categoria etária, pode-se recorrer à obra de Philippe Ariés, História Social da Criança e da Família (1986). Ainda que haja críticas11 ao trabalho de Ariés, o mesmo é considerado referência para a compreensão da construção social das etapas etárias e um marco na constituição da infância como objeto de estudos da História (NASCIMENTO, 2001; PINTO, 1997).

Utilizando-se da análise de produções artísticas de um longo período, o historiador francês indica a inexistência do conceito de infância até fins da Idade Média. Até então, a criança não tinha um espaço ou imagem próprias, sendo vista como um adulto em miniatura. Não haviam roupas ou mesmo jogos e brincadeiras que lhes fossem próprios, o que foi percebido pelo fato de que elas se vestiam como adultos e jogavam ou brincavam também como os adultos. Não havia diferença entre o mundo adulto e o mundo da criança, mais que isso, não havia um mundo da criança. É na transição entre os séculos XVII e XVIII que a infância passa a ser considerada um período de ingenuidade e fragilidade, no qual o ser humano precisa de cuidado, proteção e até mesmo "mimos", idéia que vigora até os dias atuais e direciona o comportamento da sociedade para com suas crianças.

Nesse processo de construção da idéia de infância, a escola desempenhou um papel importante, chegando mesmo a contribuir para o prolongamento da mesma. Até o século XVII, o ensino não tinha um caráter formal, e a escola surge como uma forma de "colocar a criança em seu devido lugar", tendo um caráter disciplinador. Posteriormente, no século XVIII, ocorre uma divisão do ensino em dois ciclos: a escola e o liceu, sendo o primeiro mais curto e o segundo mais longo. Esta divisão acentuou o reconhecimento das fases infantil e juvenil da vida. Todavia, o autor ressalta que a condição de criança e jovem relacionada ao prolongamento do período escolar esteve circunscrita à classe burguesa até a primeira metade do século XIX, tendo em vista que entre as crianças das classes pobres havia a necessidade de atuarem como mão-de-obra para o desenvolvimento da indústria têxtil, e tal fato as impelia a passar à vida adulta precocemente. Tais considerações indicam que as classes etárias não são construídas da mesma forma pelos diferentes grupos sociais, sendo influenciadas pelo contexto sócio-econômico e cultural.