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DE OLHO EM MESMO

3.3.2 A TENDÊNCIA TRADICIONAL (1960-1990)

3.3.3 A TENDÊNCIA LINGUÍSTICA (A PARTIR DE 1990)

Tendência que se firma a partir do ano 1990, orientada pelas evidências linguísticas e etimológicas do item. Busca-se aqui recuperar o elo perdido.

Bechara (2000), provavelmente amparando-se nas características etimológicas dêiticas e fóricas da palavra, apresenta um consistente estudo sobre o item mesmo nas gramáticas que assina, recuperando seus diversos usos com valor demonstrativo. Segundo sua classificação, o item mesmo pode figurar no texto:

a) Substantivado pelo artigo (com restrições): Quando denota identidade, com o valor de em pessoa, ou referindo-se a seres e ideias já expressos anteriormente, como anafórico, (vale por esse, essa, aquele, isso e aquilo), como em: “eu fiz o mesmo”. (BECHARA, 2000, p.168).

Sobre essa questão, Bechara (2000) diz o seguinte:

[...] o emprego anafórico do demonstrativo mesmo, substantivado pelo artigo e precedido ou não de preposição, para referir-se à palavra ou à declaração expressa anteriormente, não é bem tolerado pela maioria dos gramáticos, aconselhando-se sua substituição pelo pronome ele nos contextos lingüísticos em que aparece. (BECHARA, 2000, p.168).

Mesmo tem valor de demonstrativo anafórico, isto é, faz referência a pensamentos expressos anteriormente, com valor de igual (Ex. eu fiz a mesma coisa);

c) Como reforço de pronomes pessoais. (ela mesma quis ver o problema) (p. 168); d) Como reforço enfático com o valor de em pessoa (Eu mesmo assisti à cena) (p.190);

d) Como reforço junto aos advérbios agora, aí, aqui. (Agora mesmo). Neste particular, trata-se ainda de um pronome dêitico.

Bechara (2002, p. 277), apoiando-se na decisão da NGB, menciona o emprego do item mesmo como palavra denotativa de “inclusão”, na classe do advérbio como já foi ressaltado na seção anterior. Entretanto, não mostra seu valor como “realmente” (advérbio) junto a verbos e outras expressões.

Encerrando esse levantamento, destaco o estudo de Neves (2003, p. 516). Aqui, a autora classifica o item linguístico mesmo como:

-Pronome (flexiona-se no feminino e no plural) quando: a) Reforça identidade, equivalendo a próprio.

“Seria preferível que eles mesmos fizessem o lançamento”

“Ela mesma não sabia de si, o que faria logo, onde estaria amanhã”. b) Indica identidade idêntica:

“Era mais uma questão de princípios, de interpretação dentro de uma mesma ideologia”.

c) Se refere a uma ação, um evento, um fato já mencionado (pronome neutro):

“Quando Mattos pegou o bonde o sujeito fez o mesmo e sentou-se dois bancos atrás” (invariável).

A autora também chama a atenção para o uso indevido do item (não creditado gramaticalmente) quando faz referência a alguma pessoa ou a alguma coisa já mencionada (valendo por ele, ela, eles, elas, respectivamente):

“Os recalques total e diferencial devem ser suficientemente pequenos e compatíveis com a estrutura de modo que a mesma não seja modificada pelos movimentos das fundações”.

A autora não faz referência ao uso da palavra como adjetivo. Mas registra o seu valor como advérbio (palavra invariável)

a) Indicando “de fato”, “realmente”: Você é mesmo incorrigível!

b) Indicando “até” (inclusão):

Mesmo a monótona e cansativa leitura do processo prendia a sua atenção. O quadro 3 oferece uma visão dos usos do item catalogados das gramáticas nesse período:

Quadro 6. Funções e sentidos do item mesmo registrados a partir de 1990

Classe gramatical. Função Sentido

Pron. demonstrativo Reforço (reflexivo/enfático) Próprio, em pessoa. Pron. demonstrativo Reforço (contextual) Intensifica o sentido da intenção

Adjetivo Referencial/ comparação Igual/idêntico

Substantivo Referencial Comparação Identifica (a pessoa já referida)

Advérbio (à parte) Denotativa Inclusão / até

Advérbio Circunstância Realmente/ de fato

*Conjunção17 concessiva Relacional Apesar de, embora, etc.

O quadro em pauta mostra uma ampliação nos registros de uso do item. As gramáticas não só retomam o conteúdo original da palavra, mostrando as diferentes funções e acepções

com seu valor demonstrativo, ao lado das novas funções que lhe foram incorporadas.

Esse contexto relutante e confuso da gramática abre, sem dúvidas, perspectivas para novas propostas. Alguns gramáticos, antenados com os estudos linguísticos, começam a se dar conta da atuação elástica de certas palavras e aceitam o desafio de classificá-las não só de acordo com valores sintáticos, mas também observando seus diferentes significados nos contextos comunicativos.

Destaco, nessa vertente, a proposta de Azeredo (1990) que promete ser revolucionária no âmbito da categorização das palavras.

Discordando totalmente dos pontos de vista apresentados e adotando, também, princípios linguísticos, Azeredo ressalta as afinidades semântico-discursivas dos itens mesmo e outro, propondo reagrupá-los numa subclasse que ele chama de referenciadores, provavelmente, seguindo as pegadas de Pontes.18 (1978, apud AZEREDO, 1996, p.54).

Para Azeredo (op.cit), as citadas expressões

Integram o complexo sistema de meios referenciais do discurso e constituem instrumentos de coesão textual e de coerência conceptual. Assim, servem para retomar porções de sentido (ANÁFORA) ou antecipar porções de sentido (CATÁFORA) na cadeia do discurso. (AZEREDO, 1996, p.54).

Trata-se realmente de uma proposta inovadora no sentido que contempla as propriedades essenciais do item como termo anafórico e coesivo. Todavia, não atende outras manifestações do item no discurso, entre as quais as diferentes possibilidades do item de reforçar intenções ou como expressão de circunstância, concessiva e de inclusão.

Para cobrir essas manifestações particulares do item entendido e classificado à parte como denotativa pela NGB, Azeredo introduz uma nova classe, a dos marcadores discursivos. Fundamentando-se nos princípios da Teoria da Enunciação, Azeredo (1996, p.) explica que: Certas palavras marcam fronteiras sintagmáticas, exprimindo certas informações que o locutor considera serem ‘novas’ para o ouvinte; servem, portanto, para estabelecer relações de implicação e/ou pressuposição com outros enunciados.

Concordo com Farias (2000). A proposta de classificação de Azeredo (op. cit.) enfocada aqui parcialmente, avança quando dá às palavras denotativas o status de “classe”, justificando-as através da Teoria da Enunciação.

No entanto, apesar de reconhecer o mérito de Azeredo (1996), fazendo a diferença no estudo do item, sua proposta classificatória parece difícil de ser aplicada na prática por alguns motivos: Distribuir certas palavras em “novas categorias” implica ampliar o número já grande de classes gramaticais. Propor novas classes gramaticais -referenciadores e marcadores discursivos- para essas palavras não equaciona a questão. Tratando-se de subclasse, os referenciadores deveriam integrar uma categoria maior, muito provavelmente a de pronomes demonstrativos. Se não me engano, a NGB procedeu da mesma forma quando instituiu a subclasse expressões denotativas.

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Na verdade, a proposta enfatiza um aspecto funcional da palavra, em detrimento de outros empregos do item, apenas, mudando o foco de análise. A proposta de classificação da NGB centraliza sua classificação no entendimento do item como “denotativa de inclusão”, ou à parte entre os advérbios; enquanto, a proposta de Azeredo destaca a classificação da palavra na sua ação fórica, recuperando uma dimensão pouco privilegiada na tendência tradicional discutida anteriormente.

Acredito que não se trata de instituir novas classificações, mas de reconhecer que o item comporta duas bases funcionais de uso: uma como referencial e outra como reforço ou intensificador.

Fico receosa também quanto à proposta de classificá-lo como marcador discursivo, uma vez que para isso se faz necessário uma investigação mais profunda de sua atuação no estágio atual da língua do ponto de vista funcional. Como marcador discursivo, o item teria uma ação circunscrita ao discurso, estabelecendo meramente relações coesivas no interior do texto, sem nenhum valor lexical. Ele não cumpre apenas essa função no texto.

Em resumo, a proposta, na verdade, traz uma grande contribuição aos estudos linguísticos e gramaticais exatamente por ressaltar essas dimensões funcionais do item, contudo, ainda não é sufuciente diante das posibillidades de uso do item no discurso.

Enfim, as mudanças e orientações observadas a partir de 1990 em torno da classificação do item linguístico mesmo não significam avanços no comportamento gramatical no que diz respeito à sua categorização; na verdade, quando se retoma e enfatiza certas propriedades do referido item no seu quadro categorial, apenas está se fazendo um reconhecimento devido de algo a ele inerente, e que foi esquecido ou subestimado. No núcleo semântico da palavra, como mostra sua etimologia, os conteúdos dêiticos e fóricos, ainda, bastante perceptíveis nos enunciados, lhe conferem valor demonstrativo com dupla ação no sistema linguístico: de reforço e referencial.

Todavia, o estudo sobre o item mesmo está apenas começando e não se resume as questões simplesmente gramaticais. Prosseguindo a caminhada na trilha do item, na seção seguinte, são destacados, na literatura linguística, postulados e reflexões relevantes para este estudo.