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A “Socioeducação”

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 85-90)

2. A Responsabilização Juvenil

2.3. Percorrido o caminho, atravessar: analisando os discursos

2.3.1. A “Socioeducação”

Conforme mencionamos na introdução, decidimos não analisar o modelo denominado “Socioeducação” por alguns motivos. Além de ser um modelo que agrupamos por exclusão, no que diz respeito à apuração do ato infracional, nosso recorte não aponta grandes divergências em relação ao modelo “Direito Penal Juvenil” (DPJ). Ambos os

modelos se alicerçam no garantismo penal, mas seguem caminhos diferentes, conforme discorremos na introdução.

Os textos agrupados sob esse modelo se posicionam pela autonomia dessa temática do Direito, ao invés de vinculá-lo a alguma outra área. Encontram-se sob este modelo também os textos que explicitamente se posicionavam contrariamente ao “Direito Penal Juvenil”.

Os escritos de Paulo Afonso Garrido de Paula parecem guiar os que escrevem nessa mesma linha. Trata-se de um jurista integrante da comissão redatora do Estatuto, que traz informações sobre como interpretar o sistema de justiça juvenil, presente no ECA, baseando-se nas discussões realizadas à época. Ele define que essa “nova” justiça juvenil está fundamentada na normativa internacional e nas regras constitucionais. Para ele, essa lei possui princípios próprios e uma “didática particular”, constituindo um “ramo autônomo256” do direito.

Frisar a diferença ou a autonomia em relação aos outros ramos do direito foi a etapa inicial do “tensionamento” que se instalou no território. Como vimos, juridicamente o ECA abriu uma vasta possibilidade de interpretações, tanto na linha da “doutrina da proteção integral”, quanto na da “doutrina da situação irregular257”.

Na seara do ato infracional há quem vislumbre a existência de um Direito Penal Juvenil, negando a autonomia do Direito da Criança e do Adolescente. Defendem essa ideia em razão da necessidade de incidência do sistema de garantias próprias do Direito Penal e também ante a exigência humanista de contestar o antigo Direito Tutelar, discricionário e, via de conseqüência, arbitrário. Relacionam o Direito Penal Juvenil a um sistema de administração da justiça onde, considerando a possibilidade de pena, o devido processo legal, com as garantias que lhe são próprias, serve como anteparo à desmedida e irrestrita intervenção do Estado (...)258.

256 Cf. PAULA, Paulo A. Garrido de. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 42.

257 Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Sujeito de direito: o acesso à Justiça como direito declarado. Prêmio

Sócio-educando 3ª edição: práticas promissoras – garantindo direitos e políticas públicas, op. cit., p. 34 - Saraiva também utiliza o argumento da existência de um “equívoco” de interpretação do Estatuto, mas para justificar a implementação do direito penal juvenil: “(...) o chamado princípio do superior interesse da criança (...) historicamente tem servido muito mais para fundamentar decisões à margem dos direitos expressamente reconhecidos pela Convenção, adotados por adultos que sabem o que é o melhor para a criança, desprezando muitas vezes a própria vontade do principal interessado”.

258

Cf. PAULA, Paulo A. Garrido de. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada, op. cit., p. 42-43.

Entretanto, Garrido entende que a legislação atual não pode ser confundida com a legislação vigente na etapa tutelar, porque ela surge, justamente, da necessidade de “resistir à discricionariedade estatal permitida pelo revogado Código de Menores259”. E, na visão do jurista, ao contemplar regras limitadoras da intervenção do poder público, tais como, a ampla defesa (autodefesa e defesa técnica por advogado), o direito ao contraditório e ao devido processo legal, esta lei realiza a tarefa de resistir à discricionariedade.

Além dessas, outras regras especiais se aplicam ao adolescente privado de liberdade. Essas regras se complementam e devem ser observadas simultaneamente. São elas: 1) a excepcionalidade, pois em nenhuma hipótese a medida socioeducativa de internação deverá ser aplicada, se houver outra medida mais adequada260; 2) a brevidade, já que a medida de internação tem o limite de três anos, mas deve ser aplicada pelo tempo mais breve possível, para não comprometer o desenvolvimento do adolescente, diante das comprovadas mazelas geradas pela privação de liberdade261 e 3) a condição peculiar de desenvolvimento262. Para o jurista, esse conjunto de regras seria suficiente para conferir um caráter garantidor, mas não penal, à legislação atual263.

Esther Arantes ressalta que, nas reuniões sobre o projeto do Estatuto, ocorriam discussões sobre quais deveriam ser as garantias processuais para o adolescente autor de ato infracional. Entretanto, não se mencionava a “interpretação da doutrina da proteção integral como direito penal”. Ela afirma que essa vinculação também não era a desejada pelo movimento social264.

259

Cf. Idem, op. cit., p. 43.

260 Cf. Art. 227, § 3º, inciso V da CF/88 e Art. 122, §2º do ECA. 261 Cf. Art. 227, § 3º, inciso V da CF/88 e Art. 121, §3º do ECA. 262

Cf. Art. 227, § 3º, inciso V da CF/88 e Art. 121 do ECA.

263

Nesse mesmo sentido, a Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, se posicionou: “A responsabilização especial sócio-educativa de adolescentes autores de ato infracional é informada pela Teoria Geral dos Direitos Fundamentais e mais amplamente pelos Direitos Humanos. A norma-princípio constitucional do Devido Processo Legal e todas as normas-regras decorrentes dessa norma princípio aplicam-se aos adolescentes. Nesse sentido, não se pode admitir a busca, no direito penal, como única forma de garantia e atribuição de garantias processuais aos adolescentes, uma vez que, tais garantias, no que concerne ao Direito brasileiro, estão inscritas constitucionalmente” (Cf. Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED. Justiça Juvenil: a visão da ANCED sobre seus conceitos e práticas, em uma perspectiva de Direitos Humanos. São Paulo: ANCED, 2007, p.84- 85).

264 Cf. ARANTES, Esther Maria de M. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina da Proteção Integral é

Direito Penal Juvenil? In: Zamora, A. (org.) Para além das grades – elementos para a transformação do sistema socioeducativo, op. cit., p. 69.

Para Garrido, não seria correto afirmar a “exclusividade do Direito Penal como sistema garantidor do direito fundamental a liberdade265”, como se essa fosse a única área do Direito responsável por preservar o cidadão do arbítrio estatal. Essa assertiva, para o jurista, restringe as conquistas e avanços do Direito como um todo, apenas ao Direito Penal. Sob o seu ponto de vista, e outros juristas ecoam com ele, as garantias penais podem ser incorporadas pelas outras áreas do Direito para servirem a fins específicos.

Além disso, o jurista entende que não é tarefa exclusiva do Direito Penal prescrever um sistema de responsabilização pessoal, pois o Direito é, ao mesmo tempo, um “Código de Deveres e um Código de Direitos266”. Para Garrido, não seria por prever medidas de reprovação à conduta infracional praticada por adolescentes que a “autonomia” do Direito da Infância e Juventude deva ser questionada.

(...) num sistema diverso diferenciado do civil e do penal, representando conseqüências próprias de um ramo autônomo do nosso ordenamento jurídico (...) foi buscar no chamado garantismo penal, concepção indicativa do conjunto das garantias materiais e processuais que limitam a intervenção do Estado na esfera de liberdade do indivíduo e que projetam uma intervenção estatal estritamente regrada, inspiração para o estabelecimento de seus pilares que, juntados a outros, especiais, determinaram a criação de algo novo. Isso não o transforma em Direito Penal (...)267.

Garrido afirma que o “sistema de responsabilização” previsto no ECA tem a “expectativa de construção e desenvolvimento de valores que permitam ao adolescente enfrentar os desafios do convívio social sem os recursos da violência e da ilicitude268”. Esse sistema trataria, então, de “responsabilização”, e não de “pena”, porque pretende impor resposta diferente da penal, conforme previsto constitucionalmente269. Chama-se de “responsabilização” por compreender que crianças e adolescentes são seres responsáveis

265

Cf. PAULA, Paulo A. Garrido de. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada, op. cit., p. 43.

266 Cf. Idem, op. cit., p. 44. 267

Cf. PAULA, Paulo Afonso Garrido. Ato infracional e natureza do sistema de responsabilização. In: ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA (org.). Justiça, Adolescente e Ato infracional: socioeducação e responsabilização, op. cit., p. 34-35.

268 Cf. Idem, op. cit., p. 44.

269 Cf. Idem, op. cit., p. 35. Importante citarmos também o art 228 da CF/88: “São penalmente inimputáveis

os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial” – A legislação especial referida trata- se do ECA.

pelos atos que praticam em sua vida e por sua vida, num nível diferente do adulto270. Outrossim, na linha defendida por Garrido, existem trabalhos importantes que já constataram que a responsabilidade do jovem deveria ser buscada nas relações que ele estabelece271

.

Para Garrido, a aplicação das medidas socioeducativas, previstas como consequência da prática do ato infracional, estaria subordinada aos princípios norteadores da “doutrina da proteção integral”, além de princípios próprios, como a excepcionalidade, a brevidade e a condição peculiar de desenvolvimento, já citados. Observar esses princípios seria suficiente para a aplicação das regras do sistema de justiça juvenil em consonância com esta doutrina, não justificando a “tese da existência, em nosso ordenamento, de um direito penal juvenil272”. Para o jurista, a proteção integral é finalidade política desse ramo do Direito. Sendo assim, deve objetivar garantir aos adolescentes um “desenvolvimento saudável”, por meio da garantia de sua integridade físico-psíquica- material, o que se aplica à apuração do ato infracional.

Nessa linha, Sinara Fajardo explicita mudanças importantes expressas pelo ECA, nos seguintes aspectos: conceituais, pois incorpora a doutrina da proteção integral; metodológicos, já que substitui o assistencialismo pela socioeducação e a discricionariedade da doutrina da situação irregular pela concepção garantista; e políticos, por promover a descentralização da gestão dos serviços públicos oferecidos e requisitar a participação popular273. No que diz respeito ao que ela denomina “adolescente em conflito com as normas jurídicas274”, defende que há uma ambiguidade no próprio modelo de

270

Cf. NOGUEIRA Neto, Wanderlino. Direitos Humanos da Infância e da Adolescência no SIPIA. Fortaleza: CEDAC, 2004, p. 30.

271

Cf. VICENTIN, Maria Cristina G. A questão da responsabilidade penal juvenil: notas para uma perspectiva ético-política. In: ILANUD, ABMP, SEDH, UNFPA (org.). Justiça, Adolescente e Ato Infracional: socioeducação e responsabilização, op. cit., p. 167-168: “(...) autonomia/responsabilidade do jovem deve ser pensada como função de uma relação e não de uma qualidade do sujeito. Além disso, a psicologia social e as vanguardas da psiquiatria concordam em considerar que a responsabilidade (no plano subjetivo) é resultante de um processo interativo e não uma qualidade individual que existe ou não existe, o que coloca a necessidade de pensar processos de subjetivação adolescente na confluência com os agenciamentos sócio-históricos, ou, dito de outro modo, a necessária interdependência entre a dimensão de responsabilização subjetiva e o contexto sociopolítico que a promove/sustenta”.

272 Cf. PAULA, Paulo Afonso Garrido. Ato infracional e natureza do sistema de responsabilização. Em:

ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA (org.). Justiça, Adolescente e Ato infracional: socioeducação e responsabilização, op. cit., p. 45.

273

Cf. FAJARDO, Sinara Porto. Retórica e realidade dos direitos da criança e do adolescente no Brasil: uma análise sociojurídica da lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990, op. cit., Sinara02.htm.

274 Discordarmos da denominação “adolescente em conflito com as normas jurídicas”, pelos motivos já

expostos na introdução. Além disso, essa forma de nomear pode dar margem a um entendimento de concordância com as normas penais estabelecidas, nesse momento histórico.

justiça juvenil apresentado pelo Estatuto. Fajardo afirma que essa “ambiguidade” estaria também presente em âmbito internacional.

A ambiguidade residiria entre os que defendem que a lei apresenta um caráter mais “pedagógico/flexível” e os que defendem um caráter mais “penal/garantista”. Fajardo problematiza, porém, que não importa qual viés é o correto, mas que ambos estão em contradição com a realidade, pois na prática “não são oferecidas nem garantias, nem educação ou proteção275”.

Se há ou não essa ambiguidade no modelo de justiça juvenil apresentado pelo ECA, não nos cabe afirmar, pois nosso estudo não pretende encontrar uma saída correta ou eficaz. Interessa-nos mostrar a diversidade de linhas de força que estão em jogo e que permitem a emergência de outras interpretações, além dessa que acabamos de apresentar. Traçamos algumas das características que consideramos importantes para compor esse possível modelo que denominamos “Socioeducação”, pois algumas dessas características são recuperadas pelos outros dois modelos, DPJ e JR. Antes de apresentarmos os outros modelos, passaremos ao panorama legal que visa sustentar esse sistema de justiça juvenil atualmente. Esse panorama surge sem que a disputa pela interpretação do sistema esteja resolvida ou minimamente pacificada.

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 85-90)