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AS CARTAS OFICIAIS: O CONTEXTO, OS AUTORES E A LINGUAGEM

EXPLICITANDO O OBJETO: O ITEM LINGUÍSTICO MESMO

1.5 ORIENTAÇÃO METODOLÓGICA

1.5.2 OS GÊNEROS DISCURSIVOS: ENTREVISTAS E CARTAS

1.5.2.2 AS CARTAS OFICIAIS: O CONTEXTO, OS AUTORES E A LINGUAGEM

Do ponto de vista estrutural, a carta é vista também como uma forma de interação verbal, já que pressupõe a comunicação e o diálogo entre pessoas distantes, via escrita; constitui-se, por conseguinte, um recurso valioso para uma análise empírica de usos lingüísticos reais do português, representativos de comunidades identificáveis e determinadas.

A carta constitui uma produção de texto de uso prático, muito frequente no cotidiano das pessoas, principalmente, de outrora, caracterizando-se como única forma de interação entre elas, em certos contextos. A carta é um gênero discursivo identificado basicamente pelos elementos: local, data, saudação, texto e assinatura.

A carta possui estrutura composicional complexa, permitindo vários tipos de comunicação (pedido, convite, agradecimento, cobranças, intimação, notícias familiares, prestações de contas, informações e outros). Embora preservem a estrutura de cartas, essas comunicações não são da mesma natureza. Umas dizem respeito aos negócios, ao trabalho, circulam na burocracia social, outras tratam das relações pessoais, ou seja, circulam no âmbito familiar. De acordo com as intenções e com as formas de realização, ela pode ser considerada carta circular, carta pessoal, carta programa, carta ao leitor, carta administrativa (oficial) e tantas outras. Em outras palavras, a carta é um gênero transmutável que se realiza em diferentes formas para cumprir várias funções sociais.

Em qualquer uma dessas manifestações, a carta mantém uma estrutura básica que a distingue de outros gêneros discursivos: envolve a interação verbal entre duas pessoas (um destinatário e um remetente) e apresenta quatro seções (a saudação, a introdução, o núcleo e o fechamento ou despedida) (SILVA, 1997, apud BEZERRA, 2003, p. 210). Ou seja, a carta tem uma perspectiva funcional-interativa.

As cartas oficiais constituem um subgênero da carta e insere-se no conjunto de textos da Administração Pública, apresentando os seguintes traços prototípicos: é um documento público; possui relação assimétrica entre remetente e destinatário; tema altamente fixo; as dimensões da ação comunicativa limitam-se a: requerer, ordenar, recriminar, informar, agradecer, refutar, obedecer, relatar; o texto é altamente controlado (formal) com a presença de formulas que seguem uma determinada tradição discursiva (SIMÕES, 2007, p.14).

Entretanto, as cartas administrativas paraibanas, apesar de possuírem uma estrutura nuclear comum a maioria das cartas, diferenciam-se pela forma de realização, pela intenção dos redatores e pelo estilo híbrido de composição, por um lado formal e, por outro, informal. À época, era o gênero de maior circulação na sociedade.

Segundo Fonseca (2005), esses documentos caracterizam-se pela preocupação dos atores em seguir as tradições textuais da época, tanto com relação à estrutura formal quanto com relação ao estilo e nível da língua.

Apesar de serem cartas administrativas e, portanto, respeitarem os devidos critérios de formalidade para este tipo de gênero discursivo, obedecendo a modelos pré-estabelecidos, é possível encontrar, na organização linguístico-textual, diferenças resultantes das condições sócio-históricas em que foram produzidos. Determinados fenômenos linguísticos encontrados mostram influência da oralidade. A linguagem espontânea, as repetições, as hesitações, etc. são aspectos que permitem seu enquadramento na rubrica de cartas pessoais, constituindo-se, por conseguinte, um recurso valioso para uma análise empírica de usos linguísticos reais do português, representativos de comunidades identificáveis e determinadas.

Para melhor se entender e explicar o uso do item nesses períodos faz-se necessário conhecer um pouco o contexto e os acontecimentos da época em que as cartas foram produzidas, seus redatores e sua linguagem.

Do ponto de vista dos acontecimentos sociais e políticos, no período das cartas, a Paraíba vivia em uma época de subordinação inserido num conjunto de acontecimentos marcantes para toda a Colônia (a vinda da família real, Independência política, Iº Reinado, regência, e 2º Reinado). Durante todo esse tempo, ocorreram mudanças na administração pública e nas relações burocráticas, mudanças refletidas nas cartas.

A Paraíba foi por muito tempo uma província subordinada a Recife, portanto, sem autonomia política, econômica e militar. A instrução, no geral, estava direcionada à camada dirigente, composta de pequena nobreza e seus descendentes e servia aos interesses metropolitanos, de acordo com o modelo político de colonização adotado. Os textos impressos eram poucos, o acesso à escrita também não era facilitado aos mais pobres. Só a partir do séc. XIX passou a haver uma demanda crescente em torno da educação escolar, agora encarada como instrumento de aristocratização. A finalidade da corte era formar apenas o profissional. A leitura passou a ser uma exigência do exercício profissional, em função do aumento dos documentos oficiais.

Em relação à instrução pública, mudanças só começam a aparecer nas províncias após 1822 com a instalação de cadeiras de instrução primária – todas para homens – na capital e nas vilas vizinhas. Após o primário (em geral feito no interior das fazendas e engenhos), os filhos dos proprietários continuavam seus estudos nas escolas secundárias em Pernambuco. Cadeiras de instrução primária foram criadas em 1822 nas villas do Conde, Alhandra, São Miguel e outros locais. O método era o da soletração. A repetição e a memória constituíam a base de ensino. (FONSECA, 2005). Nesse contexto, deduz-se que o analfabetismo era uma característica da sociedade colonial brasileira.

Quanto aos produtores das cartas, na medida do possível, buscou-se obter informações a respeito dos produtores e destinatários das cartas. Segundo Fonseca (2005), algumas informações foram obtidas através das próprias cartas ou de historiadores. Em alguns casos, tratando-se de altas autoridades ou de pessoas famosas, muitos dados foram encontrados até com certa facilidade, tendo em vista o cargo que ocupavam; raramente são encontradas informações sobre nível de escolaridade, lugar de nascimento ou idade. Em outros, no entanto, não foi possível localizá-los.

As cartas selecionadas para compor o corpus 2 foram redigidas por profissionais da escrita, que apresentam em maior ou menor grau o conhecimento das normas da escrita. Outros redatores não demonstram ter tanta familiaridade com o texto escrito, deixando transparecer um grau menor de escolaridade. Os redatores das cartas, em geral do sexo masculino, pertencem às várias camadas sociais e estão diretamente relacionados com a administração pública. O grau de instrução desses redatores era variado: havia tanto pessoas letradas e influentes que exerciam cargos públicos de destaque, ligados à política brasileira, nobres, militares, juizes, ouvidores, delegados, vigários, agricultores etc. como pessoas não letradas ou de pouca escolaridade (FONSECA, 2005).

Atendendo os propósitos do corpus, essa heterogeneidade na seleção dos textos/autores possibilita detectar possíveis variações linguísticas decorrentes tanto dos níveis de letramento, de influências regionais, quanto da posição social.

Assim sendo, no que se refere à linguagem das cartas, é possível verificar, no mesmo documento, características que vão da norma culta, ou exemplar, às variantes de menos prestígio. Em certas passagens, os autores fazem uso de variantes morfossintáticas e lexicais que, normalmente, não se empregam em textos formais. Trata-se, segundo a autora, de desvios da norma constitutiva da língua escrita culta e considera-se que muitas dessas marcas,

freqüentes na oralidade, permitiriam vislumbrar, parcialmente, o português brasileiro, que, a partir destes séculos, passa a ser registrado em textos escritos.

Apesar de serem cartas administrativas e, portanto, respeitarem os devidos critérios de formalidade para este tipo de gênero discursivo, a espontaneidade da linguagem permite seu enquadramento na rubrica de cartas pessoais. Ou seja, possuem características lingüísticas muito próximas da linguagem oral, tais como repetições hesitações etc.

Do ponto de vista linguístico, as cartas apresentam estruturas variadas e grande heterogeneidade de sequências tipológicas. Em algumas, predomina a narrativa, com informações sobre pessoas e acontecimentos partilhados pelos parceiros ou interlocutores. Em outras, predomina a argumentação com passagens descritivas. Observa-se nos redatores uma preocupação em seguir as tradições textuais da época, tanto com relação à estrutura formal quanto com relação ao estilo e nível da língua. No entanto, mesmo tratando-se de textos burocráticos, formais, e obedecendo a modelos já estabelecidos, é possível encontrar, na organização linguístico-textual das cartas, diferenças resultantes das condições sociohistóricas em que foram produzidas.

Do ponto de vista cronológico, a linguagem das cartas enquadra-se na fase que as gramáticas e manuais de história da língua classificam de Português Moderno (CUESTA e LUZ, 1983; CARDOSO e CUNHA, 1978 apud FONSECA (op. cit), todavia, apresenta grande variedade no tocante ao domínio das regras da escrita por parte de seus autores aproximando-se, em alguns aspectos, de fases anteriores da língua.

Uma das preocupações de Fonseca (2005) foi estabelecer a norma de escrita vigente na época da redação das cartas. Adotando métodos específicos e criteriosos de análise, ela conclui que a carta segue o padrão discursivo na época. Além de considerar as normas metodológicas de instrução para os professores, a autora considerou também a 4ª edição da Gramática Philosophica da Língua Portuguesa, de Jerônimo Soares Barbosa, publicada em Lisboa, em 1866, e também outras fontes como a gramática histórica de Ali (1964).