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Entre o discursivo e o não discursivo: o saber-poder

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 39-43)

1. A vontade de verdade no discurso jurídico

1.2. As práticas judiciárias e a constituição do sujeito de conhecimento

1.2.2. Entre o discursivo e o não discursivo: o saber-poder

Como vimos, Nietzsche, cuja importância o próprio Foucault frisa reiteradamente, tentou demonstrar o que está por trás de todo conhecimento: o que está em jogo é uma luta de poder. O enlace entre poder político e conhecimento, o qual a modernidade ainda não superou, pode ser visualizado por meio da história das práticas judiciárias gregas.

Na segunda conferência de A verdade e as formas jurídicas, Foucault trabalha a partir de O Anti-Édipo de Giles Deleuze e Felix Guatarri. Para Foucault, esse texto instaura um novo olhar sobre a figura de Édipo, um olhar diferente do freudiano, no qual o mito refere aos nossos desejos inconscientes.

No referido texto, Deleuze e Guatari tentam mostrar que o triângulo pai-mãe-filho constitui, não uma verdade de natureza, mas um instrumento de limitação e coação que os psicanalistas, a partir de Freud, utilizam para conter o desejo, encaixando-o numa estrutura familiar definida pela sociedade, em determinado momento histórico. Não se trata, portanto, do conteúdo secreto de nosso inconsciente, como afirmou Freud, mas de um

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Cf. Idem, op. cit., p. 25.

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instrumento de poder, poder médico e psicanalítico, que se exerce sobre o desejo e o inconsciente111.

Para Foucault, a história de Édipo, registrada na peça Édipo-Rei, de Sófocles, fala, acima de tudo, de uma história do poder político mais do que de uma história do nosso desejo e do nosso inconsciente. Essa mesma narrativa fala de determinado tipo de relação entre poder e saber, entre poder político e conhecimento, de que nossa civilização ainda não se libertou. Trata-se do primeiro testemunho das práticas judiciárias gregas, a história de uma pesquisa da verdade que obedece exatamente às práticas judiciárias gregas dessa época112.

Uma pergunta coloca-se: o que era, na Grécia arcaica, a pesquisa judiciária da verdade? Para Foucault, o primeiro testemunho da pesquisa da verdade no procedimento judiciário grego pode ser encontrado na Ilíada de Homero. Nesse poema épico, aparece uma maneira singular de produção da verdade jurídica, a qual não passa pela “testemunha”, mas por uma espécie de jogo, de prova, de um desafio lançado: um personagem lança o desafio, o outro, ou aceita o risco ou renuncia. Caso seja aceito o desafio, a descoberta final da verdade passa ao domínio dos deuses, que se responsabilizam pelo que aconteceria: “seria Zeus, punindo o falso juramento, se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade113”.

Trata-se, pois, da prática arcaica de “prova da verdade” em que esta é estabelecida judiciariamente, não por uma constatação, por uma testemunha, por um inquérito ou por uma inquisição, mas por um “jogo de prova”. A prova, segundo Foucault, é característica tanto da Alta Idade Média quanto da sociedade Grega Arcaica.

Na tragédia de Édipo, outro modelo foi utilizado, embora nesse mito ainda encontremos resquícios da prática arcaica do “jogo de prova”. O mecanismo de estabelecimento da verdade no qual a tragédia de Édipo se fundamenta obedece à forma que Foucault chamou “Lei das Metades”: a verdade é descoberta através de “metades” que se ajustam e se encaixam uma à outra. A união de fragmentos – as falas do deus e do profeta, de Jocasta e de Édipo, do escravo Corinto e do escravo Citerão - foi necessária para “reconstituir o perfil total da história114”.

111 Cf. Idem, op. cit., p. 29-30. 112 Cf. Idem, op. cit., p. 31. 113

Cf. Idem, op. cit., p. 32.

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Foucault recorda ainda que essa forma presente em Édipo é uma técnica famosa, jurídica, religiosa e política, a que os gregos chamam “o símbolo grego”. É um instrumento de exercício do poder pois, por meio do ajustamento das metades, se reconhece a autenticidade da mensagem e, consequentemente, a continuidade do poder que se exerce.

O efeito que é produzido pelo ajustamento das metades ocorre em três níveis. Um no nível dos deuses e da profecia, representado por Apolo e pelo adivinho Tirésias. Outro no nível do soberano, dos reis, com a junção dos testemunhos de Jocasta e Édipo. O último, que completa a história, pelo nível dos servidores e escravos, Políbio e o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão.

Há ainda a presença de um terceiro olhar na tragédia, não o olhar eterno, iluminador, do deus e seu adivinho, mas o olhar do testemunho, representado pelo olhar humano dos escravos, que não estavam presentes na Ilíada de Homero115. Desloca-se a enunciação da verdade de um discurso do tipo “profético” e “divino” para o discurso retrospectivo, do testemunho. São discursos que dizem a mesma coisa, mas não com a mesma linguagem. A comunicação entre pastores e deuses, entre a lembrança dos homens e as profecias divinas, constitui o traço fundamental da tragédia.

Foucault deseja demonstrar que Édipo, dentro desse mecanismo do “símbolo grego”, das metades que se comunicam, não é aquele que nada sabia mas, ao contrário, aquele que sabia demais. Interessado em manter a própria realeza, Édipo deseja buscar a solução do problema, porém nunca se declara inocente e tampouco o que o assusta é ter matado o próprio pai: o que ele teme, de fato, é perder o poder. Ao longo da peça, o que está em jogo, portanto, é o poder116.

Édipo reúne características do personagem do tirano, presentes nos textos gregos do fim do século VI a.C. e início do século V a.C.: ele tem um destino irregular, marcado por altos e baixos. É o homem mais miserável a se tornar o mais poderoso. Édipo é aquele que não dá importância às leis, pois transforma sua vontade e ordens nelas, além de apresentar desprezo pela justiça. Entretanto, além do poder, esse personagem é também caracterizado por um certo tipo de saber, um saber superior, mais eficaz em relação aos outros. É considerado um sábio, um portador do saber de experiência, como também do saber autocrático do tirano, que lhe dá capacidade de “governar” sozinho a cidade117.

115 Cf. Idem, op. cit., p. 39. 116

Cf. Idem, op. cit., p. 41-42.

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Foucault afirma que Édipo representa o saber-e-poder, poder-e-saber, pois ele exerce um certo poder tirânico e solitário, porém acaba descobrindo, por sua sede de “governar”, o testemunho dos que viram os fatos. Sabia demais em seu saber solitário e podia demais, por seu poder tirânico. Contudo acabou se tornando inútil, com seu poder solitário, quando todos os fragmentos se uniram. Na união de fragmentos, sua imagem se tornou “monstruosa”.

Esta tragédia, para Foucault, aproxima-se da filosofia de Platão, pois a memória empírica (dos escravos, de quem viu) será por Édipo desvalorizada, em proveito de uma memória mais profunda, essencial (dos deuses, vinda do céu, inteligível). A forma de um saber político ao mesmo tempo privilegiado e exclusivo será desvalorizada, visando-se, por trás da faceta do “Édipo, o sábio, o tirano que sabe”, o sofista, o profissional do poder político e do saber que realmente existia na sociedade ateniense na época de Sófocles. O sofista seria assim o representante do “tirano”, personagem que já descrevemos acima.

Se não havia poder sem saber, tampouco havia poder político sem a detenção de um saber especial. Esta forma de poder-saber, Foucault diz que Dumézil isolou em seus estudos, ao mostrar que a primeira função do poder político era a de “um poder político mágico e religioso118”.

O saber dos deuses, o saber da ação que se pode exercer sobre os deuses ou sobre nós, todo esse saber mágico-religioso está presente na função política. O que aconteceu na origem da sociedade grega, na origem da idade grega do século V, na origem de nossa civilização, foi o desmantelamento desta grande unidade de um poder político que seria ao mesmo tempo um saber119.

Com Sófocles, a Grécia Clássica eclode, e desaparece a união do poder com o saber para que essa sociedade exista. A partir desse período, “o homem do poder será o homem da ignorância120”. Édipo, por saber demais, nada sabia, funcionando como símbolo do homem do “poder, cego, que não sabia e não sabia porque poderia demais121”.

Foucault, em A verdade e as formas jurídicas e, como vimos, também em A Ordem do discurso, novamente aponta o fato de que é com Platão que se inicia um grande mito

118 Cf. Idem, op. cit., p. 49-50. 119 Cf. Idem, op. cit., p. 50. 120

Cf. Idem, op. cit., p. 50.

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ocidental, o de que “há antinomia entre saber e poder”, de que a verdade nunca pertence ao poder político, de que o poder político é cego e o verdadeiro saber é aquele que se atinge quando se está em contato com os deuses, ou quando nos recordamos das coisas: “se há o saber é preciso que ele renuncie ao poder. Onde se encontra saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver poder político122”.

Portanto, é preciso compreender que, por trás de todo saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder e, por isso mesmo, o poder político não está ausente do saber, mas sim é tramado com o saber.

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 39-43)