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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Adriana Padua Borghi

A Justiça Restaurativa e o Direito Penal Juvenil a partir de reflexões sobre o Direito em Michel Foucault.

Mestrado em Direito

São Paulo

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Adriana Padua Borghi

A Justiça Restaurativa e o Direito Penal Juvenil a partir de reflexões sobre o Direito em Michel Foucault.

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE

EM DIREITO, sob a orientação do Prof.

Doutor Márcio Alves da Fonseca.

São Paulo

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A minha mãe e ao meu pai.

Aos adolescentes, meninos e meninas, cujas vidas cruzaram meu caminho e me

provocaram outros olhares.

Ao amor à vida e à liberdade de podermos ser o que desejarmos ser.

(5)

Agradecimentos

Esse trabalho se concretiza graças ao afeto.

Aos meus pais, minha mãe Lúcia e meu pai Ari, agradeço-os pelo amor e apoio

incondicionais, sem os quais eu não saberia por onde seguir. Mesmo quando meus sonhos

lhes soavam mais estranhos, o incentivo surgiu naturalmente de uma confiança profunda

de que daria certo. Os admiro profundamente, meus mestres queridos, exemplos de luta

pela vida e de amor às pessoas.

Ao meu irmão, Rafael, agradeço pela companhia e amizade, meu eterno parceiro,

sua facilidade de amar e de me ensinar a compartilhar meu mundo, faz toda a diferença na

minha vida.

Ao meu orientador, prof. Márcio Alves da Fonseca, agradeço pelo dizer verdadeiro,

por acreditar e não desistir. Com generosidade, me encorajou a me superar e a desbravar o

desconhecido. Um mundo precioso se abriu, obrigada.

Aos meus avós, em nome de minha avó Luiza, pela sabedoria doce. Aos meus

familiares, agradeço por vibrarem intensamente, transbordando minha vida de amor. À tia

Malu que, mesmo com as provações que a vida lhe apresentou, tanto contribuiu e apoiou.

Ao tio Zé, pelo exemplo íntegro.

Aos meus amigos e amigas pela presença sempre impecável e indispensável. Irmãs

e irmãos escolhidos com uma flechada certeira, me fazem querer ser melhor. À Ana

Gabriela M. Braga, honro profundamente nossa parceria e cumplicidade, minha estrela

guia. Às amigas Gabriela Gramgow e Ana Lúcia Catão, pelo acolhimento e cuidado. Ao

Guinho, pela compreensão e por nos permitir experimentar o amor.

Ao Instituto Ser Humano, gratidão por estar em família. À Cacá, pelas risadas e

doçura.

À Profa. Maria Cristina Gonçalves Vicentin que me acompanha desde a graduação,

agradeço por toda paciência e amorosidade com as quais acolhe minhas angústias e me

incentiva a continuar. Mais do que uma inspiração pelo modo como ela se coloca no

mundo, uma amiga, cuja presença honro profundamente.

À extinta Associação Olha o Menino, agradeço pela possibilidade de experimentar

(6)

plantou no meu jardim, especialmente, à Melisanda Trentin, Daniel Adolpho D. Assis,

Raul Nin, Flavia Palma, Mariana Raupp, Ana Paula Santos, Marcelo Nastari, Aline Matos

e Cristina B. Salvador por simplesmente serem quem vocês são.

À Fabiane Hack agradeço por orientar meus primeiros passos como advogada, com

coragem e graça, parceira com a qual compartilho sonhos de um outro mundo possível.

Mesmo longe, estamos perto.

Ao Flávio Frasseto, por não desistir e por nos inspirar, ainda.

Ao grupo de pesquisa sobre Justiça Restaurativa, coordenado pelas Profas. Maria

Cristina G. Vicentin e Miriam Debieux Rosa, agradeço pela acolhida e pela coragem de

resistir e por não desistir.

À Profa. Salma Tannus Muchail, pela graça e delicadeza com a qual nos inspira,

pela coragem de enfrentar com doçura. Aos queridos amigos do grupo de estudos Michel

Foucault, agradeço, especialmente, ao Alessandro de Lima Francisco, Flávia D'urso, Ivan

Sampaio, Nádia Vitorino, Claudia Martins, Marta Souza, Roberta Sendacz e Edélcio

Otaviani pela fartura com a qual se disponibilizam para estar presente, trocando,

contribuindo, amparando.

À profa. Annita Costa e ao grupo do atelier de escrita ligado ao Núcleo de Estudos

e Pesquisas da Subjetividade, da PUC-SP, coordenado por ela, agradeço por

compartilharem a habilidade de lidar com as palavras e deixá-las nos transportar. Agradeço

o acolhimento, incentivos e provocações para arriscar.

Ao Rafael, da secretaria de pós-Graduação em Direito, e à Gisele, da secretaria de

pós-Graduação em Filosofia, ambas da PUC-SP, por torcerem, apoiarem e pela graciosa

disponibilidade.

E, por todas essas e tantas outras relações que compartilho nessa vida, eu agradeço

(7)

Nome: Adriana Padua Borghi

Título: A Justiça Restaurativa e o Direito Penal Juvenil a partir de reflexões sobre o Direito em Michel Foucault.

Resumo

O presente trabalho pretende discutir criticamente os “discursos” de dois modelos

depráticas judiciárias”: o “Direito Penal Juvenil” e a “Justiça Restaurativa”. Realizamos essa tarefa especialmente à luz da noção de “vontade de verdade”, presente nas análises de

Michel Foucault. Para isso, utilizamos principalmente os seus escritos A ordem do discurso e A verdade e as formas jurídicas. Devido à problematização acerca da noção de “vontade de verdade”, discutimos os dois modelos jurídicos, tendo em vista o que ambos propõem

quanto ao momento da apuração da autoria de “ato infracional” praticado por

adolescente(s). No Brasil, a partir de 1988, a doutrina da proteção integral foi incorporada

pela legislação no que diz respeito aos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, pautando

alterações estruturais em torno do tema, em comparação ao que vigorava anteriormente.

Essa doutrina adotada conferiu as bases principiológicas que passaram a orientar o

funcionamento do sistema de justiça juvenil previsto pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente (1990). Esse sistema traduz-se num conjunto de regras para o poder judiciário

buscar a verdade sobre a autoria e promover a consequente “responsabilização” do

adolescente envolvido num ato infracional. Esse é o contexto no qual localizamos os dois

modelos de práticas judiciárias relacionadas à “responsabilização juvenil” (o “Direito

Penal Juvenil” e a “Justiça Restaurativa”). Tais modelos emergem com o objetivo de

implementar a doutrina da proteção integral.

(8)

Name: Adriana Padua Borghi

Title: Restorative Justice and Juvenile Criminal Law from reflexions about the law in Michel Foucault.

Abstract

This study aims to critically discuss the “discourses” of two models of “judicial

practices”: the “Juvenile Criminal Law” and the “Restorative Justice”. We perform this

task in light of the notion of “will to truth” present in the analyses of Michel Foucault,

primarily using Foucault’s writings, L’ordre du discours and La vérité et les formes juridiques. Due to the problematization of the notion of “will to truth”, we discuss the two legal models in view of what they propose in regards to the moment of inquiry into the

authorship of an offense practiced by adolescents. In Brazil, the Comprehensive Protection

Doctrine, formally incorporated in the legislation in respect to the Rights of Children and

Adolescents in 1988, guided structural changes around this issue. This adopted doctrine

provided the basis which now guides the operations of the Juvenile Justice System

provided by the Statute of the Child and Adolescent (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) in 1990. This system, formed by a set of rules, informs and guides the judiciary to seek the truth about authorship and promote the resulting “responsibility” of

the adolescent involved in an offense. This is the context in which we place the two models

of judicial practices related to juvenile “responsibility” (the “Juvenile Criminal Law” and

the “Restorative Justice”). These models emerge in order to implement the Comprehensive

Protection Doctrine.

(9)

SUMÁRIO

Introdução...10

1. A vontade de verdade no discurso jurídico...16

1.1. O discurso e o poder...17

1.2. As práticas judiciárias e a constituição do sujeito de conhecimento...31

1.2.1. As práticas, o conhecimento e o sujeito...34

1.2.2. Entre o discursivo e o não discursivo: o saber-poder...38

1.2.3. A história das práticas penais...42

1.2.4. Transformações políticas, novos poderes em jogo...49

1.2.5. Efeitos dos mecanismos de poder...56

2. A Responsabilização Juvenil ...62

2.1. O Sistema de Justiça Juvenil: lutas, batalhas, tensões e resistências...63

2.2. Alinhar o que não é linear: o caminho percorrido...78

2.3. Percorrido o caminho, atravessar: analisando os discursos...83

2.3.1. A “Socioeducação”...84

2.3.2. O panorama atual...89

2.3.3. O “Direito Penal Juvenil”...92

2.3.4. A “Justiça Restaurativa”...100

(10)

Considerações Finais: Caminhos a percorrer. As redes de poder e as condições de

possibilidades para o discurso. Nesse cenário, é possível resistir? ...119

Anexo I Quadro A – Socioeducação...124

Quadro B - Direito Penal Juvenil...127

Quadro C – Justiça Restaurativa...130

Quadro D – “Corpus” de Análise...132

Anexo II Procedimentos Judiciários de Responsabilização Juvenil...133

(11)

Introdução

O presente trabalho é um estudo que pretende discutir criticamente os “discursos”

de dois modelos depráticas judiciárias”1 em debate no Brasil: o “Direito Penal Juvenil” e a “Justiça Restaurativa”. Realizaremos essa tarefa especialmente à luz da noção de

“vontade de verdade”, presente nas análises de Michel Foucault. Para isso, nos cercaremos

principalmente2 dos seus escritos A ordem do discurso3e A verdade e as formas jurídicas4.

Primeiramente situemos nosso tema. Este trabalho situa-se num provável não-lugar

pois, com o auxílio da filosofia, adentraremos o cenário do Direito da Infância e Juventude,

especificamente no que diz respeito ao adolescente5 autor de ato considerado como uma

infração perante o código penal e leis correlatas6. Nesse contexto, dois modelos de práticas

judiciárias, acima enunciados, emergem relacionados à “responsabilização juvenil”.

Buscaremos discutir esses dois modelos, auxiliados pela filosofia.

Entendemos por “responsabilização juvenil” os procedimentos judiciários, descritos

na lei, que objetivam responder à prática de uma conduta considerada um ato infracional,

realizado por um ou mais adolescentes. Esses procedimentos judiciários pretendem

“responsabilizar” o autor do ato, e não “puní-lo”, por isso, falamos em “responsabilização

juvenil”.

1 Por usarmos como referência Michel Foucault, tomaremos os termos “discursos” e “práticas judiciárias” de

acordo com os usos que o filósofo confere a eles. Por “discurso”, Foucault entende o saber produzido como verdade num determinado âmbito do conhecimento e por “práticas judiciárias”, o modo de funcionamento do direito em determinada época.

2 Os livros de Michel Foucault Vigiar e Punir, História da sexualidade I: A vontade de saber, Em defesa da

Sociedade e Segurança Território e População serão utilizados subsidiariamente, apoiando o estudo. 3

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2009. 4

FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau editora, 2005.

5 Este trabalho adotará constantemente o termo adolescente em lugar do termo criança. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define que a responsabilização pelo ato infracional praticado ocorre somente para o adolescente, pessoa com idade a partir dos 12 anos completos até os 18 anos incompletos e, excepcionalmente, até os 21 anos incompletos. Para as crianças, são previstas medidas denominadas “protetivas”, de acordo com o artigo 105 do ECA.

6 O adolescente (pessoa entre 12 anos completos e 18 anos incompletos) é passível de ser responsabilizado

(12)

Pensamos em uma perspectiva de análise e não de denúncia, buscando os efeitos

produzidos por esses dois modelos no território7 do qual emergiram. Para realizar essa

tarefa, baseamo-nos no papel do intelectual na prática militante, ao qual se refere Michel

Foucault. Trata-se da tarefa de olhar para o presente com o objetivo de mapear o território,

localizando nele os efeitos produzidos pelas relações entre saber-poder-verdade.

Nesse cenário, os saberes do Direito da Infância e Juventude, do Direito Penal e da

Filosofia se transpassam. Esperamos que essa condição de um não-lugar nos conceda a

possibilidade de ampliar nossas reflexões.

Abaixo, indicaremos como se estrutura o trabalho.

O primeiro capítulo se estrutura em duas partes. Na primeira parte, estudaremos a

aula inaugural, proferida no Collège de France, A ordem do discurso8e na segunda parte, as conferências compiladas em A verdade e as formas jurídicas9.

A leitura de A ordem do discurso tem por objetivo introduzir esse momento da produção do pensador no qual ele realiza uma análise sobre o discurso em sentido amplo,

este compreendido como condição de possibilidade para as práticas. Nesse texto, Foucault

supõe que em toda sociedade a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada

e redistribuída por um determinado número de procedimentos com o objetivo de dominar o

seu caráter de “acontecimento aleatório”, controlar aquilo que ele possa expressar com

espontaneidade10.

Para explicitar essa relação oculta no discurso e, especificamente, a “vontade de

verdade” que ali reside e que não se percebe facilmente, Foucault define grupos de

procedimentos que objetivam, justamente, dominar o caráter de “acontecimento aleatório"

do discurso a fim de que ele seja usado com alguma “intencionalidade11”. Portanto, o

objetivo dessa primeira parte do capítulo é localizar a noção de “vontade de verdade” no

pensamento do filósofo.

Posteriormente, na segunda parte do capítulo, a leitura de A verdade e as formas jurídicas nos auxiliará a expor como Foucault formula a noção de “saber-poder” e a noção

7 Neste estudo compreendemos por território o contexto no qual estão em jogo as correlações de força, os

jogos de poder.

8 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, op. cit.

9 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, op. cit. 10

Cf. Idem, A ordem do discurso, op. cit., p. 8-9. 11

(13)

de “vontade de verdade” que permitem o funcionamento do poder. Ele realiza essa tarefa

por meio da história das práticas judiciárias.

Nesse percurso, ao sinalizar as mudanças pelas quais passam essas práticas, o

filósofo aponta as racionalidades que elas traduzem e que orientam o funcionamento do

judiciário em cada período histórico. Essas práticas estão entrelaçadas ao saber-poder por

meio dos discursos que as fundamentam. Essa leitura, portanto, nos auxiliará a pensar de

que modo os jogos de verdade nos discursos jurídicos, que possibilitam identificar o

“desviante”, fazem de uma prática ou de um discurso um “lugar” de poder.

No segundo capítulo, localizaremos, por meio de um breve resgate histórico, o

contexto da adoção da “doutrina da proteção integral” no Brasil. Essa tarefa nos permitiu

expor as tensões que compõem o cenário político do qual emergiram os modelos de

práticas judiciárias que desejamos discutir. Em seguida, apresentamos os caminhos

percorridos que nos permitiram analisá-los.

O advento da Constituição Federal (CF) de 1988 e a conseqüente aprovação do

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990 marcaram a adoção da “doutrina da

proteção integral” no Brasil. Essa doutrina revogou a doutrina anterior (a doutrina da

situação irregular), vigente no país de 1919 a 1988, pautando uma série de modificações

em regras jurídico-sociais a respeito da infância e da juventude no país.

A adoção da “doutrina da proteção integral” pela legislação brasileira, passa a

orientar o funcionamento do sistema de justiça juvenil previsto pelo ECA. Esse sistema

prescreve os procedimentos a serem adotados pelo poder judiciário para promover a

“responsabilização” do adolescente autor de ato infracional12. Neste estudo, partimos do

pressuposto de que o adolescente deve ser responsabilizado pelo seu ato considerado como

infração pelo atual sistema de justiça juvenil. Esse parece ser o pressuposto consagrado

pelo ECA e compartilhado pelos diversos discursos que interpretam os procedimentos

judiciários relativos à “responsabilização juvenil”.

12 Adotamos essa forma de nomear, pois não desejamos ignorar que a noção de infração é uma construção

(14)

O nosso objeto de estudo reside, especificamente, nas diversas formas que a

responsabilização assume por meio dos modelos de práticas judiciárias relacionadas a esse

sistema em um de seus aspectos: a apuração do ato infracional.

Nossa análise se concentrará no momento da apuração do ato infracional, pois é

nesse ato que se busca a verdade jurídica. Esse recorte nos possibilitará problematizar a

noção de “vontade de verdade”, tal como desenvolvida nos escritos A ordem do discurso e

A verdade e as formas jurídicas de Michel Foucault.

Para realizar essa tarefa, realizamos um mapeamento bibliográfico de textos

produzidos entre 1990 e 2011, por juristas. Desse mapeamento, identificamos três modelos

que emergem na tentativa de solucionar uma tensão que se coloca no território, quanto à

implementação da “doutrina da proteção integral” e, por conseqüência, do ECA, no tocante

ao sistema de justiça juvenil. Essa tensão se relaciona com a existência de práticas

judiciárias que adotam a antiga doutrina, a da situação irregular, ainda hoje.

Entendemos que esses modelos emergiram no país para interpretar o sistema de

justiça juvenil, buscando a implementação da “doutrina da proteção integral”. São eles: a

“Socioeducação”, o “Direito Penal Juvenil” (DPJ) e a “Justiça Restaurativa” (JR).

Consideramos os modelos como possíveis “correntes de doutrina jurídica” em

formação, pois tratam de teses sustentadas por juristas, reconhecidos no território, que

versam sobre um ponto controverso: o caminho para se interpretar o sistema de justiça

juvenil vigente, no que diz respeito à apuração do ato infracional praticado por

adolescentes, com vistas à implementação da doutrina da proteção integral.

Os modelos DPJ e JR apresentam distintas propostas de práticas judiciárias.

Propõem modos distintos de funcionamento do Direito no tocante a apuração do ato

infracional, por isso o interesse em discutí-los. O modelo “Socioeducação” não será

analisado, apenas caracterizado, pois entendemos que sua proposta de prática judiciária

guarda semelhanças com o modelo DPJ. Selecionamos, portanto, os modelos DPJ e JR a

fim de visualizarmos os efeitos de saber-poder produzidos por suas diferentes propostas.

No que diz respeito ao procedimento judiciário adotado para apurar o ato

infracional, o modelo da “Socioeducação” apresenta semelhanças se comparado ao modelo

“Direito Penal Juvenil” (DPJ). Ambos os modelos se alicerçam na teoria do “garantismo

(15)

Desse modo, quanto ao momento de apuração do ato infracional não há diferença

entre os dois modelos e, por isso, decidimos discutir o DPJ por ser um modelo que vem

ganhando forte expressão no território.

Os escritos de Flávio Frasseto, um dos juristas de referência no país para as

questões da Infância e Juventude, pauta o Direito da Infância e Juventude como uma área

do Direito a ser estudado/aprofundado por suas especificidades. Para o jurista, o ECA

fundamenta-se em uma “teoria geral do garantismo13”, a fim de incorporar o novo Direito

da Criança ao restante do ordenamento jurídico brasileiro, também fundado nesta mesma

base. Essa teoria prevê que o sistema jurídico deva promover o respeito e a observância

dos direitos fundamentais da pessoa humana14.

Frasseto afirma, quanto aos conflitos de natureza criminal, que o ECA funda-se no

“garantismo penal15”, teoria que advém da “teoria geral do garantismo”. De acordo com

esse jurista, o “garantismo penal” define como única função legítima do Direito Penal a

preservação de garantias do acusado, não admitindo a supressão de direitos e garantias

individuais em nome da “defesa social” ou da “ordem pública”. O sistema penal, para essa

teoria, portanto, deve ser regido por critérios racionais e laicos16, prevendo a punição do

autor do ato infracional não por quem ele é, mas porque ele fez. Sua ação (ato) consiste

numa violação de norma que possui previsão de resposta estatal.

Os dois modelos selecionados, DPJ e JR, emergem trazendo ao território um debate

principiológico que os estrutura de modos diferentes e, por isso, o interesse em discutí-los:

enquanto o modelo JR pretende devolver aos indivíduos a autonomia na resolução dos

13

Cf. FRASSETO, Flávio A. Execução da Medida Sócioeducativa de internação: primeiras linhas de uma crítica garantista.Em: Justiça, Adolescente e Ato Infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006, p. 306 - O jurista define essa “teoria geral do garantismo” como: “teoria política fundadora de uma vertente contemporânea da Filosofia do Direito (...) Suas raízes históricas assentam-se no iluminismo contratualista e nas declarações de direitos que antecederam e sucederam no século XVIII, a Revolução Francesa, consagrando ideais humanistas de racionalidade, igualdade, liberdade e solidariedade”.

14 Cf. Idem, op.cit., p. 306.

15

Luigi Ferrajoli é o principal teórico, no livro: Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

16

(16)

conflitos17, o DPJ entende que o Poder Judiciário deve continuar com o monopólio da

questão18.

Buscaremos explicitar como tais modelos relacionam-se com o problema da busca

da verdade judiciária. Para tanto, procuramos indicar a “vontade de verdade” que reside em

cada um deles, para tentar especificar a quais “formas” de poder, a quais intenções de agir,

os mesmos respondem. Procuramos adentrar as relações de poder e a relação deste com os

saberes produzidos pelos mesmos enquanto modelos teóricos, que vêm sendo produzidos

em termos de estratégia e táticas de poder. Isso nos permitiu verificar quais dispositivos

estão em jogo no cenário apresentado.

Ao final, buscamos refletir sobre um possível espaço para a resistência presente nos

dois modelos estudados.

17 O modelo JR propõe a resolução dos conflitos de natureza criminal buscando recuperar um modo de

controle social exercido por comunidades ditas tradicionais, como, por exemplo, as maoris, indígenas, aborígines, etc. Desse modo, as práticas de JR variam conforme as ferramentas que serão recuperadas ou adaptadas.

18

(17)

1.

A vontade de verdade no discurso jurídico

Pretendemos compreender, neste capítulo, a “vontade de verdade” e sua relação

com os discursos jurídicos, por meio dos textos de Michel Foucault, especialmente A ordem do discurso e A verdade e as formas jurídicas.

Discutiremos os discursos de modelos de práticas judiciárias relacionados à

responsabilização do adolescente que adentra ao sistema de justiça juvenil, sob a acusação

de ter praticado um ato infracional. São discursos intimamente articulados com as práticas

sociais e com as escolhas políticas da atualidade que produzem subjetividade enquanto

formas de intervenções de poder. Por serem práticas de poder transpassadas por práticas

discursivas, suspeitamos que tais discursos produzam subjetividade por meio da

normalização de condutas.

Michel Foucault entende os discursos como um saber produzido como verdade num

determinado âmbito do conhecimento. Estudamos o âmbito do conhecimento jurídico, no

qual encontramos uma “verdade” implicada, estabelecida conforme as regras do discurso.

Essa “verdade” se estabelece no jogo entre saber e poder. Esse jogo, por sua vez, constitui

os discursos e as práticas judiciárias.

Nos escritos19 de Foucault, a análise do discurso entrelaça-se com as práticas em

geral. Portanto, os discursos que discutimos relacionam-se com as práticas judiciárias,

entendidas como o modo do funcionamento do Direito em determinada época. Para

visualizarmos esse quadro, focamos nos mecanismos que contribuem para a produção da

verdade jurídica na atualidade, nessa área específica.

Para Foucault, o discurso desempenha uma função dentro “de um sistema

estratégico onde o poder está implicado e pelo qual o poder funciona20”. O poder funciona

por meio do discurso, não sendo aquilo que o origina. O discurso é um dos elementos

constitutivos da rede de relações estabelecidas de modo estratégico, ou seja, um dos

19 Cf. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002, p.19 - Márcio Alves da Fonseca frisa que o termo “a obra” não pode ser utilizado no sentido tradicional, pois não encontramos uma linearidade ou sistematicidade de pensamento em Foucault. Há, claro, uma coerência em seu pensamento, mas ao contrário de tentar “fundar uma obra” parâmetro para outras construções discursivas, Foucault busca realizar um diagnóstico das condições nas quais surgem os diversos sistemas de pensamentos. Por isso daremos preferência aos termos “escritos de” ou “textos de” ou “produções”.

20

(18)

elementos do dispositivo21 de poder. Os discursos são elementos nas relações de força e

podem existir discursos diferentes ou contraditórios no interior de uma mesma estratégia.

Desse modo, será fundamental abordarmos o tema do poder, conforme Foucault o

apresenta, desvinculado da ideia de poder como repressão, dominação ou ideologia, bem

como acompanhar sua descrição dos mecanismos de saber/poder que o conduzem a

identificar processos de objetivação e subjetivação22 do individuo moderno23.

Para entender toda a maquinaria que movimenta os discursos jurídicos - e

vice-versa - precisamos localizar a formulação das noções acima explicitadas. As noções de

discurso e poder em Foucault.

1.1. O discurso e o poder

A fim de dar cabo da tarefa a que nos propusemos, primeiramente adentraremos o

conteúdo da aula inaugural ministrada por Foucault ao ocupar a cátedra “História dos

Sistemas de Pensamento”, no Collège de France, em 1970, e posteriormente publicada com o título de A Ordem do discurso. Esse texto marca o momento no qual Foucault aponta para a ampliação das análises que estariam presentes em seus futuros trabalhos,

estreitando assim as relações entre discurso e poder.

21

Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2004, p. 244: “Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (...) entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante”.

22

Cf. VEYNE, Paul. Foucault, o pensamento a pessoa. Tradução Luís Lima. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2009, p. 109-110: “Porque, longe de ser soberano, o livre sujeito é constituído, processo que Foucault baptizou de subjectivação: o sujeito não é ‘natural’, é modelado em cada época pelo dispositivo e pelos discursos do momento, pelas reacções da sua liberdade individual e pelas suas eventuais ‘estetizações’, das quais tornaremos a falar (...) ao saber verdadeiro e ao poder soma-se a constituição do sujeito humano como devendo comportar-se eticamente desta ou daquela maneira, como fiel vassalo, como cidadão, etc (...) Engendrado pelo dispositivo da sua época, o sujeito não é soberano mas sim filho de seu tempo; não nos podemos tornar num sujeito qualquer num momento qualquer”.

23

(19)

Em A Ordem do discurso, as práticas discursivas aparecem “transpassadas por uma série de procedimentos de controle, de delimitação e de distribuição dos discursos que são

imediatamente sociais e políticos24”, ou seja, transpassadas por procedimentos de natureza

não-discursiva. Nesse momento, Foucault passa a afirmar que as práticas de poder são

constituídas pelas práticas discursivas e não apenas transpassadas por elas. Em Vigiar e Punir, ele aproximará ainda mais essa relação entre discurso e poder.

Para Marcos C. Alvarez, em A Ordem do discurso, Foucault indica ser impossível que a análise entre discurso e poder seja feita “de fora”. Não há um lugar “fora” dessa

relação: deve-se compreender a maquinaria de produção do discurso para “talvez fazê-la

funcionar em outra direção25”.

Nesse mesmo texto ainda, Foucault afirma que fomos levados a acreditar que o

poder é representado pelas instituições, algo concreto, visível, e não pelo discurso. De

acordo com essa crença, qual o perigo em adentrarmos a ordem do discurso, se ele está

separado do poder e conforme a lei? Afinal o que haveria de tão perigoso no fato de “as

pessoas falarem e de seus discursos se proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o

perigo?26”, questiona Foucault.

O filósofo aponta aqui para a questão de que em toda sociedade a produção do

discurso é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um determinado número

de procedimentos, com o objetivo de dominar o seu caráter de “acontecimento aleatório”,

controlar aquilo que o discurso possa expressar com espontaneidade, esquivar sua

materialidade27.

Para explicitar essa relação oculta no discurso, Foucault define três grupos de

procedimentos que objetivam, justamente, dominar o caráter de “acontecimento aleatório”

do discurso, a fim de que ele seja usado com algumaintencionalidade28: os “procedimentos

internos”, os “procedimentos externos” e os “rituais”.

Apresentemos, primeiramente, as formas de “procedimentos externos” ao discurso,

ou “sistemas de exclusão”: a “interdição”, a “separação/ rejeição” e a “vontade de

verdade”.

24

Cf. ALVAREZ, Marcos César. Michel Foucault e a Ordem do Discurso. In: CATANI, A. Mendes; MARTINEZ, P. H. (org). Sete ensaios sobre o Collège de France. Série Coleções da nossa época. São Paulo: Cortez, 1999, p. 83-84.

25 Cf. Idem, op. cit., p. 85.

26 Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, op. cit., p.7-8. 27

Cf. Idem, op. cit., p. 8-9. 28

(20)

A “interdição” ou palavra proibida relaciona-se com a proibição de se dizer tudo,

em qualquer circunstância. Significa que qualquer um não pode falar de qualquer coisa.

Foucault ressalta que o discurso está longe de ser um elemento “transparente ou neutro, no

qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica29”, ao contrário, é o lugar pelo qual

elas exercem seus poderes. As “interdições” que atingem o discurso em nossa sociedade

revelam a ligação, e não a separação, do discurso com o desejo e com o poder, pois o que

não deve ser dito é interditado. Luta-se, portanto, pelo discurso, pois ele traduz o poder do

qual se deseja apoderar. A “interdição” seria, pois, o procedimento que “esconderia”, de

modo identificável por um olhar cuidadoso, a luta travada pelo discurso, o desejo e o poder

que ele pressupõe.

A “separação e a rejeição” esboçam a idéia do discurso assimilável e do não

assimilável, como a oposição entre razão e loucura. Essas exclusões30 não se exerceriam

sem pressão, nem sem ao menos alguma violência, pois organizam-se em torno de

contingências históricas que estão em eterno deslocamento31. Um exemplo citado por

Foucault é de como, historicamente, verificamos as diversas definições de loucura e de

como, durante séculos, a palavra do louco não era ouvida ou era ouvida como palavra de

verdade, para depois criar-se todo um aparato de saber em torno dessa mesma palavra. O

que sustenta e possibilita o exercício dessas exclusões externas seriam os sistemas de

instituições que as impõem e as reconduzem, neste caso, a medicina e a psicanálise.

O último procedimento externo aos discursos, a exclusão que opõe o verdadeiro e o

falso32 e rege nossa vontade de saber, é a “vontade de verdade”, o mais sutil dos três e o

que mais nos interessa.

Trata-se de um procedimento de exclusão historicamente constituído. Para

mencioná-lo brevemente nesse livro, Foucault retorna aos poetas gregos do século VI a.C.,

para os quais o discurso verdadeiro era aquele independente de seu conteúdo, pelo qual se

tinha “terror e respeito”, ao qual era preciso submeter-se, pois ele “reinava”. Era o discurso

29

Cf. Idem, op. cit.,p. 9-10. 30 Pode-se incluir a “interdição”.

31 Cf. Idem, op. cit., p.13-14.

32

(21)

pronunciado por quem de direito e conforme o ritual requerido, que “pronunciava a justiça

e atribuía a cada qual sua parte33”. O critério para definição da verdade era exterior ao

discurso. A verdade era o próprio discurso, vinculado ao exercício do poder.

Expõe Foucault que, um século mais tarde, no século V a.C., a verdade desloca-se

para o interior do discurso. Desloca-se do ato ritualizado, considerado eficaz e justo, para o

próprio enunciado: “para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a sua

referência34”. O discurso verdadeiro não estava mais ligado ao exercício de poder, não

estava mais ligado ao ritual e sim aos critérios de verdade que estabeleceriam a ligação

entre o discurso e sua referência no mundo. Interessava, agora, o quê, ou seja, o conteúdo,

e não mais quem o enunciava.

Foucault afirma que, após esse período, compreendido entre o poeta Hesíodo e o

filósofo Platão, uma divisão se estabeleceu, e tanto os sofistas quanto aqueles aos quais se

referiam os poetas do século VI a.C., passaram a ser rejeitados. E porque ele cita os

sofistas? Para lembrar-nos de que o critério de discurso verdadeiro ali também era outro.

Para os sofistas, não existia uma verdade única, a verdade do discurso também lhe era

interna, podendo ser alcançada com base na retórica, na conveniência ou por meio do

exercício do poder. A partir de Platão, portanto, tais critérios não interessariam mais àquele

que se pretendesse “filósofo”. A verdade poderia ser buscada dentro do discurso, com base

no critério do verdadeiro e do falso e assim as arbitrariedades anteriores seriam sanadas. É

justamente nessa questão que residiria, para Foucault, uma ilusão: pensar que aquilo que é

externo ao discurso (exercício do poder, conveniência, retórica) é controle arbitrário e o

que lhe é interno, por estar guiado pela razão, não é.

É a partir dessa divisão, chamada por Foucault de “a grande divisão platônica”, que

a “vontade de verdade”, essa vontade de saber, terá sua própria história. É uma história dos

planos de objetos a conhecer, das funções e posições do sujeito que se quer conhecer, dos

investimentos materiais, técnicos e instrumentais do conhecimento. Inicia-se, então, a

história de um dos procedimentos mais sutis de controle do discurso, apoiado, como os

outros sistemas de exclusão citados, sobre um suporte institucional, reforçado e

33

Cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as Formas Jurídicas, op. cit., p. 14-15. 34

(22)

reconduzido por todo um conjunto de práticas (como a pedagogia, por exemplo) e pelo

modo como o saber é aplicado no interior de uma sociedade35.

Para Foucault, essa divisão histórica deu forma geral à vontade de saber da

modernidade36, e não cessou de se deslocar. Há, no século XIX, uma “vontade de verdade”

que não coincide com a que caracterizava a cultura clássica, nem pelas formas que põe em

jogo, nem pelos domínios de objeto aos quais se dirige, nem pelas técnicas sobre as quais

se apóia37.

Foucault afirma que, principalmente na Inglaterra, entre os séculos XVI e XVII,

aparece uma vontade de saber que, antecipando a atual, estabelece uma certa posição, um

certo olhar (ver ao invés de ler), uma certa função (verificar ao invés de comentar) ao

sujeito que se propõe a “conhecer”. Essa vontade de saber determinava o nível técnico do

qual deveriam investir-se os conhecimentos, para serem “verificáveis e úteis38”.

Essa “vontade de verdade”, apoiada sobre um suporte e uma distribuição

institucional, exerce uma pressão, um poder de coerção sobre outros discursos. Outro

exemplo citado por Foucault, e que interessa particularmente a este trabalho, trata da

trajetória da “vontade de verdade” ao longo da história, na maneira como:

um conjunto tão prescritivo quanto o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade39.

Foucault se atém mais detalhadamente à análise da “vontade de verdade”, por

entender que é dela que menos se fala, já que, nos séculos XIX e XX, ela fica escondida

pela verdade demonstrável40 por meio do discurso científico. É ela que vem se tornando

mais profunda e incontornável, mascarada pela “verdade”.

35

Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, op. cit., p. 17-18: “Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desigualdade”.

36 Foucault entende modernidade o período correspondente aos séculos XIX e XX – Cf. FONSECA, Márcio

Alves. Vigiar e Punir – 30 anos, op. cit., p. 303.

37 Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, op. cit., p. 16. 38 Cf. Idem,op. cit., p. 17.

39

Cf. Idem, op. cit., p. 18. 40

(23)

Contudo se o discurso verdadeiro não é mais, desde os gregos, aquele que responde

ao desejo ou aquele que exerce o poder, o que está em jogo na vontade de dizer esse

discurso “verdadeiro”, na “vontade de verdade”, senão o próprio desejo e o próprio poder?

Assim, o filósofo afirma que “só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza,

fecundidade, força doce e traiçoeiramente universal41”. Ignoramos a “vontade de verdade”

como uma “maquinaria” destinada a excluir aqueles que, em nossa história, procuraram

contorná-la e recolocá-la em questão contra a verdade. Essa “maquinaria” assumida como

verdade passa a justificar a interdição e definir a loucura, como referimos anteriormente.

Os procedimentos internos de controle, chamados por Foucault também de

princípios de coerção42 do discurso, são: o “comentário”, a “autoria” e as “disciplinas”.

Eles atingem o poder e o desejo implícitos aos discursos. São sistemas de exclusão que o

discurso exerce sobre si mesmo, funcionando de modo a classificar, ordenar e distribuir,

como se pretendessem submeter as dimensões do acontecimento e do acaso presentes no

discurso.

O “comentário” seria o ato de dissertar sobre um tema, como fazem os textos

religiosos e jurídicos. Esse ato de dissertar produz um desnível entre o texto primeiro e o

segundo, desempenhando dois papéis solidários: um, de construir indefinidamente novos

discursos e outro, de permitir dizer o que estava articulado no texto primeiro, do qual o

comentário derivou. Foucault sugere que, às vezes, não há no comentário nada além do que

havia em seu ponto de partida, ou seja, a novidade estaria no “acontecimento” de repetir o

texto e não no seu conteúdo. Esse procedimento interno limita o “acaso” do discurso pelo

jogo de uma “identidade”, na forma da “repetição” e do “mesmo”.

Já o “autor” agrupa o discurso, como unidade e origem de suas significações, como

“foco de sua coerência43”. Foucault diz que, na Idade Média, na ordem do discurso

científico, o “autor” era indispensável, pois se tratava de um indicador de verdade, de valor

científico. A partir do século XVII, porém, tal função começa a se enfraquecer nessa

ordem.

Ao contrário, na ordem do discurso literário, nessa mesma época, a função do

“autor” reforça-se, exige-se que se indique quem escreveu, de onde vem o texto escrito,

41 Cf. Idem, op. cit., p. 20.

42

Cf. Idem, op. cit., p. 36. 43

(24)

“pede-se que o autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome44”. A forma do

“autor”, o ato de escolher o que escrever ou o que deixará de escrever, limita o “acaso” do

discurso pelo jogo de uma “identidade”, que tem a forma da “individualidade” e do “eu45”.

Márcio Alves da Fonseca indica que essa "identidade", por meio do nome do

"autor", exerce a função de reagrupar certo número de textos, opondo-os a outros,

manifestando assim o modo de ser de determinados textos. Com isso, define o estatuto dos

discursos no interior de uma determinada sociedade e de uma cultura. O nome do autor

marca a singularidade de um conjunto de discursos que este reagrupa46. Essa função seria a

"função autor", aplicada a alguns discursos no interior de uma sociedade.

Em seu texto O que é um autor47, Foucault resume quatro características dessa função.

a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que a contém, determina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações especificas e complexas; (...) ele pode dar lugar a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar48

Tal função libera-nos da prisão de pensar que o autor precede a “obra”. Permite-nos

entender que se trata de um principio funcional, por meio do qual "delimita-se, exclui-se

ou seleciona-se a circulação dos discursos49". Trata-se de analisar o sujeito como função

variável e complexa do discurso, e não como o seu fundador50.

A “disciplina” seria o último procedimento interno de limitação do discurso.

Refere-se a formulação de indefinidas proposições novas, “um domínio de objetos, um

conjunto de métodos, um ‘corpus’ de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de

regras e definições, de técnicas e de instrumentos51”. Trata-se de sistema anônimo, à

44

Cf. Idem, op. cit., p. 27. 45 Cf. Idem, op cit., p. 29.

46 Cf. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito, op. cit., p. 20. 47

Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Estética: Literatura e Pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos III. 2ªedição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 264-298.

48

Cf. Idem, op. cit., p. 279-280.

49 Cf. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito, op. cit., p. 21.

50 Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Estética: Literatura e Pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos III, op. cit., p. 287.

51

(25)

disposição de quem quer ou pode servir-se dele. O sentido e a validade não estão ligados a

quem inventou a disciplina. Tampouco é a soma daquilo que pode ser dito de verdadeiro

sobre algo pois, Foucault ressalta, pode conter erros que desempenhem uma função

positiva, uma eficácia histórica52. Para o filósofo, é no interior dos limites de cada

disciplina que se reconhecem proposições verdadeiras e falsas mas, antes disso, uma

proposição deve preencher certas exigências; para poder pertencer a um conjunto de uma

disciplina, deve encontrar-se no “verdadeiro53”.

Por meio da disciplina, controla-se o que se pode produzir por determinadas

regras/limitações, que são permanentemente re-atualizadas:

É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos54.

O terceiro grupo de procedimentos que permitem o controle dos discursos seria

constituído pelos “rituais”, que tratam de determinar as condições de funcionamento do

discurso, impondo aos indivíduos que o pronunciam certas regras, não permitindo que

qualquer indivíduo, aleatoriamente, tenha acesso a ele. São as exigências e qualificações a

serem satisfeitas para que o sujeito possa adentrar a ordem do discurso, diminuindo a

importância dos sujeitos que falam. Os discursos religiosos, judiciários e terapêuticos, por

exemplo, estão associados a essa prática ritual, cada qual a sua maneira determinando, aos

sujeitos que falam, propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos55.

Foucault considera por demais abstrato separar os rituais da palavra, as “sociedades

do discurso56”, os “grupos doutrinários” e as “apropriações sociais57” pois, na maior parte

do tempo, eles se ligam uns aos outros e garantem sincronicamente a distribuição dos

sujeitos que falam nos diferentes tipos de discursos e a apropriação dos mesmos por certas

categorias de sujeitos. Foucault os coloca como “os grandes procedimentos de sujeição do

52

Cf. Idem, op. cit., p. 31. 53 Cf. Idem, op. cit., p. 33-34.

54

Cf. Idem, op. cit., p. 35-36. 55 Cf. Idem, op. cit., p. 39.

56 Forma arcaica, cuja função é conservar ou produzir discursos e fazê-los circular num espaço restrito.

57

(26)

discurso” e cita o sistema de ensino58, o sistema judiciário e o sistema institucional da

medicina como exemplos de tais sistemas de sujeição. Esses exemplos demonstram a

ritualização da palavra, a qualificação e fixação de papéis para os sujeitos que falam, a

constituição de um “grupo doutrinário”, ainda que difuso, e a forma de distribuição e

apropriação do discurso, com seus poderes e seus saberes59.

A doutrina, apesar de tender a se difundir, liga os indivíduos a certos tipos de

enunciação, proibindo todos os outros, sujeitando os indivíduos ao discurso e o discurso ao

grupo. Foucault afirma que, aparentemente, a única condição que se requer para que se

“pertença” a uma "doutrina" "é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de

certa regra - mais ou menos flexível - de conformidade com os discursos validados60".

Entretanto, se fosse essa a única condição, as doutrinas não seriam diferentes das

disciplinas cientificas, mas a "pertença doutrinária" questiona o conteúdo e o sujeito que

fala, um por meio do outro, "valendo como o sinal, a manifestação, e o instrumento de uma

pertença prévia - pertença de classe, de ‘status’ social ou de raça, de nacionalidade ou de

interesse, de luta, de revolta, de resistência ou de aceitação61".

Foucault suspeita ainda de uma espécie de temor, escondido atrás do que ele chama

de “veneração do discurso” por nossa civilização. Aparentemente, libertamos o discurso de

suas coerções e o universalizamos. Essa necessidade de interditar, suprimir, colocar

fronteiras e limites no discurso, funcionaria, todavia, de modo a conter a proliferação e a

face violenta, descontínua, combativa, desordenada e perigosa dos discursos62.

Para analisar esse temor em suas condições, jogos e efeitos, é necessário

questionarmos a "vontade de verdade" da modernidade. Além disso, é fundamental

restituirmos ao discurso seu caráter de acontecimento (o que ele carrega de material, de

realidade) e suspender a soberania do significante63.

Com esses apontamentos, Foucault ressalta a necessidade de algum rigor

metodológico para tratar os discursos como acontecimentos discursivos. Aqui ele identifica

58

Cf. Idem, op. cit., p. 43-44: "Sabe-se que a educação, embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo individuo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distancia, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação e uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que eles trazem consigo."

59

Cf. Idem, op cit, p. 43 -45. 60 Cf. Idem, op. cit, p. 42.

61 Cf. Idem, op. cit., p. 43.

62

Cf. Idem, op. cit., p. 50. 63

(27)

quatro princípios que regeriam seu trabalho, nos anos em que lecionaria no Collège de France. São pontos de partida e não regras fechadas.

O primeiro princípio é o "princípio da inversão", que auxiliaria a reconhecer o jogo

negativo da rarefação/limitação do discurso nas figuras do autor, da “vontade de verdade”

e da disciplina, que parecem desempenhar um papel positivo/de expansão do discurso.

Foucault entende que é necessário que se deixe de considerar tais figuras como instâncias

fundamentais e criadoras do discurso.

O segundo princípio, o da "descontinuidade", pretende tratar os discursos como

práticas descontínuas que se cruzam, se ignoram ou se excluem64, desmontando assim a

ilusão de que existe um único discurso "por baixo" de tudo, que dê sentido e esteja à espera

de ser descoberto. Esse princípio teria a função de enfrentar a crença com uma

racionalidade norteadora, que deseja ver as descontinuidades nos campos do saber.

Já o terceiro princípio, o da "especificidade", consiste em não transformar o

discurso num jogo de significações prévias e, sim, concebê-lo como uma “violência que

fazemos às coisas”, uma prática que lhes impomos. Foucault, por defender uma visão

histórica ao contrário da visão metafísica, propõe que não devemos imaginar que o “mundo

nos apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas; ele não é cúmplice do

nosso conhecimento65”.

Por fim, o quarto princípio, o da "exterioridade", busca, a partir do próprio discurso

entendido como um acontecimento, compreender o pensamento e não tentar revelar sua

interioridade escondida: "a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua

regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à

série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras66".

Foucault prefere tratar os discursos como séries regulares e distintas de

acontecimentos, ao invés de buscar as representações que possam existir por trás deles,

introduzindo assim o acaso, o descontínuo e a materialidade. Essa ligação permite ao

64

Cf. Idem, op. cit., p. 51-52. 65 Cf. Idem, op. cit., p. 53.

66 Cf. Idem, op. cit., p. 54: Foucault expõe quatro noções que o auxiliarão na análise, juntamente com os

(28)

filósofo estabelecer “séries diversas, entrecruzadas, divergentes muitas vezes, mas não

autônomas, que permitem circunscrever o ‘lugar’ do acontecimento, as margens de sua

contingência, as condições de sua aparição67”.

Judith Revel, em seu Dicionário Foucault, define a noção de acontecimento em Foucault como detentora de dois momentos. Num primeiro momento, quando Foucault

utiliza essa noção em seu sentido negativo, trata dos fatos históricos específicos e

respectivas descrições que as análises históricas realizam, apontando a necessidade de ir

além dessas descrições, reconstituindo assim a rede de discursos, de poderes, de estratégias

e práticas por trás do fato. Então, num segundo momento, em seu sentido positivo, a noção

de acontecimento apresenta-se como “uma cristalização de determinações históricas

complexas”, passando Foucault a analisar diferentes redes e níveis aos quais pertencem

alguns acontecimentos68.

Essa cristalização de condições históricas complexas, o acontecimento, provoca

uma ruptura, abrindo espaço para outra(s) configuração(ões) possível(eis), outra(s)

forma(s). O filósofo define esse movimento como “acontecimentalização”, posto que

(...) trata-se de cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades tradicionalmente reconhecidas ou as mais facilmente contestadas: o instante e o sujeito69.

No início do capítulo destacamos que, em A ordem do discurso, Foucault avança em sua análise, na medida em que passa a tratar os acontecimentos não apenas em sua

natureza discursiva, mas também destacando sua natureza técnica, prática, econômica,

social ou, até mesmo, política, transpassado que é pelo poder. Trata-se de olharmos para o

acontecimento como relações de força, a fim de compreendermos os processos múltiplos

que o constituem. Trata-se de analisá-los em termos de estratégias e táticas de poder.

67 Cf. Idem, op. cit., p. 56.

68

Cf. REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 61-62. 69

(29)

A proposta de Foucault de realizar uma história do presente passa por essa noção de

acontecimento, na qual os conjuntos de práticas produzem verdades que acabam por

permitir o “governo70” dos homens.

Foucault indica, em sua aula inaugural A ordem do discurso, o que será um eixo central do seu trabalho: o desejo de olhar para a história, a fim de que esta o auxilie a

entender o presente. A noção de acontecimento, portanto, guia o filósofo a identificar as

rupturas que geraram outras formas e outros sujeitos. Um exemplo disso é a forma como

Foucault aborda o encarceramento. Ao olhar para o advento da prisão como um

acontecimento, o filósofo mapeou toda a trama que o envolve: a rede de dispositivos, os

poderes, os saberes, as práticas e os discursos que se formaram a partir dele.

E, se é mesmo possível olharmos para o passado e encontrar essas rupturas, talvez

seja também possível olhar para o presente e nele encontrarmos traços de rupturas que

possam determinar “outras/novas” formas e, tais formas, nos permitam tornarmo-nos

“outros/novos” “seres”, já que o que somos hoje não deveria ser nossa prisão.

Na conclusão dessa mesma aula inaugural, Foucault passa a explicar o modo como

pretende encaminhar suas análises durante os anos de ensino e pesquisa que se seguiriam.

Nesse momento de sua trajetória, ele fala de duas formas, divididas em dois blocos, mesmo

reconhecendo que esses blocos nunca são inteiramente separáveis, mas apenas operam por

diferentes perspectivas. Os dois blocos, ou dois conjuntos, podem ser entendidos também

como as duas ênfases metodológicas, a “arqueologia” e a “genealogia”, encontradas em

seus escritos.

Foucault também ressalta que ambas as perspectivas podem ser chamadas de

análise do discurso, já que não objetivam desvendar a universalidade de um sentido, nem

possuem como finalidade mostrar uma “generosidade contínua” do sentido e a imposição

do significante. Elas visam trazer à tona o jogo de rarefação imposto com um poder de

afirmação.

O primeiro conjunto, denominado “crítico”, colocará em prática o “princípio da

inversão”, já apresentado acima. Esse conjunto pode ser identificado como a ênfase

(30)

“arqueológica” e coloca em questão as instâncias de controle discursivo e seus processos

de rarefação, reagrupamento e unificação. Foucault objetiva ainda, com esse conjunto,

analisar como o discurso ritual, eficaz, carregado de “poderes” e “perigos”, se transformou

até a separação entre o discurso rotulado como verdadeiro e o rotulado como falso. Em

seguida, o filósofo fixa-se na passagem do século XVI ao XVII quando, principalmente na

Inglaterra, aparece uma ciência do olhar, da observação, ligada ao surgimento de novas

estruturas políticas, inseparável da ideologia religiosa, uma nova forma de “vontade de

saber”. Esse conjunto o auxilia também a analisar, no século XIX, a formação da sociedade

industrial, a fundação da ciência moderna e da ideologia positivista que a acompanha. São

três momentos, “três cortes de nossa vontade de saber71”, desenvolvidos por ele no livro As palavras e as coisas. Esse conjunto crítico também objetiva

medir o efeito de um discurso com pretensão científica – discurso médico, psiquiátrico, discurso sociológico também - sobre o conjunto de práticas e de discursos prescritivos que o sistema penal constitui72.

O segundo conjunto, o “genealógico”, é apresentado como aquele que colocará em

prática os “princípios da descontinuidade”, da “especificidade” e da “exterioridade”,

apresentados anteriormente. Este conjunto refere-se às “séries da formação efetiva do

discurso: procurará apreendê-lo em seu poder de afirmação, e por ai entendendo não um

poder que se oporia ao poder de negar, mas o poder de constituir domínios de objetos, a

propósito dos quais se poderia afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas (...)73”.

Salma Tannus Muchail74 ressalta que, ao ocupar-se com a questão da verdade,

embora não buscando uma essência a ser descoberta e, sim, descrevendo e analisando os

modos de como a verdade vem sendo produzida historicamente, Foucault age

estrategicamente. Se a verdade é um “efeito do poder das regras segundo as quais

determinados saberes têm a competência para a verdade, essa competência lhes atribui, por

seu turno, os direitos de uso do poder75”. Ao ocupar-se da análise das relações entre saber e

poder que, com o auxílio da verdade, se retroalimentam, a “genealogia” busca criticar, mas

71

Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, op. cit., p. 61-63. 72 Cf. Idem, op. cit., p. 63.

73 Cf. Idem, op. cit., p. 69-70.

74

Cf. MUCHAIL, Salma T. Foucault simplesmente. São Paulo: edições Loyola, 2004, p.31-32. 75

(31)

também ser instrumento de resistência contra a coerção de um discurso teórico, unitário,

formal e científico.

Para seguir nessa linha de análise e entender o que significa “acabar com a

imposição do significante”, buscamos os comentários de Sérgio Paulo Rouanet, em seu

artigo A gramática do homicídio76. Nesse artigo, Rouanet desenvolve a questão da “morte do homem”, à qual Foucault se refere no final de As palavras e as coisas. Rouanet afirma que Foucault elabora, nesse livro, a história das condições de possibilidades das ideias,

tendo a episteme como unidade de análise, “o solo originário a partir do que o

conhecimento se tornou possível, o a priori histórico que permite ou veda determinadas configurações do saber77”.

Foucault analisa três epistemes pelas quais passou a cultura européia, para

demonstrar o descontinuismo da história, instalando a morte do homem como eixo central:

Renascentista (séculos XV-XVI), Idade Clássica (séculos XVII-XVIII) e a Moderna

(séculos XIX-XX). E a partir dessas análises realizadas por Foucault, Rouanet afirma

Uma história descontínua, por outro lado, exclui qualquer antropocentrismo. A sucessão das fases obedece a uma legalidade puramente discursiva, sem qualquer referência a uma teleologia ou a uma subjetividade fundadora. (...) O tempo da descontinuidade é, no sentido mais literal, o tempo do desaparecimento do sujeito78.

O privilégio de olhar para a história dessa forma, como aponta Rouanet, seria a

possibilidade do homem ser a abertura pela qual o tempo pode se constituir, “a condição

para que as coisas façam sua entrada no domínio do saber, com sua historicidade própria, e

no momento devido79”. Rouanet aponta, ainda, para o fato de que esse olhar não busca um

sentido universal, tampouco a normalização de comportamento/pensamento, busca resgatar

o direito à reflexão livre.

Paul Veyne indica que, ao referir-se à morte do homem, Foucault fala das múltiplas

subjetividades nas quais o homem nunca deixou de se constituir, nem nunca deixará. “A

76

Cf. ROUANET, Paulo Sérgio. A gramática do homicídio. In: O homem e o discurso (A arqueologia de Michel Foucault). Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1996, p. 91-138.

77 Cf. Idem, op. cit., p. 97.

78

Cf. Idem, op. cit., p. 111. 79

(32)

noção de subjetivação serve para eliminar a metafísica, o dobrete empírico-transcendental

que retira do sujeito constituído o fantasma de um sujeito soberano80”.

Os aspectos até aqui apresentados introduziram a relação entre discurso e poder

nos escritos de Michel Foucault. Para avançarmos, passamos às práticas judiciárias.

1.2. As práticas judiciárias e a constituição do sujeito de conhecimento

Partimos, neste item, para um estudo mais afeito à ênfase genealógica, a fim de

compreendermos a noção de saber-poder e sua relação com a verdade produzida

juridicamente, a partir de A verdade e as formas jurídicas.

Foucault, por meio do enfoque genealógico, pensa o poder como estratégia,

refutando sua concepção jurídica-discursiva. Essa concepção, tal como refutada por

Foucault, pensa o poder como soberania, como coisa, ou seja, passível de ser localizado e

quantificado81.

Roberto Machado explicita que, nas análises de Foucault, o poder está em constante

transformação, sendo assim uma prática social constituída historicamente82. O poder está

pulverizado na sociedade, formando uma rede, e “se exerce como uma multiplicidade de

relações de força (...). Ele é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica (...)

Ele se exerce, se disputa83”. Em Foucault, o poder possui uma eficácia produtiva, pois ele

produz individualidade. O indivíduo seria, então, uma produção do poder e ao mesmo

tempo objeto do saber.

80

Cf. VEYNE, Paul. Foucault, o pensamento a pessoa, op. cit., p. 110.

81 Cf. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito, op. cit., p. 194-195: “São as duas principais ‘versões’ do modelo ‘jurídico-discursivo’ do poder que constituem o objeto de suas críticas nos trabalhos de 1976 (A vontade de saber e Em defesa da sociedade). E o ponto de chegada comum dessas críticas será a abertura para as análises acerca de uma nova ‘face’ dos mecanismos de normalização, implicados numa biopolítica (...) Uma das versões do modelo ‘jurídico-discursivo’ do poder é aquela em que este aparece como algo que reprime e que impõe interdições (...) A outra das versões é aquela em que o poder se confunde com a Ordem, instaurada pela lei civil, decorrente de um Estado legítimo. Tal concepção, por sua vez, remonta ao pensamento dos filósofos contratualistas, em que a Lei constitui-se na manifestação essencial do poder”.

82 Cf. MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2004, p. X.

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Referências

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