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2. Relações intergeracionais

2.2. Relações intergeracionais: crianças e velhos

A proximidade entre crianças e velhos permite que ambos consigam entender-se com certa facilidade e estabelecer relações profícuas, calcadas em afeto e compreensão mútua. Conforme salienta Bosi (1994), o diálogo que se estabelece entre criança e velho é verdadeiro e permeado pelo sentimento de reciprocidade e pela liberdade de expressão conferida a ambas as partes. Acontece num tempo próprio, sem pressa, nem preocupação com desigualdades sociais ou educacionais.

As relações entre avós e netos, usualmente marcadas por um troca intensa de afeto e respeito mútuo, retratam a proximidade entre velho e criança. Balandier (1976), ao relatar etnografias de sociedades tribais africanas, aponta a existência de relações mais livres e igualitária entre classes etárias alternadas (avós e netos) e relações mais distantes e autoritárias entre classes contíguas (pais e filhos).

Os avós são figuras privilegiadas no imaginário dos indivíduos, sendo segundo Lopes, Neri e Park (2005), com algumas exceções, amados e recordados com carinho pelos netos. Estes, por sua vez, são tidos pelos avós como fonte de renovação de si mesmo e da família. Parece-lhes a confirmação de sua perpetuidade, especialmente se estão em idade avançada e percebem a proximidade da morte. Beauvoir (1990) destaca que os sentimentos que os avós destinam aos netos são os mais felizes e calorosos. Para a autora “junto à criança, o homem idoso reencontra sua infância. [...] Vimos que o único consolo dos velhos camponeses eram, muitas vezes, seus netos, até o dia em que estes começavam a brincar de adultos” (BEAUVOIR, 1990, p. 253).

Dias e Silva (2003) destacam que após os pais, os avós são usualmente os principais agentes socializadores dos netos e que o envolvimento entre avós e netos tende a ser mais expressivo na infância e na adolescência. Entrevistando jovens universitários, as autoras encontraram que os avós significam para estes sabedoria e experiência de vida, respeito, afeto/carinho, raiz e origem da família. Foi ressaltado ainda, que os avós são considerados como segundos pais por estes jovens.

Dois exemplos oriundos da mídia cinematográfica, remetem à cumplicidade entre essas duas gerações. Cocoon (COCOON,1985), filme estadunidense dirigido por Ron Roward, apresenta a estreita e prazerosa relação entre um avô e seu neto. O avô vivia numa instituição para velhos com a esposa e periodicamente encontrava-se com o neto para passeios e conversas. Há entre os dois certa cumplicidade e o avô esmera-se em transmitir conselhos e experiências práticas para o neto, o qual por sua vez proporciona-lhe momentos lúdicos. Na comédia italiana Parente é Serpente (PARENTI SERPENTI, 1992), de Mario Monicelli, o neto narra as mazelas das festas de fim de ano de sua família, que se reúne na casa de seus avós. O filme é carregado de conflitos familiares, inclusive uma incompatibilidade entre os interesses dos filhos e a necessidade dos pais, entretanto vale ressaltar a facilidade com que o neto lida com o avô demenciado, o qual por sua vez parece sentir-se próximo da criança e compreendido pela mesma.

Bosi (1994) ressalta que avós e crianças encontram-se num tempo próprio em que o presente não assume grande importância, posto que ambos não atuam sobre o mesmo. Passa a ter relevância o passado, que os avós revivem ao contar aos netos, e o futuro que remonta o passado, no qual os netos poderão dar continuidade ao que os avós lhes transmitem.

Assim é a relação estabelecida entre Salvatore Roncone – o nonno Bruno – e Brunettino – o neto de treze meses que se torna seu último grande amor. Sampedro (1996) descreve a cumplicidade entre avô e neto, a capacidade da criança despertar no velho a vontade de viver mais um pouco, de lutar contra sua doença para vê-lo crescer, para ouvi-lo dizer nonno, para protegê-lo da solidão da noite escura à qual os pais lhe condenam. Os pensamentos do avô ao conhecer o neto dizem muito.

“ Treze meses já!”, pensa o velho, ainda não refeito da surpresa... “Meu neto, meu sangue, aí, de repente... Como eu não soube antes?... Está lindo, agora acredito!... Mas por que me olha tão sério, por que gesticula? O que estará querendo me dizer?... (SAMPEDRO, 1996, p. 22)

O velho Roncone fala com a criança e aos poucos aprende a escutá-la num diálogo sem palavras. A criança o instiga a lembrar-se do passado, o faz mudar hábitos e crenças. Um homem que mesmo tendo três filhos, afirma que não os teve porque estes pertenciam às mães, conforme mandavam os costumes. Um homem que jamais havia tido o sentimento que o neto lhe despertara e que se entrega totalmente aos caprichos da criança, sua esperança de perpetuidade, seu novo amor, seu primeiro filho. Os últimos momentos entre avô e neto mostram a força dessa relação.

O menino, inquieto diante dessa noite tão diferente, engatinha pela cama até o velho. Agarra-se temeroso ao braço já paralisado e se põe em pé, seu rostinho junto ao do avô, esperando, esperando… De repente, seu instinto lhe revela o desarrimo do mundo, as trevas vazias. O golpe da solidão arranca-lhe a palavra tantas vezes ouvida:

– Non-no – pronuncia nitidamente, diante daquele rosto cujos olhos o buscam já sem o ver, mas cujos ouvidos ainda o ouvem, afogados em júbilo. E repete o conjuro, seu chamado de cão perdido. – Nonno, nonno. Nonno! Finalmente o cântico celeste!

Cores de além-mundo, lumes de mil estrelas incendeiam o velho coração e arrebatam a essa glória, a essa grandeza, esta palavra insondável:

NONNO!

lábios já não conseguem pronunciar. (SAMPEDRO, 1996, p. 362)

Ainda que, conforme assinalam Lopes, Neri e Park (2005), as relações entre avós e netos tenham estado sujeitas a transformações nas últimas décadas devido a causas variadas, resultando num crescente número de avós ocupando o papel de pais dos netos, as relações entre avós e netos, não deixam de ser significativas para ambos, apesar de assumirem novas feições e de os percalços enfrentados pela díade serem maiores.

As trocas estabelecidas entre essas gerações acontecem em vários níveis: afetivo, instrumental, financeiro e educativo. De modo prático, os velhos, que já não se ocupam das mesmas funções dos adultos, têm tempo para se dedicar às crianças, que por não se ocuparem ainda das funções dos adultos, têm tempo para estar com os velhos e mesmo lhes prestar alguns serviços. Além da troca de favores, há espaço para o lúdico, tendo em vista que ambos, seres marginais que são, estão liberados da pressão social por seriedade que recai sobre os adultos (BEAUVOIR, 1990).

Mesmo podendo dar-se em níveis variados, ressalta-se o caráter co-educativo da relação velho-criança. Conforme assinala Beauvoir (1990), a criança, esperança do futuro, precisa aprender sobre as coisas da vida, e o velho, ancorado ao passado, é detentor de saber. A ligação entre eles, cimenta a unidade coletiva, possibilitando perpetuação e renovação da cultura.

Num estudo sobre o papel dos velhos entre os povos Kimbundu, residentes na Angola, André (2003) ressalta a importância dos avós na educação dos netos. Os avós ensinam aos netos tarefas da vida prática, transmitindo conhecimentos e saberes cotidianos relevantes para a vida diária. Nessa sociedade, os “avós são muito apegados aos netos; criando às vezes até ciúme por parte dos pais biológicos, os netos encontram neles grande proteção e carinho” (ANDRÉ, 2003, p. 154).

Oliveira (1999), em seu estudo sobre a convivência de avós e netos em famílias de baixa renda de Marília-SP, ressalta que o convívio com crianças traz “vida nova” para os velhos e cria perspectivas inusitadas para as crianças. Estas impelem aqueles a se transformar, buscando conhecimentos e memórias antigas e conhecendo as novidades que lhes apresentam. A criança aprende com os velhos, relacionando os conceitos culturais transmitidos à sua vivência cotidiana. O resultado é o estabelecimento de uma relação de co-educação.

Criança e velho, quando juntos, podem criar uma situação de aprendizado, de construção do conhecimento num processo co-educativo, isto é, em que ambas as partes são educadas reciprocamente. Os velhos transmitem informações culturais ressignificadas em suas memórias e conhecimentos adquiridos por meio de sua experiência. Às crianças cabem aproximá-los de novidades. A criança, dotada de agilidade e avidez por conhecer, impele o velho a movimentar- se para acompanhá-la, a revirar suas memórias e saberes para oferecer-lhe o que anseia.

O espaço de co-educação aberto nessas relações intergeracionais possibilita ao velho desempenhar uma função social, a função de lembrar. Bosi (1994), baseada em Halbwachs, argumenta que na velhice social “resta a função de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade” (BOSI, 1994, p. 63).

Segundo Park (2000), desempenhando a função de lembrar, o velho atua como portador e divulgador das memórias coletivas. “Um educador-pedagogo que conduz os outros membros do grupo pelas trilhas e memórias que fundamentam suas histórias” (PARK, 2000, p. 22). Além disso, também está sendo-lhe permitido realizar uma “função social produtiva” conforme esta é definida na sociedade capitalista. Isto porque, lembrar é uma forma de construir conhecimento no processo de construção e reconstrução de histórias. E esse lembrar pode e deve fazer parte do processo educativo.

Alvisi (1996) ressalta que por meio do relato de suas memórias, o velho contribui para a socialização da criança, que nesse contato aprende o que raramente encontraria num livro, posto que é resultado de vivências e experiências de vida.

O contato da criança com as memórias relatadas pelo velho permite seu contato com a essência da cultura, conforme pontua Bosi (1994), pois há conhecimentos e saberes práticos, manuais, cotidianos que são transmitidos somente pela via oral, ou seja no diálogo com os velhos, portadores da memória coletiva. A autora afirma ainda que nesse contato com o velho, a criança tem oportunidade de adquirir uma “memória” sobre os fatos passados e a história passa a fazer parte de sua vida.

A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha suas raízes na história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte na sua socialização. Sem estas haveria apenas uma competência abstrata para lidar com os dados do passado, mas não a memória. (BOSI, 1994, p. 73)

A memória do velho é uma fonte de informações e as histórias que traz podem muitas vezes não convergir com a história oficial (ALVISI, 1996). Todavia, isso não as desmerecem, porque são relatos de experiências e por isso também histórias reais, construídas e reconstruídas sempre que são relatadas. A matéria-prima para esse processo de construção e reconstrução é o fato em si e a experiência de quem o vivenciou de perto, muitas vezes como testemunha ocular, e que por meio dessa vivência própria e dos saberes adquiridos com o passar dos anos, é capaz de interpretar os fatos sob uma óptica própria, analisando o passado e o presente sob um outro prisma, possibilitando novas reflexões e questionamentos. A história entrelaça-se na história da criança, que mesmo não a tendo vivido, pode experienciá-la por meio do relato do velho.

As relações entre avós e netos foram destacadas por, sem dúvida, representarem um espaço privilegiado de encontros entre crianças e velhos. Todavia, não se pode deixar de lado, que tais encontros podem extrapolar o âmbito familiar, acontecendo num contexto mais amplo, em que os envolvidos não têm necessariamente um vínculo biológico. Aqui, abre-se espaço para os programas intergeracionais.