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NA GRAMÁTICA TRADICIONAL: REVISITANDO CONCEITOS E REGRAS

DE OLHO EM MESMO

3.3 NA GRAMÁTICA TRADICIONAL: REVISITANDO CONCEITOS E REGRAS

É controversa e até conflitante a classificação de certos itens lexicais, pela gramática normativa tradicional. Centradas, sobretudo, no componente sintático, as análises tradicionais têm encontrado dificuldade em estabelecer a classe categorial de certas palavras uma vez que elas mudam seu valor funcional e significativo dentro do contexto de uso, como acontece com o item mesmo.

Na dúvida e com o aval da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) (1960), a maioria dos gramáticos opta por classificá-las como “palavras denotativas”, uma subcategoria à parte dos advérbios. A natureza aberta e acolhedora dessa classe gramatical tem levado muita gente de renome na área a cometer equívocos como esses, ignorando, talvez, a etimologia do item e até mesmo o seu conteúdo semântico.

Não pretendo neste estudo questionar os pontos de vista adotados pelos gramáticos para classificar as palavras, entretanto, a análise preliminar da literatura gramatical, antes e após a NGB, deixou mais evidente essa inconsistência, identificando-se aí três tendências classificatórias para o item em foco, correspondendo aos seguintes períodos:

a) clássica, (1930–1960), classificação pautada na base etimológica da palavra;

b) tradicional, (1960-1990), compreende a orientação classificatória sugerida pela NGB e que vigora ainda nos diversos livros didáticos;

c) linguística, (a partir de 1990), orientação fundamentada em princípios linguísticos e etimológicos da palavra.

Exponho a seguir o pensamento gramatical dominante em cada período em relação à classificação do item aqui em destaque.

Compreende a orientação classificatória encontrada nas gramáticas da primeira metade do século e que se estende até a década de 1960. Entre os autores consultados, selecionei alguns para ilustrar esse período:

Cruz, José Marques (1953) está entre os autores consultados. Suas informações sobre o item resumem-se a classificá-lo como adjetivo determinativo demonstrativo.

Mendes de Almeida (1960), outro convidado para ilustrar esse estudo, destaca os seguintes usos do item em pauta:

-como pronome

a) localizando ou identificando o substantivo b) como neutro, em frases: “o mesmo ouvi eu”

c) significando em pessoa, próprio, idêntico. - como adjetivo

a) para identificar, comparativamente, uma pessoa ou coisa.

b) para indicar com mais ênfase de distinção a pessoa ou coisa determinada pelos demonstrativos este, esse, aquele.

-como advérbio, significando realmente ou de fato, como é explicitado em sua obra; “hoje mesmo”; “estive mesmo”; “é mesmo”; “só mesmo”. (p.173)

- como concessivo (mesmo quando e mesmo que), com sentido de “embora”.

Por fim, o autor menciona a expressão mesmo assim com três significados: “igualmente”, “apesar disso”, “desse modo”, porém não explicita em qual categoria gramatical seriam inseridas essas expressões (ALMEIDA, 1960, 167-9).

A gramática de Oliveira (1961) é também referência para este estudo, uma vez que enfatiza valores caros ao item mesmo, seja como pronome, adjetivo e como expressão de reforço ao lado do seu valor estendido em outras ocorrências como se observa a seguir:

a) como pronome, com a função de situar o objeto e indicar a relação com a pessoa, citando mesmo (s), mesma (s) (p. 271);

b) como adjetivo, indicando qualidades idênticas entre os substantivos; igualdade (são iguais), tão quanto (p. 236);

c) como palavra de reforço (a si mesmo, mesmo nada) (p. 319); Outras possibilidades de uso registradas por ele são:

d) como conjunção concessiva, relacionando elementos entre si, ou orações “quando mesmo” (p. 315);

e) como interjeição, exprimindo o sentimento na sua elocução; Segundo ele, são as palavras de inclusão: mesmo, até, inclusive, também. (p. 318);

f) como “outras palavras”, salientando que são “palavras que existem, mas que não se acomodam na classificação das palavras examinadas”; entre elas, ele cita as palavras de exclusão, inclusão, reforço, de situação (p. 316).

A distinção em torno das ocorrências (e) e (f) não é nítida; o autor, ora a classifica como “palavra de inclusão”, entre as interjeições (e), ora como “outras palavras” (f). A dificuldade na interpretação dessas ocorrências não é privilégio do autor, outros gramáticos, participantes desta revisão, têm ponto de vista diferente, como confirmam seus livros. Almeida (op.cit), na sua interpretação, classifica mesmo como advérbio (realmente). Oliveira (op.cit.) não faz alusão a esse valor do item, e seu valor hoje de “inclusão”, é classificado por ele como interjeição. Ao que parece, a ambigüidade do termo já era uma questão problemática, gerando, inclusive, conflitos para a sua classificação.

Na verdade, constata-se essa imprecisão no entendimento funcional da palavra em gramáticas mais antigas. Pereira (1942; [1907]), na gramática que assina, reconhece a propriedade demonstrativa da palavra, classificando-a como:

a) Adjetivo, indicando alguma circunstância de posição ou identidade. Ex. "o mesmo homem” (p. 97 / p. 306);

b) Pronome neutro em frases como: “é o mesmo”; “isto é o mesmo”.

c) Pronome pessoal de reforço; nesse caso, recebe o gênero e o número da pessoa que o pronome representa, como em: “eu mesmo” (a); a si mesmo (os) (p. 307)

Além dessas, o autor registra, ainda, ocorrências da expressão mesmo: d) Como advérbio, equivalendo a “de fato”, “realmente“ (p. 307).

e) Como conjunção concessiva, (quando mesmo e mesmo que) ligando orações e exprimindo apenas continuação do discurso ou transição de pensamento; (“Não te limparás, quando mesmo te laves com água de nitro”; “mesmo que chova, eu seguirei”) (p. 167).

No quadro a seguir, tento sistematizar as informações coletadas nos diferentes autores:

Quadro 4. Funções e sentidos do item mesmo registrados entre 1930-1960

Classe gramatical Função Sentido

Pron.demonstrativo Reforço (enfático) Próprio, em pessoa/ Pron.demonstrativo Reforço Intensifica a intenção

(exato, certeza)

Adjetivo Referencial/ Comparativa Igual/idêntico Substantivo Referencial/ Comparativa Idêntico/igual

Interjeição Denotativa Inclusão / até

Advérbio Circunstância Realmente/De fato

Conjunção Concessiva Apesar de/

Em coro, as autoridades da língua que representam este período reconhecem no item linguístico mesmo sua propriedade demonstrativa, classificando-o como pronome, como determina sua origem dêitica e fórica. Por conseguinte, destacam, por um lado, sua ação como palavra identificadora, situando fisicamente no espaço e no tempo pessoas e coisas, e por outro, sua ação como palavra de referência, fazendo alusão a algo já mencionado dentro do texto, muitas vezes, estabelecendo uma relação anafórica de igualdade. Em outras palavras, mostram a força semântica embutida na palavra, incluindo o seu papel como item de reforço em determinados contextos.

Sintaticamente, os diversos autores consultados percebem também sua função adjetiva, acompanhando um substantivo e sendo afetado por ele em gênero e número. Enfocam seu uso como substantivo, esclarecendo ser este inapropriado, em alguns casos, do ponto de vista da correção linguística.

Com relação a outras possibilidades classificatórias em que se pode inserir o item e apontadas nos compêndios desse período, não se pode afirmar haver, por parte dos

gramáticos, uma compreensão abrangente. Ao contrário, suas conclusões mostram-se hesitantes e desencontradas quanto às diversas conotações semânticas que emergem no uso.

Ocorrências semelhantes, do ponto de vista sintático, tanto aparecem interpretadas como advérbio por um autor, como vistas como interjeição por outro, indicando flexibilidade nos critérios norteadores da classificação de palavras à época. A avaliação, ao que parece, ficava ao sabor da subjetividade interpretativa do autor.

Contudo, apesar dessa assistematicidade, esse período traz importantes contribuições para o presente estudo, uma vez que registram tanto os usos relacionados à base etimológica da palavra como os diferentes sentidos e valores acrescidos ao item, constituindo, portanto, referências para outros estudos, inclusive, como fonte para o entendimento de sua classificação gramatical.