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A história das práticas penais

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 43-50)

1. A vontade de verdade no discurso jurídico

1.2. As práticas judiciárias e a constituição do sujeito de conhecimento

1.2.3. A história das práticas penais

A tragédia de Édipo configura, portanto, uma espécie de resumo da história do direito grego, um resumo de uma das grandes conquistas da democracia ateniense: a história do processo, por meio do qual o povo se apoderou do direito de julgar, do direito de dizer a verdade, de opor a verdade aos seus próprios senhores, de “julgar aqueles que os governam123”. Trata-se de uma enorme conquista da democracia grega, ocorrida ao longo do século V a.C.: o direito de testemunhar, de opor a verdade ao poder, de opor uma verdade sem poder (dos escravos) a um poder sem verdade (do soberano).

Seguindo o caminho traçado por Foucault em A verdade e as formas jurídicas, é na terceira conferência que os “novos” procedimentos de produção da verdade serão expostos em detalhes.

Desses procedimentos, nos interessa o contexto político do surgimento do inquérito como forma de saber-poder pelo qual a verdade jurídica é produzida. Essa é a forma de gestão da verdade, de poder-saber por excelência, até hoje em uso.

Ao longo do século V a.C., são elaboradas formas racionais da prova e da demonstração, assim como a Filosofia, consolidam-se os sistemas racionais e os científicos, a fim de se descobrir como produzir a verdade. Paralelamente, desenvolve-se a retórica grega, que se traduz como a arte de persuadir, de convencer alguém da verdade do

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Cf. Idem, op. cit., p. 50-51.

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que se diz. E, por fim, desenvolve-se um novo tipo de conhecimento: o conhecimento por testemunho/ inquérito. Essa forma utiliza a lembrança dos fatos, mas inicialmente, foi utilizada para catalogar informações.

Uma série de lutas e contestações políticas resultaram na elaboração de uma forma de descoberta jurídica/judiciária da verdade, um modelo a partir do qual uma série de outros saberes se desenvolveram e caracterizaram o pensamento grego.

A história do nascimento do Inquérito perdeu-se no tempo e apenas foi retomada na Idade Média, o que Foucault considera como seu “segundo nascimento”, intimamente ligado ao desenvolvimento da cultura européia ocidental. Aqui Foucault faz um parêntese sobre algumas características do Direito Germânico. Pensamos ser prudente retomar essas informações, a fim de entendermos alguns aspectos da trajetória histórica das práticas judiciárias.

No sistema germânico, não havia ação pública e nenhum encarregado de fazer acusações contra os indivíduos. Para que houvesse um processo de matéria penal, era necessário um dano e que a vítima desse dano (ou a pessoa diretamente ofendida ou mesmo alguém que pertencesse à família, que resolvesse assumir seu lugar) indicasse seu adversário. A ação penal era caracterizada por uma espécie de duelo, de oposição entre os indivíduos/família/grupos, em que um se defende eoutro acusa, ou seja, onde há apenas dois personagens. Somentes em casos, ditos de “traição” e “homossexualidade”, havia intervenção pública e “a comunidade então intervinha, considerando-se lesada, e exigia, coletivamente, reparação a um indivíduo124”.

A partir do momento em que um indivíduo se declarasse vítima e requisitasse a reparação ao outro, apontado como sendo o adversário, segundo Foucault, a “liquidação judiciária” ocorria como uma espécie de continuação da luta entre os indivíduos, como uma guerra particular - o procedimento penal conformava a ritualização dessa luta entre os indivíduos.

Para Foucault, o Direito Germânico não opõe justiça à guerra, pois não há identificação entre justiça e paz mas, ao contrário

supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre indivíduos e de encadear atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer

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a guerra (...) Entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas matá-lo segundo certas regras, certas formas (...) Esses atos vão ritualizar o gesto de vingança e caracterizá-lo como vingança judiciária. O direito é, portanto, a forma ritual da guerra125.

Nesse sistema, há sempre uma possibilidade de se chegar a um acordo, a uma transação, de estabelecer um pacto. Os adversários recorrem a um árbitro que, com o consentimento das partes, estabelece uma soma em dinheiro. Essa soma constitui o resgate do dano e a vingança, não da “falta” em si. O dinheiro tem como objetivo resgatar o “direito de ter paz”, de escapar à possível vingança de um adversário, de resgatar a vida daquele que cometeu a falta, pondo fim à guerra ritual.

Trata-se de uma “prova de força, que pode terminar em uma transação econômica126”. Um sistema de inquérito, portanto, não intervém num sistema desse tipo, pois não cabe, nesse modelo, um terceiro indivíduo, neutro, procurando a verdade, tentando descobrir quem a formula.

Foucault expõe que, dos séculos V ao X, ocorreram muitos conflitos entre o Direito Germânico (que reinava nos territórios ocupados pelo Império Romano) e o Direito Romano, pois cada vez que a forma estatal começava a ser esboçada, o Direito Romano ganhava força, enquanto que, quando havia dissolução dessa forma, triunfava o Direito Germânico. O Direito Romano caiu no esquecimento por vários séculos, reaparecendo apenas no fim do século XII e ao longo do século XIII. Esse cenário contextualiza o porquê do Direito Feudal se estabelecer nos moldes do Direito Germânico, conforme os estudos de Foucault nos apresenta.

No Direito Feudal, o litígio entre os indivíduos regulamentava-se pelo sistema de prova, não por meio do inquérito ou do estabelecimento da verdade das sociedades gregas ou do Império Romano, tampouco do testemunho. Provava-se a força, a importância de quem dizia, não se provava a verdade. Para estabelecer a inocência do acusado, era necessário reunir doze testemunhas que juravam que ele não teria cometido o ato. Para prestar juramento, porém, eram necessárias relações sociais de parentesco com o acusado, que garantiam sua importância social. Havia, portanto, provas sociais a fim de atestar a

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Cf. Idem, op. cit., p. 56-57.

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importância social do indivíduo, o que mostrava a solidariedade que este poderia obter, a importância do grupo a que pertencia e das pessoas prontas a apoiá-lo.

Outra prova utilizada era a verbal. O acusado deveria responder à acusação que lhe era imputada com um certo número de fórmulas e, qualquer erro que cometesse (gramatical ou troca de palavras) invalidava a fórmula, não havendo assim relação com a verdade do que se pretendia provar. Caso a fórmula fosse invalidada, o resultado seria “perder o processo”, pois se tratava, neste caso, estritamente de um jogo verbal. Caso o acusado fosse um “menor”, uma mulher ou um padre, estes poderiam ser substituídos por outra pessoa que “falaria a fórmula” em seu lugar, seguindo a mesma regra: se errasse, perdia o “processo”. Essa outra pessoa, narra Foucault, mais tarde, na história do direito, seria o advogado, uma figura que surge com a função de pronunciar as fórmulas no lugar do acusado127.

Havia também as provas mágico-religiosas do juramento (se o acusado hesitasse ou não ousasse jurar, perdia-se o “processo”), provas corporais, físicas (ordálios, que submetiam a pessoa a uma espécie de jogo com seu próprio corpo, para constatar se venceria ou fracassaria), que tratam no fundo de saber quem é o mais forte e não quem diz a verdade.

O sistema da provas no Direito Feudal não pretendia pesquisar a verdade, mas estabelecer uma forma binária, na qual se aceita a prova ou renuncia-se a ela. A prova termina por uma vitória ou fracasso, já que não há sentença, pois esta aparece apenas no fim do século XII e início do século XIII, sendo, portanto, um mecanismo automático: a autoridade apenas interviria como testemunha da regularidade do procedimento. A prova visaria também estabelecer quem tem razão, quem é o mais forte, um “operador de direito e não um operador de verdade128”.

Conforme explicita Foucault, surge a figura do “juiz” quando as provas judiciárias passam a requisitar a presença de alguém para constatar se a “luta” se desenvolveu regularmente. Esse “juiz” é o soberano político ou alguém designado com o consentimento dos adversários, mas ele não testemunha sobre a verdade, apenas sobre a regularidade do procedimento.

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Cf. Idem, op. cit., p. 59-60.

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No final do século XII e ao longo do século XIII, esse sistema de práticas judiciárias desaparece. Na segunda metade da Idade Média, as práticas se transformam. Surgem novas práticas, novas formas de justiça e de procedimentos judiciários.

Essas novas formas que surgem nos interessam, visto que a Europa impôs seu modelo ao mundo. Para Foucault, o que foi inventado nessa “reelaboração do Direito” é algo que diz menos em relação ao conteúdo do que às formas e condições de possibilidade do saber. Inventou-se uma “nova” e determinada maneira de saber por meio do inquérito, que ressurge nos séculos XII/XIII, bastante diferente do exemplo do sistema de provas que vimos em Édipo.

Para compreendermos essa “nova” modalidade, precisamos antes entender porque a velha forma de inquérito desaparece. Na sociedade feudal, a circulação de bens era pouco assegurada pelo comércio, mas acabava acontecendo por outros meios, tais como a herança, contestação belicosa/militar/judiciária e extra-judiciária, pela rapina, guerra ou por meio de ocupação de terras. Assim, o litígio judiciário se tornava uma das maneiras de alguém enriquecer. Como a riqueza era o meio pelo qual se exercia tanto a violência quanto o direito de vida e morte sobre os outros indivíduos, “os mais poderosos procuravam controlar os litígios judiciários, impedindo que eles se desenvolvessem espontaneamente entre os indivíduos129”.

Se na Alta Idade Média, a liquidação judiciária realizava-se entre os indivíduos, como se formou algo como um poder judiciário, antes da divisão dos três poderes elaborada por Montesquieu?

Pedia-se ao mais poderoso ou àquele que exercia a soberania não que fizesse justiça, mas que constatasse em função de seus poderes políticos, mágicos e religiosos, a regularidade do procedimento. Não havia poder judiciário autônomo, nem mesmo poder judiciário nas mãos de quem detinha o poder das armas, o poder político. Na medida em que a contestação judiciária assegurava a circulação dos bens, o direito de ordenar e controlar essa contestação judiciária, por ser um meio de acumular riquezas, foi confiscado pelos mais ricos e poderosos130.

Esse processo de acumulação de riqueza e poder das armas, e até mesmo a constituição/concentração de algo como um poder judiciário nas mãos de alguns, ocorreu

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Cf. Idem, op. cit., p. 64.

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na Alta Idade Média e alcançou o que Foucault chama de “amadurecimento” no momento da “formação da primeira grande monarquia medieval, no meio ou final do século XII131”.

Aparecem novidades em relação ao que existia na sociedade feudal e no Direito Romano, como poderemos notar. Surge uma justiça que se impõe aos indivíduos, submetendo-os e retirando deles o direito de resolver regular ou irregularmente seus litígios – agora estes se submeteriam a algo que aparece como poder judiciário e poder político.

A figura do procurador, representante do soberano, do rei ou do senhor, figurará como representante de um poder lesado; o soberano, representante do poder político, substitui a vítima e se apossa dos procedimentos judiciários. A noção de infração aparece como ofensa de um indivíduo à ordem, à lei, à soberania, ao soberano, em substituição à velha noção de dano, como a grande invenção do pensamento medieval.

O soberano será a parte lesada que exige reparação, não mais no sentido do Direito Feudal ou do antigo Direito Germânico - de resgate da própria paz, dando uma satisfação ao adversário -, mas no sentido de reparação da ofensa cometida contra o soberano, contra a lei. Assim, o mecanismo das multas, do confisco de bens, surge permitindo às monarquias ocidentais enriquecerem e fundarem-se a partir da apropriação da justiça e conseqüente aplicação desses mecanismos.

A próxima novidade seria a sentença pois, segundo Foucault, se a principal vítima de uma infração passa a ser o rei, não se poderia mais utilizar os mecanismos de prova, pois o rei ou o procurador - representante do rei - não arriscariam seus bens ou suas vidas a cada vez que um crime fosse praticado132.

Duas eram as opções possíveis para substituir a forma belicosa/feudal que não poderia mais ser aplicada: o flagrante delito e o inquérito. A primeira forma, denominada “flagrante delito”, era uma forma intra-jurídica, baseada no Direito Germânico. Entretanto essa forma não poderia ser utilizada para os crimes em que não se surpreendesse o ato, no momento em que ele estivesse sendo praticado. Essa questão dificultou a possibilidade de se generalizar o uso do flagrante delito no “novo” sistema do Direito que estava nascendo, controlado pela soberania política.

Preferiu-se a segunda opção, “extra-judiciária”, denominada inquérito, como prática administrativa, esquecida ao longo dos séculos X ao XI, mas resgatada pela Igreja

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Cf. Idem, op. cit., p. 65.

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para gerir seus bens. Essa forma possuía algumas características peculiares: o poder político era o personagem essencial e procurava-se chegar à verdade com perguntas; o poder dirige-se aos notáveis para determinar a verdade, sem usar a violência ou tortura para isso, ao contrário do que se vê ao final da peça Édipo-Rei.

A forma ao mesmo tempo religiosa - o bispo inquiria as pessoas e a confissão do culpado poderia interromper a inquisição - e administrativa do inquérito, existiu até o século XII, quando o Estado começa a surgir e a pessoa do soberano passa a deter o poder sobre os procedimentos judiciários. O procurador ocupará o lugar do bispo, estabelecendo, por inquérito, se houve ou não crime, qual aconteceu e quem o cometeu. O inquérito, a forma espiritual, administrativa, religiosa e política pela qual se geriam e controlavam as almas pela igreja, é retomado no procedimento judiciário. É essa a forma que permitia prorrogar o momento do ato, como se ele ainda estivesse ocorrendo.

Diante dessa análise, Foucault conclui que a transformação política, a “nova” estrutura política, os jogos de força e as relações de poder tornaram possível o aparecimento e consequente utilização do inquérito pelo Judiciário. Um modo de gestão, de exercício do poder.

Ao contrário, a partir do momento em que o inquérito se introduz na prática judiciária, traz consigo a importante noção de infração (...) devido a todas implicações religiosas do inquérito, o dano será uma falta moral, quase religiosa (...) Lesar o soberano e cometer um pecado são coisas que começam a se reunir (...) Dessa conjunção ainda não estamos totalmente livres133.

A partir desses inquéritos judiciários, utilizados pelos procuradores do rei, prolifera-se uma série de procedimentos de inquérito, ainda a partir do século XIII. Alguns eram principalmente administrativos ou econômicos e responsáveis pelo aumento do poder real e pela difusão de um saber econômico, de administração dos Estados no fim da Idade Média e nos séculos XVII/XVIII: “Todo o grande movimento cultural que, depois do século XII, começa a preparar o Renascimento, pode ser definido em grande parte como o desenvolvimento, o florescimento do inquérito como forma geral de saber134”.

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Cf. Idem, op. cit., p. 72-74.

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O inquérito é uma forma de saber, Foucault afirma, não um conteúdo. Uma forma de saber-poder, já que é ele quem une um tipo de poder com certos conhecimentos, a fim de gerir politicamente, é o meio pelo qual a instituição judiciária exerce o poder. Trata-se da forma pela qual a cultura ocidental passou a produzir a verdade jurídica.

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 43-50)