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As práticas, o conhecimento e o sujeito

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 35-39)

1. A vontade de verdade no discurso jurídico

1.2. As práticas judiciárias e a constituição do sujeito de conhecimento

1.2.1. As práticas, o conhecimento e o sujeito

Em A verdade e as formas jurídicas notamos que, para realizar a tarefa à qual se propõe, Foucault define três etapas que nortearão o desenvolvimento das conferências.

A primeira etapa é voltada para a formação de um certo saber que nasceu das práticas sociais, no século XIX, do controle e da vigilância, e os efeitos por elas produzidos, já destacados aqui: aparecem formas novas de sujeito e de sujeito de conhecimento, além de novas técnicas, novos objetos e novos conceitos93.

O segundo eixo é denominado “análise dos discursos”, que não mais será feita sob seu aspecto linguístico, como ocorre na ênfase arqueológica, descrevendo as leis e as regularidades internas da linguagem. A análise passa a olhar para o discurso como um jogo estratégico/polêmico: “conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível, e polêmicos e estratégicos em outro94”.

Já o terceiro eixo consiste numa “reelaboração da teoria do sujeito” e este é o momento no qual os dois primeiros eixos convergem. Foucault define que, desde Descartes, a psicanálise foi a prática e a teoria que reavaliou a prioridade conferida ao

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Cf. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito, op. cit., p. 200: “Este poder sobre a vida teria podido se organizar concretamente, partir do século XVIII, segundo dois eixos principais. O primeiro deles teria se centrado sobre o corpo dos indivíduos, o corpo capturado como objeto de intervenção, o corpo como máquina. Foi o eixo das disciplinas, entendidas como uma ‘anátomo-política do corpo humano’. O segundo eixo, formado um pouco mais tarde, centrou-se no corpo como espécie, o corpo traspassado pela mecânica da vida e suporte de processos biológicos, tais como os nascimentos, a procriação, as mortes, as doenças, a longevidade. Foi o eixo do biopoder, ou dos mecanismos reguladores da vida, entendidos como ‘biopolítica da população’”.

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Cf. Idem, op. cit., p. 7-8.

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sujeito pelo pensamento ocidental. A psicanálise, segundo Foucault, colocou em xeque a posição absoluta conferida ao sujeito, como núcleo central de todo conhecimento.

Voltemos, então, às práticas judiciárias.

Suspeitamos que as práticas judiciárias, no tema do direito da infância e juventude como aqui abordado, produzem efeitos semelhantes aos identificados por Foucault quanto às práticas penais. Isso ocorre porque são práticas que também pretendem responder a um ato considerado na atualidade como “desviante”, “criminoso”.

As práticas judiciárias são formas que foram se modificando ao longo da história e podem ser traduzidas como o modo pelo qual “se arbitram danos e responsabilidades entre os homens95”. São práticas que definem, na história ocidental, a maneira de julgar, de impor uma obrigação de reparar ou punir os homens pelas ações por eles praticadas.

Ao reconstituir historicamente essas formas jurídicas no campo do direito penal, Foucault demonstra como se constituiu um determinado número de formas de verdade. Ao diagnosticar essas formas, ele cita o inquérito - forma bem característica de verdade em nossas sociedades ainda hoje –, originado na Idade Média e utilizado como forma de pesquisa da verdade, no interior da ordem jurídica. Outro exemplo citado pelo autor é o exame, que surge no final do século XIX, a partir de problemas jurídicos, judiciários, penais. A prática do exame permitiria o surgimento da Psicologia, Psicopatologia, Sociologia, Criminologia e Psicanálise, em ligação direta com certo número de controles políticos e sociais no momento de formação e estabilização da sociedade capitalista96.

Para compreender as abordagens de Foucault nesse livro, precisamos entender em que ele se alicerça: em Nietzsche. Nele, Foucault encontra um tipo de discurso no qual a análise histórica de um certo tipo de saber não admite a preexistência do sujeito de conhecimento97. As problematizações de Nietzsche lhe serão úteis, não para realizar uma teoria geral do conhecimento, mas para abordar o problema da formação de um certo número de domínios de saber, a partir de relações de força e de relações políticas na sociedade98. E, se pretendemos realizar uma análise dos discursos jurídicos em torno da responsabilização do adolescente autor de ato infracional, não haveria caminho melhor.

95 Cf. Idem, op. cit., p.11. 96

Cf. Idem, op. cit., p. 12.

97 Cf. Idem, op. cit., p. 13.

98 Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, op. cit., p. 53 - cabe retomarmos o princípio da

especificidade, o de não transformar o discurso num jogo de significações prévias e sim concebê-lo como uma “violência que fazemos às coisas”.

Nietzsche, segundo Foucault, usou o termo “invenção” do conhecimento, para não usar “origem”, quando escreveu a Genealogia da Moral99. Nesse mesmo livro, Nietzsche trata da “grande usina que produz o ideal”, assumindo que o ideal foi, ele também, fabricado, inventado por uma série de pequenos mecanismos. O conhecimento não está em “absoluto inscrito na natureza humana”, “não constitui o mais antigo instinto do homem100”, mas é “simplesmente resultado do jogo, do afrontamento, da junção, da luta e do compromisso entre os instintos101”.

É porque os instintos se encontram, se batem e chegam ao término de suas batalhas a um compromisso que o conhecimento se produz. O conhecimento não é da mesma natureza que os instintos, não é seu refinamento, é como efeito dos instintos102.

Ocorre assim, com Nietzsche, uma ruptura com o que até então havia sido a tradição filosófica ocidental103, pois não se estabelece nenhuma semelhança entre conhecimento e o que seria necessário conhecer, entre conhecimento e natureza humana. Encontramos, ao contrário, entre instinto e conhecimento, uma relação de luta, de dominação, de subserviência (não de continuidade), da mesma forma que entre o conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode haver relação de continuidade natural, somente de violência, de dominação, de poder e de força, de violação das coisas a conhecer104.

Para Foucault, há a possibilidade, dentro dessa análise, de duas rupturas com a tradição filosófica ocidental. Uma está entre o conhecimento e as coisas, porque até então, para Descartes, a existência de Deus garante ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo, e de ser, portanto, um conhecimento fundado em verdade e não indefinidamente um erro, uma ilusão/arbitrariedade. Nietzsche inaugura a ruptura entre a teoria do conhecimento e a teologia, pois se não existe mais relação entre conhecimento e

99 Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas, op. cit., p. 16 – Nietzsche faz essa afirmação

em pleno kantismo, época na qual era inadmissível crer que o tempo e o espaço não eram formas de conhecimento, mas sim “rochas primitivas”, sobre as quais o conhecimento se fixava.

100 Cf. Idem, op. cit., p. 16. 101

Cf. Idem, op. cit., p. 16.

102 Cf. Idem, op. cit., p. 16. 103 Cf. Idem, op. cit., p. 17. 104

Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, op. cit., p. 53 - Novamente referência ao princípio da especificidade.

as coisas a conhecer, se a relação é arbitrária, de poder e violência, a existência de Deus é dispensável no centro do sistema de conhecimento.

A segunda ruptura reside no fato de que desaparece o sujeito em sua unidade e soberania, porque a relação entre conhecimento e instinto diz respeito à ruptura, às relações de dominação e subserviência, relações de poder. O que garantiria a existência da unidade do sujeito humano era a continuidade que vai do desejo ao conhecer, do instinto ao saber, do corpo à verdade105. Segundo Foucault, não há, para Nietzsche, no conhecimento, uma adequação ao objeto, mas uma relação de distância e dominação; não há unificação, mas um sistema precário de poder.

No livro da Gaia Ciência, com o subtítulo “Que significa conhecer?”, Nietzsche avança na análise da “invenção” do conhecimento. Para ele, “compreender” é o resultado de um jogo, de uma composição entre rir, deplorar e detestar. São maneiras de não se aproximar do objeto, de não se identificar com ele, mas de conservá-lo à distância, de se proteger dele pelo riso, desvalorizá-lo pela deploração, afastá-lo e eventualmente destruí-lo pelo ódio106. Nietzsche entende que esses impulsos produzem conhecimento porque lutaram entre si, se confrontaram. Se quisermos saber o que é o conhecimento, portanto, devemos

apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder. E é somente nessas reações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento107.

Desse modo, na mesma obra de Nietzsche, Foucault encontra um modelo para a análise histórica do que ele chamou “política da verdade”, a qual implica que o conhecimento é resultado histórico e pontual de condições que não estão na sua ordem, estão na ordem do resultado, do acontecimento, do efeito108. O caráter perspectivo do conhecimento não deriva da natureza humana, mas de uma certa relação estratégica na qual

105 Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas, op. cit., p. 19. 106 Cf. Idem, op. cit., p. 21-22.

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Cf. Idem, op. cit., p. 23.

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o homem se encontra, e na qual assimila e esquematiza as coisas sem nenhum fundamento em verdade109.

Abordar Nietzsche, portanto, permitiu a Foucault realizar as análises presentes no texto, restituindo, não uma teoria geral do conhecimento, mas a questão da formação de “certos domínios de saber a partir de relações de forças e de relações políticas na sociedade110”.

Em nosso estudo das práticas judiciárias na área dos direitos da infância e da juventude, olharemos para as condições políticas e econômicas, não como impostas ao sujeito de conhecimento, mas como o solo no qual se originaram tanto o sujeito e os domínios de saber quanto as relações de verdade.

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 35-39)