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Alinhar o que não é linear: o caminho percorrido

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 79-84)

2. A Responsabilização Juvenil

2.2. Alinhar o que não é linear: o caminho percorrido

Assim como definimos no título deste item, criamos uma forma própria de organizar as informações que possuíamos para podermos realizar a travessia: de um “bloco de discursos” para chegarmos aos efeitos de saber-poder por eles produzidos. Abaixo detalharemos o caminho percorrido para realizar essa tarefa.

246 Cf. ARANTES, Esther Maria de M. Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina da Proteção Integral é

Direito Penal Juvenil? In: Zamora, A (org.) Para além das grades – elementos para a transformação do sistema socioeducativo. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2009, p.72.

I) REFERÊNCIA TEÓRICA:

A filosofia nos auxiliou mais precisamente com a possibilidade oferecida pelos escritos de Michel Foucault, a “pensar diferentemente o direito247”, a sairmos do julgamento entre polaridades (bom ou ruim, certo ou errado) e pensar sobre um outro aspecto da questão. Ao destacar a existência de uma “vontade de verdade” que rege o poder e, portanto, o saber produzido, Foucault nos auxilia a pensar: qual o objetivo em modificar a lei se a “vontade de verdade” permanecer a mesma? Essa “vontade de verdade” relaciona-se com os efeitos de saber-poder produzidos pelos discursos?

No primeiro capítulo aprofundamos essas noções para, a partir da perspectiva trazida pelos trabalhos do filósofo, discutirmos, no segundo capítulo, os discursos de dois modelos de práticas judiciárias relacionadas à “responsabilização juvenil”.

II) RECORTE: O OBJETO DE ESTUDO

Como vimos pontuando, alguns desses discursos já permeavam nosso cotidiano, mas precisavam ser sistematizados para atender ao objetivo deste trabalho. Para isso, reunimos esse “bloco de discursos” a partir do mapeamento de alguns textos sobre os procedimentos judiciários referentes à “responsabilização juvenil”, cuja seleção contou com um principal recorte: o momento da apuração do ato infracional.

Restringimos o foco de análise para esse momento performático da justiça, pois isso nos permitiria olhar para a descrição, em cada modelo, do regime de produção da verdade jurídica (inquérito ou confissão) e o modo de responsabilização (sentença ou acordo) adotado. Esse recorte nos possibilitaria discutir como cada modelo se propõe a desenvolver o papel de apurar a autoria do fato, com vistas à implementação da “doutrina da proteção integral”.

Outros recortes também foram necessários a fim de ampararem nosso recorte principal. No que se refere a uma delimitação temporal, selecionamos textos contemporâneos, publicados entre os anos de 1990 a 2011, posteriores à aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não pretendíamos abarcar toda a produção existente

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sobre o tema, pois esta constitui um conjunto híbrido248 e muito extenso. Por isso, do universo de textos encontrados, selecionamos apenas aqueles escritos por juristas os quais julgamos representativos do pensamento da Justiça Juvenil no Brasil. Relatórios produzidos por órgãos do governo também foram selecionados. Incluímos também relatórios produzidos por entidades atuantes na defesa técnica direta ou indireta dos adolescentes. Refletir sobre os efeitos das práticas relatadas mostrou-se importante para nos auxiliar a mapear os regimes de verdade que estão em jogo no território.

Focar as produções de juristas também objetivou identificar a possibilidade de formação de “correntes de doutrina jurídica249” em torno do tema, no Brasil.

Selecionamos os materiais que anunciassem modos de interpretar o sistema de justiça juvenil previsto no ECA, especificamente o processo de apuração do ato infracional. Parte desse material nos foi indicado por profissionais de diversos setores da área da Infância e Juventude, recomendados por serem suas fontes de pesquisa. Outros foram selecionados por meio de pesquisas na ferramenta de busca Google, em biblioteca da universidade PUC-SP250 e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais251 (IBCCRIM), utilizando as seguintes palavras-chaves: Sistema de Justiça Juvenil, ato infracional, Estatuto da Criança e do Adolescente, Direito Penal Juvenil, Justiça Restaurativa, responsabilização.

Ponderamos que, por reconhecermos a importância das modificações propostas pela “doutrina da proteção integral” no Brasil e, por consequência, do advento da “etapa garantista” – sem prejuízo da análise crítica desse contexto -, selecionamos apenas os textos que apontavam a manutenção dessa doutrina orientando o Direito nessa área.

Limitamo-nos às produções nacionais, pois desejamos analisar o contexto brasileiro. As exceções foram os textos do Defensa de Niños y Niñas Internacional (DNI)

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As referências bibliográficas eram muito diversificadas. Encontramos produções sobre o Sistema de Justiça Juvenil tanto na área do Direito, quanto na Psicologia, Serviço Social, Ciências Sociais, Educação, entre outras. Para um exemplo da amplitude do tema, no Estado de São Paulo, vide: BRETAN, MARIA EMILIA A N. Os múltiplos olhares sobre o adolescente e o ato infracional: análises e reflexões sobre teses e dissertações da Usp e da Puc-sp (1990-2006). Dissertação de mestrado em Direito, USP, 2008, que analisou pelo menos 100 trabalhos sobre o tema.

249

Conforme a definição do termo doutrina, encontrada em LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. 3ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 276: “(...) chama-se doutrina à tese sustentada por juristas de renome sobre um ponto controverso”.

250 A PUC-SP foi selecionada por ser a Universidade brasileira pioneira na inclusão de disciplina específica

para os “Direitos da Criança e Adolescente”, na graduação e na pós-graduação em Direito.

251

Instituto atuante em nível nacional e internacional, mantenedor de uma biblioteca constantemente atualizada, especializada em ciências criminais.

na América Latina e de dois argentinos, Emilio Garcia Méndez e Mary Beloff. Selecionamos textos do DNI devido a sua relação com a Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (ANCED), instituição reconhecida pela destacada atuação na área da Infância e Juventude no país. A ANCED é membro associada do DNI, representando-o no Brasil. Já os juristas argentinos foram selecionados por serem pioneiros na análise do ECA e seu sistema de responsabilização. Méndez, inclusive, foi o primeiro a apontar a “crise de implementação e interpretação252” enfrentada pelo Estatuto, descrita no item anterior. Oficial do Fundo das Nações Unidas para a Infância –UNICEF-, Mendéz foi o responsável pela implementação da “doutrina da proteção integral” junto aos países da América Latina. No caso de Mary Belloff253, na condição de pesquisadora e formadora (lecionou o primeiro curso de Justiça Juvenil na Universidade de Buenos Aires e da América Latina; professora da Faculdade de Derecho y Ciencias Sociales da mesma Universidade e organizadora da “Colección Criminologias”), produz sistematizações importantes sobre a legislação da infância e adolescência na América Latina.

III) A ANÁLISE DOS TEXTOS

Ao reunir o resultado desses recortes, identificamos três categorias de discursos recorrentes na amostra. Desse modo, organizamos o resultado desses recortes em três quadros, cuja representação gráfica consta apresentada no ANEXO I. São eles: quadro A – “Socioeducação”; quadro B – “Direito Penal Juvenil”; quadro C – “Justiça Restaurativa”.

Em cada um destes quadros, destacamos numa coluna o nome do “autor”254, o Estado da federação ao qual pertence e a instituição de onde ele fala. Ao nomearmos a instituição, definimos como o “autor” se relaciona com o sistema de Justiça Juvenil. Na segunda coluna, apontamos o título do texto e a data de sua publicação. Na terceira coluna, especificamos a abordagem geral do texto.

252

Cf. MÉNDEZ, G. Emilio. Evolução histórica do direito da infância e da juventude. Em: ILANUD, ABMP, SEDH, UNFPA (org.). Justiça, adolescente, ato infracional: socioeducação e responsabilização, op. cit, p.15.

253

Currículo disponível em: http://www.law.yale.edu/intellectuallife/Beloff.htm, acesso em 26.01.2012.

254

A separação dos textos em quadros objetivou identificarmos as abordagens dos textos e não o posicionamento do “autor”, pois encontramos textos que não se referiam especificamente nem ao “Direito Penal Juvenil”, nem à “Justiça Restaurativa”. Por isso, agrupamos esses textos, por exclusão, sob o nome de “Socioeducação”.

Nos grupos formados por cada quadro, percebemos a formação do que chamaremos de “correntes de doutrina jurídica”, em discussão atualmente no Brasil. O agrupamento dos textos sob cada uma dessas “correntes doutrinárias”, ou “modelos de práticas judiciárias”, como preferimos chamar, não é estanque, tampouco pretende rotular seus “autores”. Esse modo de organização não é reconhecido, tampouco formalizado, mas apenas um recurso metodológico. Provavelmente um outro pesquisador poderia identificar outras questões e agrupar os textos de modo diferente. Por isso, alguns dos “autores” podem aparecer representados em mais de um modelo. Isso ocorre, possivelmente, devido ao território tensionado no qual os modelos se localizam e que, por isso, entendemos estar ainda em construção.

Essa tarefa foi realizada com o propósito de favorecer uma análise dos efeitos que cada modelo produz, devido as suas nuances e peculiaridades, já que nosso foco de trabalho é a noção de “vontade de verdade” que rege os discursos e não o posicionamento dos “autores”.

Entendemos, também, que nenhuma dessas produções está “fora” do sistema de justiça juvenil ou pretende negá-lo completamente. Ao contrário, esse recurso metodológico nos auxiliou a discutir as diferentes ênfases/nuances presentes em cada modelo. Para nós, a prática judiciária permite leituras, ênfases, inflexões próprias do contexto no qual cada um dos modelos se encontra, afetando-os de alguma forma.

A partir da divisão do material coletado em modelos, precisávamos definir quais textos, dentre os selecionados, nos auxiliariam a interrogar os efeitos de poder que os modelos produziram/produzem. Se o levantamento bibliográfico inicial incluiu questões mais amplas do que interessava à nossa proposta de estudo para este trabalho, era preciso limitar o “corpus” de análise. Foi necessário, ainda, encontrar alguns critérios de escolha desse “corpus”, dada a extensão do material e nossa problematização sobre a noção de “vontade de verdade”.

Selecionamos apenas os textos, tanto do modelo DPJ quanto do modelo JR, que tratassem principalmente de procedimentos de apuração da autoria do ato infracional, por ser o momento da constituição de uma verdade.

Limitamos em três o número de textos para discutir cada modelo, escolhidos por descreverem o funcionamento do momento de apuração do ato infracional. Não nos preocupamos com a descrição exclusivamente técnica desse ato, mas com alguma forma de relato desse processo que se inicia com a identificação do possível autor (inquérito ou confissão) até a conclusão do procedimento que culmina na resposta judiciária (sentença ou acordo). O quadro-D: “corpus” de análise, também representado graficamente no ANEXO I, esboça essa seleção.

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 79-84)