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Efeitos dos mecanismos de poder

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 57-63)

1. A vontade de verdade no discurso jurídico

1.2. As práticas judiciárias e a constituição do sujeito de conhecimento

1.2.5. Efeitos dos mecanismos de poder

Na quinta e última conferência de A verdade e as formas jurídicas, vemos como esse movimento esboçado até agora institucionaliza-se e se torna uma forma de relação política interna da sociedade no século XIX.

O panoptismo, que já foi aqui apresentado em seu tríplice aspecto, vigilância- controle-correção, para Foucault, parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder em nossa sociedade167. A sociedade programada por Bentham, e os anos que precederam seu aparecimento, coincidem com a formação de uma certa teoria do Direito Penal, pensada por Beccaria, fundada num legalismo estrito, que subordina o fato de punir a uma lei explícita. Esta teoria se opõe ao panoptismo, pois propõe vigiar o indivíduo pelo o que ele faz e não pelo o que ele é. O foco, portanto, está na natureza

165 Cf. Idem, op. cit., p. 100-101. 166

Cf. Idem, op. cit., p. 102.

167

jurídica do ato, na sua qualificação penal. O panoptismo movido pelo “poder central” que retoma os mecanismos populares de controle, no início do século XIX, ofuscará toda a prática e boa parte dessa teoria do direito penal elaborada na época.

Entretanto, o “panopticon” do século XIX é uma novidade pois, nas instituições que se formam, no mesmo século, é justamente enquanto indivíduo que alguém adentra o hospital, a prisão ou a escola. É por ser um indivíduo, justamente, que este se encontra colocado numa instituição e é esta que constituirá o grupo/coletividade que será vigiada168.

Como já indicamos, essas instituições desejam fixar os indivíduos, não excluí-los: a fábrica fixa os indivíduos a um aparelho de produção, a escola os fixa a um aparelho de transmissão do saber, o hospital psiquiátrico, a casa de correção e a prisão fixam os indivíduos a um aparelho de correção.

O efeito primário dessas instituições é, por meio de seus procedimentos, funcionar como um aparelho de normalização dos homens, sempre em função de uma determinada norma, incluindo por exclusão: “a reclusão do século XVIII, que tem por função essencial a exclusão dos marginais ou o reforço da marginalidade, e o sequestro do século XIX que tem por finalidade a inclusão e a normalização169”. Assim,

num regime disciplinar a individualização é ‘descendente’ à medida que o poder se torna mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados (...) por medidas comparativas que têm a “norma” como referência, e não por genealogias que dão os ancestrais como ponto de referência; por ‘desvios’, mais que por proezas. Num sistema de disciplina, a criança é mais individualizada que o adulto (...) o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo a individualidade do homem memorável pela do homem calculável (...) foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo170.

Se o panoptismo consagra a sociedade disciplinar, a comunidade e a vida pública não são mais os seus elementos principais. Agora estão os indivíduos de um lado, o Estado de outro e as relações reguladas, aumentando-se garantias estatais e aperfeiçoando-as. Está

168 Cf. Idem, op. cit., p. 112-113. 169

Cf. Idem, op. cit., p. 114.

170

instaurada a sociedade da vigilância. Essa lógica é inversa à lógica do espetáculo conduzido pelo soberano.

Há ainda a utopia, como chamará Foucault, de que nessa sociedade vigiada os mecanismos penais funcionariam perfeitamente por meio da lei ideal, representando igualitariamente cada “cidadão”171. A utopia apoiava-se na crença de que as práticas de ilegalidades seriam impedidas, desde a origem, de acontecerem.

A tríade panoptismo-disciplina-normalização traduz a nova investida do poder sobre os corpos no século XIX. A prisão se impõe porque é a forma concentrada, simbólica, de todas essas instituições de sequestros criadas no século XIX. Ela é uma imagem da sociedade, porque inocenta as outras instituições de serem prisões, já que ela só vale para quem cometeu uma falta: “A melhor prova de que vocês não estão na prisão é que eu existo como instituição particular, separada das outras, destinada apenas àqueles que cometeram uma falta contra a lei172”. Porém, Foucault adverte, desde seu nascimento conheciam-se os inconvenientes de sua implementação.

O modo de instalação do capitalismo, no século XIX, obrigou a elaboração de um conjunto de técnicas políticas (de poder) pelas quais o homem encontrar-se-ia ligado a algo como o trabalho, ligação política, sintética, operada pelo poder (não há sobre-lucro sem sub-poder). Trata-se de,

(...) uma trama de poder político microscópico, capilar, se tenha estabelecido fixando os homens ao aparelho de produção (...) não se trata de um aparelho de Estado, nem da classe no poder; mas do conjunto de pequenos poderes, de pequenas instituições situadas em um nível mais baixo173.

Este sub-poder, condição do sobre-lucro, para se estabelecer e começar a funcionar, provoca o nascimento de uma série de saberes, do indivíduo, da normalização, saber

171

Cf. FONSECA. Márcio Alves. Michel Foucault e o Direito, op. cit., p. 29: “Assim, neste plano das práticas, duas novas perspectivas se definem. Primeiro, a perspectiva de uma implicação entre normalização e direito. Trata-se de mostrar aqui que, em suas implicações com os mecanismos de normalização, o direito não escapa à trama das relações entre os campos do saber, os tipos de normatividade e as formas de subjetivação que caracterizam o presente. Nesta segunda perspectiva, direito e norma não se excluem, ao contrário, apelam-se mutuamente, definindo-se assim uma outra imagem do direito em Foucault. Essa nova figura do direito, em vez de o descrever como algo oposto à norma, procura mostrá-lo como um ‘veículo’ da normalização (...) e ainda, como um dos instrumentos das disciplinas e das ‘artes de governar’”.

172

Cf, FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas, op. cit., p. 123.

173

corretivo, que culminam no nascimento das ciências do homem e do homem como objeto da ciência174. Voltamos, curiosamente, ao livro A palavra e as coisas.

O enredamento do poder tramado conjuntamente ao saber coloca o homem no centro da análise na modernidade. Para Foucault, esses poderes e saberes se encontram firmemente enraizados, tanto na existência dos homens quanto nas relações de produção pois, para existirem relações de produção características das sociedades capitalistas, são necessárias não apenas determinações econômicas, como também relações de poder e formas de funcionamento do saber. Saber e poder, portanto, não se sobrepõem às relações de produção, mas estão enraizados profundamente no que as constitui. Por isso, também o que definimos como ideologia precisa ser revisto, além de, principalmente, identificarmos o inquérito e o exame como formas de saber-poder175.

Estamos falando de um cenário pós-Revolução Francesa, no qual o direito positivo, na linha dos contratualistas - final do século XVIII e início do século XIX - define que somente poderá ser punido aquele cujo ato ofendeu o pacto social e, portanto, que com ele rompeu. A resposta ao ato deveria buscar a correção da “alma” do sujeito criminoso. pois

(...) se torna natural e aceitável ser punido. (...) E sem dúvida é pelo lado da teoria do contrato que se deve procurar a resposta. Mas deve-se também e talvez sobretudo fazer a pergunta contrária: como se fez para que as pessoas aceitassem o poder de punir, ou simplesmente, sendo punidos, tolerassem sê-lo. A teoria do contrato só pode responder a isto pela ficção de um sujeito jurídico que dá aos outros o poder de exercer sobre ele o poder que ele próprio detém sobre eles. É bem provável que o grande continuum carcerário, que faz se relacionarem o poder da disciplina e o da lei, e se estende, sem ruptura das menores coerções, até a grande detenção penal, tenha constituído a dupla técnica real e imediatamente material daquela cessão quiméria do direito de punir176.

Fonseca aponta para o fato de que, nessas análises da proposta teórica de reforma humanista do Direito Penal, Focault deseja mostrar “como, por trás de tais discursos e disputas, estaria um interesse em uma justiça mais ágil e desembaraçada, em face das transformações significativas nos domínios econômico, político e social da segunda

174 Cf. Idem, op. cit., p. 125. 175

Cf. Idem, op. cit., p. 126.

176

metade do século XVIII177”. Estava em jogo uma nova “economia política” do poder de punir.

Nesse contexto, a punição deve ser entendida como um jogo de interesses e forças que atuam no cerne de uma transformação no regime de ilegalismos, uma nova forma de gestão das ilegalidades178. A justiça penal, segundo Foucault, foi produzida pela burguesia, como um instrumento estratégico nas divisões que ela desejava introduzir na sociedade179.

Apresentadas as noções de discurso e poder em Foucault, bem como as análises realizadas pelo filósofo em torno das práticas penais, no próximo capítulo, passaremos a “problematizar” os dois discursos de modelos de práticas judiciárias relativas a “responsabilização juvenil”: o “Direito Penal Juvenil” e a “Justiça Restaurativa”.

Judith Revel afirma que “problematizar”, para Foucault, é um exercício crítico do pensamento oposto à ideia de uma pesquisa metódica da “solução”, porque a tarefa da filosofia não seria resolver ou reformar, mas instaurar uma “distância crítica”. Não desejamos buscar soluções, tampouco rotular um (ou os dois) modelo (s) como certo (s) ou errado (s), mas discutir os modelos identificados como saber-poder emergente na atualidade, acerca do tema.

Como vimos, o objeto de estudo deste trabalho encontra-se "enredado" por procedimentos de controle do discurso tanto internos, como a “vontade de verdade”, quanto externos, como a “autoria” e, “rituais”, já que tratamos de possíveis grupos “doutrinários” em formação.

Se o discurso é o lugar no qual o saber-poder se articula, devemos concebê-lo estrategicamente. Seus efeitos variam de acordo com quem o fala, a posição de poder que se ocupa e o contexto institucional no qual se encontra180. A estratégia também se opera

177

Cf. FONSECA. Márcio Alves. Michel Foucault e o Direito, op. cit., p. 129.

178

Cf. Idem, op. cit., p. 132: “A partir da idéia de que um certo número de ilegalidades efetivamente praticadas, num determinado momento, teriam seu lugar no interior dos processos econômicos e sociais presentes em um grupo qualquer, sendo portanto, aceitas ou mesmo incentivadas, e que em um outro contexto, as mesmas ilegalidades poderiam deixar de ser toleradas e passariam a ser perseguidas, Foucault pensa que, entre o que é estabelecido pela lei e as ilegalidades que são praticadas, não se interpõe um sistema punitivo absolutamente neutro: o que ocorre é que nem toda prática ilegal deve ser punida e, no sentido inverso e ao mesmo tempo proporcional, nem toda lei deve ser respeitada”.

179 Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, op. cit., p. 56; 61: “Por isso eu era contra o tribunal

popular como forma solene, sintética, destinada a retomar todas as formas de luta anti-judiciária. Seria reutilizar uma forma demais carregada de ideologia imposta pela burguesia, com as divisões que ela acarreta entre proletariado e plebe não proletarizada”.

180

Cf. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010 p.111.

no nível dos deslocamentos e reutilizações de fórmulas dos discursos para atender a diferentes objetivos.

É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta181.

O investimento na estrutura do poder político, a partir do século XIII, fortaleceu o modo do Direito como lugar de expressão das correlações de força em nossa sociedade. Entretanto, se os discursos se encontram vinculados às relações de saber–poder, precisamos deslocar o ponto de vista. Precisamos substituir o privilégio da lei pelo objetivo; o privilégio da proibição pelo da eficácia tática; o privilégio da soberania “pela análise de um campo múltiplo e móvel das correlações de força, onde se produzem efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis de dominação. O modelo estratégico, ao invés do modelo do Direito182”.

Passemos ao próximo capítulo.

181

Cf. Idem, op. cit., p. 111-112.

182

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 57-63)