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O Sistema de Justiça Juvenil: lutas, batalhas, tensões e resistências

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 64-79)

2. A Responsabilização Juvenil

2.1. O Sistema de Justiça Juvenil: lutas, batalhas, tensões e resistências

Antes de apresentarmos os modelos de práticas judiciárias, precisamos indicar o território do qual emergiram. Para isso, recorreremos a um breve resgate histórico184 relacionado às diferentes etapas pelas quais a questão da Infância e da Adolescência passou no século XX/ XXI, no Brasil. Apresentar essa história é apontar as lutas, as batalhas, as tensões e as resistências, ou seja, é apresentar os jogos de poder que permearam e permeiam todo esse processo.

Marcos César Alvarez realizou um estudo sobre as transformações discursivas que possibilitaram o surgimento de uma legislação de proteção e assistência direcionada ao público menor de 18 anos, no Brasil, no início do século XX. Nesse estudo, Alvarez identifica práticas históricas específicas que permitiram a formulação do termo “menor”, como categoria do discurso jurídico brasileiro. O sociólogo caracteriza essa formulação como um “acontecimento histórico específico”185, que culminou com o advento do primeiro Código de Menores do país, o chamado Código Mello Mattos, de 1927.

Os escritos de Michel Foucault permitem a Alvarez “estudar o menor como efeito de práticas de poder186”, pois “não é um objeto dado, mas sim um sujeito de práticas discursivas e institucionais, resultado de enfrentamentos e de estratégias de dominação187”. A partir do Código Mello Mattos, que data de 1927, novas práticas institucionais acompanhadas de modificações discursivas culminam na formação de um sistema de justiça juvenil tutelar e paternal ao redor da categoria do “menor”. Esse sistema marcava uma mudança radical em relação ao sistema até então vigente, de caráter punitivo. Com a reorganização dos discursos e das formas de institucionalização, a função punitiva da justiça se transforma em uma função pedagógica, tutelar e recuperadora. “Novas práticas de poder, novas leis, novos objetos, portanto188”.

184 Maiores detalhes históricos, inclusive quanto a mudanças legislativas, podem ser encontrados nas

bibliografias citadas ao longo do capítulo.

185 Cf. Alvarez, Marcos C. A emergência do código de menores de 1927: uma análise do discurso jurídico e

institucional da assistência e proteção aos menores. São Paulo: dissertação de mestrado apresentada no departamento de sociologia da Universidade de São Paulo, mimeo, 1989, p. 18.

186 Cf. Idem, op. cit., p. 20. 187

Cf. Idem, op.cit., p. 24.

188

Para Alvarez, não se trata de realizar um estudo com foco na evolução ou involução da lei que modifica a anterior, pois a ideia de evolução da legislação se basearia “na ilusão da permanência do objeto: diante do menor, as leis vão se tornando mais aprimoradas, aproximando-se, cada vez mais, de um equacionamento ideal da questão”189. Alvarez nos alerta de que pensar em evolução é o equívoco e, por isso, seu foco está no objetivo da lei. Leis diferentes, objetos diferentes.

Alvarez aponta para o fato de que os códigos do século XIX têm por objetivo o “menor” que cometeu um delito. Estava em jogo um poder punitivo, punir ou não punir, dependendo da análise sobre o discernimento que este apresentasse ao praticar o ato. O Código de 1927, ao contrário, visa o “menor” em risco de abandono, ampliando o alcance da lei. O juiz de menores será o responsável a examinar a responsabilidade do “menor” como fruto do meio e das condições morais nas quais está inserido e, por meio de inquérito, dirá se o “menor” é recuperável. A análise de sua “responsabilidade” não está em jogo190.

Essa nova justiça191 requer um juiz paternal e um conjunto de especialistas que o ajudariam no tratamento da questão. Esses especialistas se encarregavam de pesquisar e conhecer os antecedentes das crianças. Longe estamos, portanto, de um procedimento estritamente jurídico, agora atribuições complexas o permeiam. Alvarez acredita que essa nova justiça era também um projeto de institucionalização da infância abandonada e delinquente, por promover uma reorganização das instituições.

189 Cf. Idem, op. cit., p. 34.

190 Interessa-nos apontar as disposições relativas aos “menores delinqüentes”, presentes na lei:

“Decreto nº 17.943-A, de 12 de Outubro de 1927: Consolida as leis de assistencia e protecção a menores - CAPITULO VII - DOS MENORES DELINQUENTES - Art. 68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal de, especie alguma; a autoridade competente tomará sómente as informações precisas, registrando-as, sobre o facto punivel e seus agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e economica dos paes ou tutor ou pessoa em cujo guarda viva. (...) Art. 69. O menor indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou Contravenção, que contar mais de 14 annos e menos de 18, será submettido a processo especial, tomando, ao mesmo tempo, a autoridade competente as precisas informações, a respeito do estado physico, mental e moral delle, e da situação social, moral e economica dos paes, tutor ou pessoa incumbida de sua guarda. (...) Art. 71. Si fôr imputado crime, considerado grave pelas circumstancias do facto e condições pessoaes do agente, a um menor que contar mais de 16 e menos de 18 annos de idade ao tempo da perpetração, e ficar provado que se trata de individuo perigoso pelo seu estado de perversão moral o juiz Ihe applicar o art. 65 do Codigo Penal, e o remetterá a um estabelecimento para condemnados de menor idade, ou, em falta deste, a uma prisão commum com separação dos condemnados adultos, onde permanecerá até que se verifique sua regeneração, sem que, todavia, a duração da pena possa exceder o seu maximo legal”.

191 Cf. Alvarez, Marcos C., op. cit., 1989, p. 76: “Prever, aconselhar, repreender, corrigir. Quantas palavras

não irão se instalar onde antes havia apenas a palavra punir? Já estamos distantes de uma lei puramente punitiva, que não se envergonhava com palavras como castigo e punição. A crise do discernimento é a crise dessas antigas concepções de justiça”.

O discurso da assistência e proteção aos menores e o Código de 1927 definem um novo projeto jurídico e institucional voltado para a menoridade. Nesse projeto, uma justiça especial para menores – não punitiva, recuperadora, disciplinar, tutelar e paternal – estará articulada a uma reorganização da assistência – mais ampla e sistemática, preventiva, organizada cientificamente pelo Estado. (...) um novo estilo penal definirá a atuação desses tribunais, onde a disciplina e a tutela irão substituir a repressão e a penalização. Uma estratégia institucional produtiva, e não apenas repressiva ou excludente, visará a produção de crianças e jovens como indivíduos economicamente produtivos, moralizados e politicamente submissos. Uma série de mecanismos de vigilância, de apreensão, de classificação, de julgamento e de distribuição de crianças e adolescentes, garantirão a produção e reprodução de uma nova clientela institucional, os menores192.

No entanto, essa nova justiça não se firmou como soluçãodefinitiva para a questão da infância no país. A ausência de estrutura/recursos para executar as normas aliada à falta de autonomia para a manutenção dos institutos já existentes se tornaram barreiras à aplicação do Código Mello Mattos (1927)193. A história demonstra que, após esse Código, existiram outras alterações legislativas que, ao invés de solucionar o problema da crescente marginalização da infância, agravaram-no194.

Apesar de compreendermos a importância dessas alterações, pretendemos abordar a substituição do Código de Menores de 1927 pelo Código de 1979, pois nos interessa caracterizar as etapas percorridas para chegarmos à atualidade.

De acordo com Salomão Schecaira, os códigos de 1927 e de 1979 representam a chamada “etapa tutelar195”, que substituiu a “etapa penal indiferenciada”, vigente antes de 1927, no Brasil. Como problematizou Marcos Cesar Alvarez em seu estudo, essa “etapa

192

Cf. Idem, op. cit., p. 150-151.

193 Cf. JESUS, Mauricio Neves de. Adolescente em conflito com a lei: prevenção e proteção integral.

Campinas: Servanda Editora, 2006, p. 48-49.

194

Para maiores detalhes sobre a criação do Serviço de Assistência aos Menores (SAM) em 1941, primeiro órgão federal responsável pelo controle da assistência oficial e privada e a revogação desse órgão em 1964 devido à criação, pelo regime militar, da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), ver RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. São Paulo; Cortez, 2009.

195 Cf. SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistemas de Garantias e o Direito Penal Juvenil. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2008, p. 41: “O modelo tutelar não foi algo concebido somente entre nós. A literatura estrangeira é farta em referências a seus países, mostrando que sistemas presididos por juizes de menores de instalaram com as mesmas características (...)”.

tutelar” estabelece uma categoria jurídica específica196: “o menor”. Crianças e adolescentes seriam cuidados pelas famílias, sendo considerados “menores” pela Justiça.

Entretanto, o que muda com o implemento do Código de Menores de 1979? Esse novo código, em vigência a partir de outubro de 1979, inaugura o segundo momento da “etapa tutelar” no Brasil, e mantém a “doutrina da situação irregular”, vigente no país desde 1919197. Elaborado pelos militares e de cunho autoritário, foi alvo de críticas por ter sido feito às pressas, sem mudar a essência do problema: “O Código (...) ratificava uma visão consolidada e ultrapassada, que ignorava garantias às crianças e aos adolescentes, como se eles fossem objeto do direito e não sujeitos dele198”.

O Código limitava-se a agir na assistência, proteção e vigilância aos ‘menores’ de até 18 anos que se encontrassem em situação irregular199. Evidenciava o termo “menor” e no artigo 2º do código, caracterizava quem era o “menor” em situação irregular. Vejamos:

art. 2º: Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal200.

196 Cf. Idem, op. cit., p. 39 - Schecaira confirma que grande parte da doutrina jurídica também identifica que

na etapa tutelar se estabelece a categoria jurídica do “menor”.

197

Cf. SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil: o adolescente e o ato infracional. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2010, p.18-19: “Num período de tempo de vinte anos, iniciando em 1919 com a Legislação da Argentina, todos os países da América Latina adotaram o novo modelo, resultante da profunda indignação moral decorrente da situação de promiscuidade do alojamento de maiores e menores nas mesmas instituições. As novas ideias foram introduzidas a partir do chamado Movimento dos Reformadores”.

198 Cf. SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistemas de Garantias e o Direito Penal Juvenil, op. cit., p. 41. 199 Cf. PEREIRA JR., Almir; BEZERRA, Jaerson L.; HERINGER, Rosana (org.). Os impasses da cidadania

– Infância e Adolescência no Brasil. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, 1992, p 21.

200

O poder judiciário se fortalece, pois, como tutor201 e responsável por tutelar os menores como objetos, segregando-os, quando considerados em “situação irregular”. Nessa época, o “internato” também se fortalece como espaço de ressocialização e, portanto, “a perspectiva de tutela assume, como nunca, seu traço de controle social202”.

Mauricio Neves de Jesus caracteriza o modelo previsto nesse Código como inquisitorial, pois o poder do juiz se sobrepunha aos direitos da pessoa humana sob sua tutela, transcendendo as regras objetivas. Criou-se no artigo 8º o “critério do prudente arbítrio203”. Esse critério permitia à autoridade judiciária, por meio de portaria ou provimento, determinar outras medidas, além das previstas na lei, desde que necessárias à assistência, proteção e vigilância do ‘menor’204.

O Código de 1979 responsabilizava a família da criança ou do adolescente por este estar em “situação irregular”, ignorando as mazelas ocasionadas pela ausência de um poder estatal comprometido com questões sociais. Omitia a figura do Estado da listagem do artigo 2º, como se este não contribuísse com as causas das irregularidades ali elencadas. A erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, por exemplo, não eram vistas como sintomas sistêmicos, mas como ausência de força de vontade para o trabalho205.

Almir Pereira Jr relata que todo o aparato legal construído em torno da “menoridade” foi criticado e denunciado por seu caráter conservador e anti-democrático. Como exemplos desse viés, explicita-se a concentração do poder de decisão nas mãos dos juízes, sobre o destino daqueles “menores em situação irregular”, e a ausência de garantias de direitos, sobretudo, o direito de se defender perante uma acusação imputada. Entretanto, é somente na década de 80 que setores da sociedade civil organizada conseguem força de pressão e articulação suficientes para empreender as mudanças que julgavam necessárias206.

201 Cf. PEREIRA JR., Almir; BEZERRA, Jaerson L.; HERINGER, Rosana (org.). Os impasses da cidadania

– Infância e Adolescência no Brasil, op. cit., p. 21: “com poderes de denúncia, defesa, fiscalização e sentença”.

202 Cf. Idem, op. cit., p. 21.

203 Cf. JESUS, Mauricio Neves de. Adolescente em conflito com a lei: prevenção e proteção integral, op. cit.,

p. 60.

204 Cf. Idem, op. cit, p. 61: “(...) colocando a criança como mero objeto da análise investigativa (...) a

intimidade dessa criança ou adolescente era desregradamente vasculhada, sendo que as medidas legais chegavam a intervir na família e no meio em que o mesmo vivia”.

205 DEL PRIORE, Mary. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. 206

Cf. PEREIRA JR., Almir; BEZERRA, Jaerson L.; HERINGER, Rosana (org.). Os impasses da cidadania – Infância e Adolescência no Brasil, op. cit., p. 22.

Costuma-se dizer que um novo cenário se esboça no período pré-aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois a noção de irregularidade começa a ser criticada207. Devido às “possibilidades de organização e participação populares na luta pela garantia de direitos, novos atores políticos entraram em cena208” o que permitiu o surgimento de um amplo movimento social reivindicando direitos para crianças e adolescentes.

Em 1986, o Congresso Nacional passa a funcionar como Assembléia Constituinte, ou seja, estávamos reformulando ideias para que a Constituição Federal de 1988 (CF/1988) pudesse emergir. Esther Arantes nos relata que, nesse momento, as articulações da sociedade civil estavam munidas de ampla documentação e de pesquisas comprovando a “falência do modelo de atendimento dito ‘correcional-repressivo’”209. Questionar o modelo vigente permitiu a elaboração de novas propostas.

Negociar artigos que saem ou ficam num projeto de lei pode ser considerado usual em qualquer processo legislativo, entretanto, não se tratava de processo habitual e, sim, do período de reformulação política do país, após 22 anos de ditadura militar210.

(...) os direitos das crianças são colocados em evidência por inúmeras organizações, destacando-se o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de rua – MNMMR -, a Pastoral do Menor (...) que apresentam emendas para defesa os direitos da criança e do adolescente, que refletem também as discussões internacionais, consubstanciadas Regras de Beijing (1985), Diretrizes de Riad de (1988) e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989)211.

207 Cf. RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas

sociais, da legislação e da assistência á infância no Brasil, op. cit., p. 28: “Eram cerca de 30 milhões de ‘abandonados’ ou ‘marginalizados’ (...) Como poderia se encontrar em ‘situação irregular’ simplesmente metade da população de 0 a 17 anos?”.

208 Cf. Idem, op.cit, p. 28. 209

Cf. ARANTES, Esther M. de Magalhães. Rostos de crianças no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência á infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009, p. 197.

210

Cf. FALEIROS, Vicente de Paula. Infância e processo político no Brasil. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência á infância no Brasil. op. cit., p. 72-73: “Os anos 80 e 90 representam uma inflexão política e uma crise econômica na sociedade brasileira. A inflexão política se produziu através de um lento e gradual processo de liberalização do controle exercido pelo Estado sobre a sociedade, e principalmente, sobre as massas e organizações populares até a reconquista do direito de expressão, de greve, de voto, de organização”.

211

Vicente de Paula Faleiros salienta que quatro emendas populares reafirmavam o tema dos direitos da criança e do adolescente, também nas ruas, com recolhimento de assinaturas, além de intensa pressão para que se instaurasse a “Frente Parlamentar Suprapartidária pelos Direitos da Criança e do Adolescente”. Toda essa luta culminou no estabelecimento dos artigos 227, 228 e 229 da Constituição Federal de 1988, garantindo os novos direitos desse setor da população212.

Esses novos direitos expressavam a adoção de uma mudança de objeto abordado pela legislação sobre a infância e juventude no país, traduzida na “doutrina da proteção integral”. Além de fundamentar a Constituição Federal brasileira de 1988, Salomão Schecaira afirma que a “doutrina da proteção integral” passou a orientar todo o Direito da Criança e do Adolescente no Brasil. Para Schecaira, ela representa um momento de “funda ruptura no pensamento e no direito anterior. Não que a referida ruptura não tenha encontrado resistências213”. Assim:

O Governo enviou uma proposta denominada ‘Criança Constituinte’, que era oriunda do Ministério da Educação. O segundo projeto, de caráter popular foi chamado de ‘Criança Prioridade Nacional’, que surgia para se contrapor às propostas meramente assistencialistas, paternalistas e correcionais-repressivas que tinham sido elaboradas pelos parlamentares mais conservadores – forças alinhadas em torno do ‘centrão’. Não é preciso dizer que o projeto condizente com o concerto internacional só foi aprovado com grande mobilização nacional, inclusive com inúmeras manifestações de organizações que nasceram como porta-vozes daquela política (como foi o caso do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de rua – MNMMR)214.

Observamos que, nesse momento da história brasileira, há uma diferença de interesses que estão em luta/disputa no território. Outros poderes entram em jogo e a questão não é mais monopólio do saber jurídico, o qual havia encabeçado as mudanças anteriores. Nesse momento, alguns setores da sociedade civil estavam envolvidos, entrando em cena, unindo forças, pautando outros interesses.

212 Cf. Idem, op. cit., p. 75-76. 213

Cf. SCHECAIRA, Sérgio Salomão. Sistemas de Garantias e o Direito Penal Juvenil, op. cit., p. 44.

214

Pauta-se, frequentemente, o momento do trâmite legislativo215, que culminaria no Estatuto da Criança e do Adolescente, também como fruto da “resistência democrática” ou de uma “construção coletiva216”. A elaboração, e posterior aprovação do ECA, realizou-se em 1990, dois anos depois da promulgação da CF/1988. Esse tempo é considerado “recorde”, devido às negociações, pressões e encontros que foram realizados. Toda essa articulação política contou com o apoio de diversos setores da sociedade, tais como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua – MNMMR, além de “intelectuais, juízes progressistas, promotores, Pastoral do Menor e parlamentares”217.

Assistimos, portanto, a mais essa modificação no discurso sobre a infância e juventude no país. Essa “nova” mudança, pautada tanto pela CF em 1988 quanto pelo ECA em 1990, altera o jogo por seu próprio exercício: “reforço de termos, enfraquecimento de outros, efeitos de resistência, contra-investimentos”218, de tal modo que não encontramos, nesse resumido percurso histórico desenhado, um único tipo de sujeição estável.

Encontramos, nesse processo histórico, um movimento entre poder-resistência que pode ser pensado à luz dos escritos de Michel Foucault. Para Foucault não há uma relação de exterioridade entre poder e resistência. Identificada a característica relacional do poder, é natural que a resistência engendre-se em sua rede. A possibilidade de resistência encontra-se, então, na ordem da estratégia e da luta: “É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os indivíduos, recortando-os e os remodelando (...)”219.

Vejamos, então, como esse “novo” discurso, resultante desse movimento, se apresenta.

Como vimos, o ordenamento jurídico brasileiro, a partir da promulgação da CF em 1988 e consequente aprovação do ECA, em 1990, adotou a “doutrina das Nações Unidas

215

Procuramos a Irmã Maria do Rosário Leite Cintra, da Pastoral do Menor, para ter acesso aos documentos de seu acervo, mas não foi possível encontrá-la. Entendemos, também, que a análise dessa documentação seria objeto para um outro trabalho.

216

Em palestra realizada em 13.10.2010 no Ministério Público de São Paulo, em homenagem aos 20 anos de

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