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a teoria e a prática no ensino de gramática

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 32-35)

Não é novidade, para especialistas e leigos, que o ensino de línguas vem passando por profundas transformações. A primeira e principal causa dessas transformações remete à constituição da Linguística como uma ciência, no sentido do formalismo do método científico desenvolvido por Ferdinand de Saussure (1916). Associa-se a isso a própria transformação nos paradigmas educacionais (pedagógicos), que passam a ser centrados no estudante e não mais no professor ou no conteúdo per si. Uma outra causa, mais moderna, da transformação no ensino de línguas se deve à agi- lidade com que os meios tecnológicos (e o acesso a eles) vêm se desenvol- vendo, de forma a atingir a maior parte dos contextos econômicos, sociais,

1 A pesquisa foi realizada pelos estudantes matriculados na disciplina Sintaxe do Português Contemporâneo 1, ofertada pelo Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássi- cas (LIP) no primeiro período letivo de 2014, e estava circunscrita ao Laboratório de Estu-

dos Formais da Gramática (LEFOG), no âmbito do projeto de pesquisa intitulado “Novas

perspectivas para a língua portuguesa em sala de aula”, coordenado pelas professoras Eloisa Pilati, Helena Vicente, Rozana Naves e Heloisa Salles.

educacionais e, inclusive, linguísticos (esses últimos retratados pelas novas formas de linguagem criadas a partir da evolução das tecnologias da infor- mação e da comunicação).

Especificamente com relação ao contexto educacional, os Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCNs), publicados em 1998, represen- tam em si mesmos uma inovação político-metodológica no ensino e pro- põem uma mudança no sistema educativo brasileiro, situando os desafios que se colocam para cada área do conhecimento. De uma forma geral, há a consciência de que os estudantes devem ser formados para o exercí- cio da cidadania, para o entendimento crítico dos progressos científicos e para o uso consciente dos instrumentos tecnológicos. Essa concepção do ensino como a possibilidade da apropriação de conhecimentos social- mente elaborados como base para a construção da cidadania produz uma discussão sobre a função da escola, especialmente no que se refere a que conteúdos ensinar/aprender e a que metodologias utilizar no processo ensino-aprendizagem.

No caso do ensino de línguas, os PCNs definem a linguagem como “a

capacidade humana de articular significados coletivos em sistemas arbitrá- rios de representação, que são compartilhados e que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade” (BRASIL, 1998, p. 32-33). Nesse sentido, o conhecimento sobre as linguagens, que se estruturam sobre um conjunto de elementos (léxico) e de relações (regras) que são significati- vas (op. cit., p. 33), deve ser construído em termos do uso e da compreensão de sistemas simbólicos, cujas representações são convencionadas e padro- nizadas. É a capacidade de conhecer e reconhecer os códigos e sua função sociointeracional, ampliando-se o domínio sobre a língua e a linguagem, que os PCNs propõem como elemento constituidor de identidade e de cidadania.

E, nesse aspecto, a Literatura desempenha um papel fundamental.

Embora apontem caminhos em termos de competências e de habili- dades a serem desenvolvidas, os PCNs colocam as questões sobre a busca de novas abordagens e metodologias como um objeto inacabado. Propõe-se, então, no projeto de pesquisa que dá origem a esta proposta de atividade pedagógica, promover um estudo gramatical que leve em conta o fato de que as línguas figuram como objeto de análise científica, diante do pres- suposto de que sua manifestação é determinada por um conhecimento inato – a competência linguística, nos termos de uma teoria formalista dos estudos da gramática (cf. CHOMSKY, 1986). Para tanto, concebe-se uma

proposta pedagógica baseada no conceito de educação linguística, que se operacionaliza por meio de uma metodologia baseada em projetos, em que competências intelectuais sejam desenvolvidas por procedimentos de for- mulação de hipóteses e raciocínio inferencial sobre dados linguísticos inse- ridos em contexto ou extraídos de textos formalmente elaborados, como os textos literários (cf. PILATI et al., 2011).

Diante desse quadro teórico, a atividade teve como objetivo anali- sar a inserção da obra de Chico Buarque nos livros didáticos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, adotados por escolas públicas ou priva- das, bem como os textos do autor utilizados como fonte para a elaboração de questões dos exames vestibulares para ingresso em universidades do país. O que apresentamos neste breve texto são apenas alguns dos resulta- dos obtidos.

O primeiro exemplo encontrado nos materiais analisados contém somente uma estrofe da música “Januária”, inserida em um exercício sobre classificação de orações adverbiais e variação linguística, conforme demonstrado a seguir:

1. Identificar e classificar a oração adverbial no trecho abaixo: Toda gente homenageia

Januária na janela Até o mar faz maré cheia Pra chegar mais perto dela (Chico Buarque de Hollanda)

2. Duas das orações adverbiais apresentam uma redução de palavra própria da língua falada? Que palavra é essa?

Fonte: CABRAL, 2000.

Observamos nesse excerto que o estudo gramatical, abordado nessa perspectiva puramente taxionômica, faz do texto literário apenas o pre- texto para a atividade linguística que, por sua vez, não exige do estudante uma reflexão sobre o sentido mais geral do texto – daí porque é indife- rente apresentar toda a letra da música ou apenas uma estrofe. Tampouco a segunda pergunta leva a uma discussão sobre a relação entre o gênero musical e as características da língua falada, ignorando, por assim dizer, o valor que o texto da música agrega para o ensino.

Outro exemplo, já um pouco mais elaborado, foi extraído do livro didático publicado no âmbito do Projeto Araribá:

a) Que tempo exprime normalmente a palavra agora? b) Em que tempo está o verbo era?

c) Como você explica essa combinação de tempos? Relacione-a ao título da canção.

d) Na primeira estrofe foi utilizado um único tempo verbal do pas- sado. O que indica esse tempo verbal?

e) Na última estrofe, que formas verbais indicam um rompimento com a situação apresentada na primeira estrofe? Por quê?

f) Imagine por que o cavalo do herói só falava inglês.

Fonte: KANASHIRO, 2006.

O texto, aqui, compõe-se de duas estrofes da canção “João e Maria”. Trabalha-se o vocabulário, por meio de um glossário pré-selecionado, exi- mindo o estudante de pesquisar, ele próprio, no dicionário, não apenas os dois verbetes indicados, mas quaisquer outras palavras que ele, porven- tura, não conhecesse. As questões mesclam as tarefas taxionômicas (itens ‘a’ e ‘b’) com questões de interpretação de texto relacionadas ao conteúdo gramatical que está sendo trabalhado – a saber, o emprego dos tempos ver- bais. Somente a última questão diz respeito ao sentido mais geral do texto, propriamente dito.

Para ilustrar a mudança na perspectiva teórico-metodológica do ensino de língua portuguesa, trazemos à comparação duas questões de

prova de vestibular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), apli- cadas, respectivamente, nos anos de 2003 e 2011:

Pai, afasta de mim esse cálice! Pai, afasta de mim esse cálice! Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue. Como beber dessa bebida amarga, Tragar a dor, engolir a labuta, Mesmo calada a boca, resta o peito, Silêncio na cidade não se escuta. De que me vale ser filho da santa, Melhor seria ser filho da outra, Outra realidade menos morta, Tanta mentira, tanta força bruta. (Chico Buarque)

Questão 11

Na língua portuguesa escrita, quando duas letras são empregadas para repre- sentar um único fonema (ou som, na fala), tem-se um dígrafo. O dígrafo só está presente em todos os vocábulos de:

a) Pai, minha, tua, esse, tragar. b) afasta, vinho, dessa, dor, seria. c) queres, vinho, sangue, dessa, filho. d) esse, amarga, Silêncio, escuta, filho. e) queres, feita, tinto, Melhor, bruta. (UNIFESP, 2003)

* * *

De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada

O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato E também vai amiúde Co’os velhinhos sem saúde

E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir Joga pedra na Geni Joga pedra na Geni Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni

A partir do início do fragmento selecionado, uma série de versos conse- cutivos caracteriza a personagem Geni numa mesma direção semântica e segundo uma mesma lógica, até que um determinado verso provoca uma ruptura significativa nessa trajetória, criando uma intensa oposição de sen- tido no poema. Esse verso está transcrito em:

a) Dá-se assim desde menina. b) É a rainha dos detentos. c) Ela é um poço de bondade. d) Joga pedra na Geni. e) Ela dá pra qualquer um. (UNIFESP, 2011)

É de interesse observar que, na prova aplicada em 2003, o conheci- mento requerido para responder a questão independe da leitura do trecho da música de Chico Buarque selecionada como pretexto para a abordagem do conteúdo gramatical. Já na prova de 2011, privilegia-se a questão inter- pretativa, que pode ser trabalhada também da perspectiva das categorias gramaticais que distinguem o verso da música que representa a ruptura semântica a que a questão se refere: à exceção do verso explicitado no item ‘c’, que possui verbo no imperativo, todos os demais apresentam um tipo de construção verbal predicativa, em que os elementos internos ao sintagma verbal apontam para as características da personagem Geni.

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 32-35)