• Nenhum resultado encontrado

Transformações políticas, novos poderes em jogo

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 50-57)

1. A vontade de verdade no discurso jurídico

1.2. As práticas judiciárias e a constituição do sujeito de conhecimento

1.2.4. Transformações políticas, novos poderes em jogo

Explicitados os mecanismos e efeitos da estatização da justiça penal na Idade Média, Foucault, na quarta conferência de A verdade e as formas jurídicas, situa-nos no final do século XVIII e início do século XIX, momento em que se constitui a sociedade moderna. Antes de entrarmos nos detalhes dessa conferência, alguns comentários preliminares se fazem necessários.

Márcio Alves da Fonseca indica que, no curso La société punitive, lecionado no

College de France em 1973135, Michel Foucault estuda “a função punitiva presente nas sociedades em geral enquanto uma expressão privilegiada da implicação poder-saber136”.

O símbolo mais evidente dessa função punitiva nas sociedades ocidentais modernas seria a prisão137. Fonseca indica que é a partir das problematizações em torno dessa função punitiva que começam as análises de Foucault sobre o poder disciplinar.

Conforme Fonseca, no início desse mesmo curso, Foucault se pergunta se seria possível classificarmos as sociedades de acordo com a forma pela qual controlam “aqueles que tentam escapar ao poder, aqueles que quebram ou contornam a lei138”. Essa hipótese se

135

Lembramos que esse curso foi ministrado no ano da realização das conferências que ocorreram no Brasil e receberam o título de A verdade e as formas jurídicas.

136 Cf. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito, op. cit., p. 160.

137 Cf. Idem, op. cit., p. 160 e 170-171: “uma forma de penalidade cuja disfunção teria sido denunciada desde

o seu surgimento (...) Simultaneamente ao surgimento da prisão, emergem as críticas que a denunciavam como um fracasso penal. Uma série dessas críticas, realizadas entre 1820 e 1845, é recuperada por Foucault: as prisões não diminuem a taxa de criminalidade, ainda que seu número tivesse aumentado e sua forma fosse transformada, a quantidade de crimes e de criminosos permaneceria estável; a detenção provoca a reincidência, sendo possível se constatar esse dado pelo número crescente de condenados que são antigos detentos; a prisão fabrica delinqüentes, pelo tipo de existência que impõe aos detentos, expostos constantemente à corrupção, à exploração do trabalho penal (...) a prisão também fabrica indiretamente a delinqüência, por fazer a família do detento cair na miséria”. Para maiores detalhes, também ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. RJ: Editora Vozes, 2008, p. 221-223.

138

refere ao problema da punição. Para Foucault, é na prisão que os mecanismos de inclusão e controle aprofundam sua complexidade.

Nessas mesmas análises, Foucault afirma sua concepção positiva do poder, um poder que incita e produz por meio dos mecanismos de inclusão, inerentes às formas punitivas. No curso La société punitive, o poder disciplinar aparece como a problematização central pois, por meio da prisão, Foucault estudará as formas punitivas e como elas lhe possibilitam analisar as relações de poder 139.

Essas transformações que se operam na modernidade, descritas tanto no curso quanto nas conferências IV e V de A verdade e as formas jurídicas, constituem algo como uma “sociedade disciplinar140”, para Foucault. Seguindo uma abordagem histórica, nas conferências IV e V de A verdade e as formas jurídicas, Foucault analisará essa mesma sociedade.

“Sociedade disciplinar” é o nome que Foucault utiliza para caracterizar as sociedades ocidentais modernas, nas quais se formou uma rede de instituições a submeter os indivíduos a um controle permanente: um modo de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente o indivíduo e sua conduta141. Esse controle visa fixar os indivíduos aos aparelhos produtivos que funcionam a serviço do modo capitalista de produção e não excluí-los142. Sob o ponto de vista judiciário, transformações ocorreram no que diz respeito à reorganização do sistema penal, em diferentes partes do mundo.

Uma dessas transformações relaciona-se com a reelaboração teórica da lei penal, encontrada em pensadores como Beccaria, Bentham, Brissot e em legisladores, que contribuíram para a elaboração do primeiro e segundo códigos penais franceses na época da revolução francesa. Tal reelaboração teórica é acompanhada por alguns princípios destacados abaixo.

O primeiro deles, o qual denominamos hoje princípio da legalidade, define que só haverá punição diante de um fato que a lei defina como repreensível. Se não estiver descrito na lei, não é crime. Assim

O princípio fundamental do sistema teórico da lei penal, definido por esses autores, é que o crime, no sentido penal do termo, ou, mais

139 Cf. Idem, op. cit., p. 162.

140 Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas, op. cit., p. 79. 141

Cf. MUCHAIL, Salma T. Foucault simplesmente, op. cit., p. 61.

142

tecnicamente, a infração não deve ter mais nenhuma relação com a falta moral ou religiosa. A falta é uma infração à lei natural, à lei religiosa, à lei moral. O crime ou a infração penal é uma ruptura com a lei, lei civil explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade pelo lado legislativo do poder político. Para que haja infração é preciso haver um poder político, uma lei e que essa lei tenha sido efetivamente formulada. Antes de a lei existir não pode haver infração143.

O segundo princípio, de acordo com Foucault, define que uma lei penal deve simplesmente representar o que é útil para a sociedade, definindo como repreensível o que for nocivo. O terceiro princípio define crime como algo que danifica a sociedade, que causa um incômodo ao coletivo. Trata-se de um dano social e não se parece com o pecado ou com a falta. Há, portanto, uma nova definição de criminoso: aquele que danifica, perturba a sociedade, aquele que rompeu com o pacto social144.

Para esses teóricos, a lei penal não pode prescrever uma vingança ou a redenção de um pecado mas, ao contrário, deve apenas permitir a reparação da perturbação causada à sociedade. Repara-se apagando o dano, reparando o mal ou, de modo preventivo, impedindo que males semelhantes possam ser cometidos contra o corpo social novamente145.

Diante desses princípios, quatro tipos de punições são descritas: a) A deportação: segundo Foucault, encontramos nos textos de Beccaria/Bentham, entre outros, a ideia de que, ao romper o pacto social, a pessoa se “auto-coloca” fora do espaço da legalidade e, por isso, esta seria a punição ideal; b) Isolamento/humilhação: publicava-se a falta, mostrava-se a pessoa ao público, para suscitar uma reação de aversão/desprezo/condenação por parte do coletivo social; c) Reparação do dano social/ trabalho forçado: forçar a pessoa a uma atividade útil ao Estado ou à sociedade, a fim de compensar o dano causado; d) Pena de talião, a reciprocidade entre crime e pena, com o objetivo de que o indivíduo não tenha mais vontade de repetir o ato danoso.

Esses projetos de penalidade foram substituídos pela pena de prisão, a qual foi mencionada por Beccaria de maneira marginal. A prática se desviou rapidamente desses

143 Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas, op. cit., p. 80. 144

Cf. Idem, op. cit., p. 81.

145

princípios teóricos, pois a prisão não pertencia ao projeto teórico da reforma da penalidade no século XVIII mas, no início do século XIX, ela se instala sem justificativa teórica146.

Não só a prisão não estava prevista no século XVIII, como também não estava previsto a legislação penal sofrer mudanças drásticas, comparadas ao que estava estabelecido na teoria. A penalidade que se desenvolve no século XIX propõe-se cada vez menos a visar o que é socialmente útil, procurando, cada vez mais, ajustar o indivíduo, objetivando “menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e comportamento dos indivíduos147”. Toda penalidade do século XIX passa a ser um controle no nível do que os indivíduos podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer148.

Surge, também, nesse mesmo período, a noção de “periculosidade”, que considera o individuo ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam149. A fim de assegurar o controle dos indivíduos, pois agora não se trata de reagir penalmente aos seus atos, mas de controlar os comportamentos, a instituição penal não poderá mais estarsob o comando exclusivo do poder judiciário, um poder autônomo.

Essa necessidade, para Foucault, contesta a separação de poderes atribuída a Montesquieu - poderes judiciário, legislativo e executivo. Qual a necessidade de separação dos poderes se, para o controle penal dos indivíduos, o poder judiciário por si só não é mais suficiente? Poderes laterais, tais como a polícia para a vigilância, instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas e pedagógicas, aparecem para auxiliar a justiça nessa tarefa de controlar a essência dos indivíduos. Estamos no período da “ortopedia social”, ou do “controle social”, pois o objetivo é enquadrar os indivíduos durante sua existência, com a função de controlar sua “periculosidade”. Toda essa rede de poder desempenha uma função que lhe foi atribuída pela própria justiça: a de corrigir os indivíduos150.

146 Cf. Idem, op. cit., p. 84. 147 Cf. Idem, op. cit., p. 85. 148

Cf. FOUCAULT, Michel. A poeira e a nuvem. Estratégia, poder-saber. Coleção Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 324: “Depois de Beccaria, os reformadores elaboraram programas punitivos caracterizados por sua variedade, sua preocupação de corrigir, a publicidade dos castigos, a correspondência cuidadosa entre a natureza do delito e a forma da pena – toda uma arte de punir inspirada pela Ideologia”.

149

Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas, op. cit., p. 85.

150

Foucault classifica essa sociedade de disciplinar, em oposição às sociedades propriamente penais anteriores. Na sociedade disciplinar, um esquema de vigilância por meio do “panopticon” foi previsto por Bentham, uma forma de arquitetura que permitia a vigilância total do indivíduo e que valeria para escolas, hospitais, prisões, casas de correção e fábricas151 - o “panopticon” é a forma reinante nessa sociedade.

O panoptismo é uma forma de poder que repousa não mais sobre um inquérito, mas sobre algo totalmente diferente, que eu chamaria de exame (...) Não se trata de reconstruir um acontecimento152, mas de algo, ou antes, de alguém que se deve vigiar sem interrupção e totalmente. Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder (...) e que, enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber153.

Este saber se constitui em torno da norma, em torno do que é ou não normal, do que é correto ou não, do que se deve ou não fazer. Em oposição ao saber de inquérito, já apresentado, que pretendia re-atualizar os fatos por meio do testemunho, surge um saber de exame, de vigilância, organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência. O exame se traduz numa renovada forma de saber-poder pois, por meio dele se observam, se organizam e se arquivam informações sobre os indivíduos fixados a um contexto disciplinar. Fonseca explicita que “a transformação da individualidade num ‘caso’ (registrado arquivado), fazendo-a entrar num campo documentário, permite a elaboração de saberes constituídos a partir das constantes e variáveis reconhecidas nos conjuntos das individualidades154”. Esse esquema de observação permitirá entrar em cena o que chamamos de Ciências Humanas, tais como a Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, entre outras155.

Para Foucault, portanto, o panóptico de Bentham é uma forma de arquitetura mas, antes disso, é uma forma do poder ser exercido. É a forma reinante nessas sociedades, pois as estruturas de vigilância são difundidas por todo o contexto social. Nesse sentido, o

151

Cf. Idem, op. cit., p. 86-87.

152 Como ocorre na prática do inquérito. 153 Cf. Idem, op. cit., p. 87-88.

154

Cf. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito, op. cit., p. 178-179.

155

sistema penal, o sistema judiciário e a prisão são peças dessas estruturas de vigilância e as ciências humanas, seus efeitos156.

Em Vigiar e Punir, notamos três práticas de punir, três tecnologias de poder, que conviveram simultaneamente ao final do século XVIII157. O “quadro” abaixo representa essas três maneiras de organizar o poder de punir.

Quem propõe? O que apóia

a punição? Qual forma de punição? Qual técnica utiliza? Objetivo

1) SOBERANO Força Marca Cerimônia/

Suplício

Inimigo Vencido - Corpo supliciado

2) REFORMADORES Corpo Social Sinal

codificado

Representação Sujeitos de direitos em via de requalificação – manipula-se a alma 3) PENINTENCIÁRIA Aparelho administrativo Treinamento do corpo

Exercício Indivíduo submetido à coerção imediata - Corpo treinado

Pensando nos apontamentos acima, por que então o modelo penitenciário se impôs? Esquece-se o conjunto teórico das reflexões sobre o direito penal - as lições de Beccaria -, abafado por uma prática penal baseada no indivíduo, autoritária e estatal, com a função de corrigí-lo158. Para contextualizar a resposta, Foucault recorre a dois exemplos, um, inglês e outro, francês, de mecanismos de controle permanente do comportamento dos indivíduos existentes, nas nações correspondentes, no século XVIII. Esses mecanismos surgiram, primeiro para responder a algumas necessidades e, conforme ganharam importância, se espalharam e se impuseram como práticas penais159.

156 Cf. FOUCAULT, Michel. 1973 – Sobre o Internamento Penitenciário. Estratégia, poder-saber. Coleção

Ditos e Escritos IV, op. cit., p. 72.

157 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão, op. cit., p. 108. 158

Cf. Idem, op. cit., p. 107: “O que se engaja no aparecimento da prisão é a institucionalização do poder de punir, ou mais precisamente: o poder de punir (com o objetivo estratégico que lhe foi dado no fim do século XVIII, a redução dos ilegalismos populares) será mais bem realizado escondendo-se sob uma função social geral, na ‘cidade punitiva’, ou investindo-se numa situação coercitiva, no local fechado do ‘reformatório’?”

159

O exemplo inglês trata da formação e proliferação, no século XVIII, de diferentes formatos de grupos de autodefesa, como uma tentativa de fazer reinar a ordem, mas também como forma de escapar ao poder político, cuja atuação, por meio da sua legislação penal, era considerada aterrorizadora e sanguinária. “Trata-se, portanto, mais de grupos de autodefesa contra o direito do que de grupos de vigilância efetiva. Esse reforço da penalidade autônoma era uma maneira de escapar à penalidade estatal160”. Entretanto logo inicia-se uma estatização desses grupos de controle, com o objetivo de obter do poder político novas leis a ratificarem esse esforço moral. Ocorre, segundo Foucault, um deslocamento da moralidade à penalidade, tornando o controle moral um instrumento de poder161.

Já na França, tratava-se de um forte aparelho monárquico, apoiado num duplo instrumento: um instrumento judiciário clássico, os parlamentares/as cortes, e um instrumento para-judiciário, a polícia. Essa polícia possuía alguns aspectos institucionais como as “lettre-de-cachet162”. Tratava-se de uma forma de regular a moral cotidiana da vida social, um controle exercido de baixo, pela própria comunidade sobre alguém, uma forma de assegurar seu próprio policiamento e sua própria ordem163. Conforme explicita Foucault, a forma prisão situa-se nessa prática extra-penal, policial, para-judiciária da “lettre-de-cachet”, da utilização do poder real para realizar um controle espontâneo dos grupos164.

O aparecimento de uma penalidade que procura corrigir os indivíduos por meio de seu aprisionamento não pertence, portanto, ao Direito ou às teorias jurídicas do crime propostas pelos reformadores, em que Beccaria era um dos expoentes. Essa é uma ideia policial, retomada de uma prática de controle social dos grupos para escapar ao direito penal (exemplo inglês) e da reutilização, por grupos sociais, dos instrumentos estatais estabelecidos pelo poder real no século XVII para controlar a aristocracia, a burguesia e os amotinadores (exemplo francês).

160 Cf. Idem, op. cit., p. 92-93. 161

Cf. Idem, op. cit., p. 94-95.

162 Cf. Idem, op. cit., p. 98: “Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse alguém não era

enforcado, nem marcado, nem tinha que pagar multa. Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente (...) Em geral ele determinava que alguém deveria ficar retido até nova ordem, e a nova ordem só intervinha quando a pessoa que requisitara a lettre-de-cachet afirmasse que o indivíduo aprisionado tinha se corrigido. Esta ideia de aprisionar para corrigir, de conservar a pessoa presa até que se corrija, essa ideia paradoxal, bizarra, sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano tem origem precisamente nessa prática”.

163

Cf. idem, op. cit., p. 95-97.

164

Além dessa apropriação dos mecanismos de controle dos grupos sociais pelos que detinham o poder, devemos também levar em conta a nova forma assumida pelo modo de produção capitalista:

E o nascimento do capitalismo ou a transformação e aceleração da instalação do capitalismo vai se traduzir neste novo modo da fortuna se investir materialmente (...) instaurar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa nova forma material de fortuna (...) Em outras palavras esta é a razão porque esse controle com funcionamento de base quase popular foi retomado de cima em determinado momento165.

Das transformações econômicas e políticas que se processavam, novos controles sociais no fim do séc. XVIII emergiram. O poder, a classe industrial, deram à esses controles de origem popular ou semi-popular, uma versão autoritária e estatal.

Esses fatores apresentados contribuíram para a formação do que Foucault denomina, “sociedade disciplinar166”.

No documento Adriana Padua Borghi.pdf (páginas 50-57)