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Anazildo Vasconcelos da Silva

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 52-54)

As vanguardas, designação geral que arrola os grupos e as correntes poéti- cas que se sucederam e se mesclaram na disputa da série literária, entre as quais se destacam a Poesia Concreta (1956), a Poesia Práxis (1962), o Poema Processo (1967) e a Poesia Semiótica (1970), surgiram no panorama literário brasileiro através de um número considerável de manifestos e uma grande diversidade de programas. A implantação de um novo movimento literário se faz através de um processo de ruptura com a geração poética vigente e de integração da tradição literária a uma nova concepção poética que lhe dá continuidade. No caso das vanguardas, se dá a ruptura com a tradição modernista da geração de 1945, e a integração da tradição literária a uma nova proposta poética de continuidade, aberta ao experimentalismo linguís- tico. Numa visão globalizante, as vanguardas se caracterizam pela experi- mentação formal na linguagem, valendo-se, para isso, de suporte teórico definido. Vão da desnuclearização da palavra, a “palavra coisa” no espaço branco da página, ao poema-código ou semiótico, que trabalha com sig- nos não verbais, e daí ao pop-concreto, que utiliza toda sorte de recursos materiais, como recortes de jornais, fotomontagens etc., até a consumação do processo gradativo de exclusão da palavra, que acaba por eliminar a natu- reza verbal do poema. As Vanguardas, motivadas pela exploração de novas formas de linguagem, ingressavam cada vez mais, através de seus sucessivos desdobramentos, no campo das artes plásticas, fazendo de elementos não verbais o núcleo preponderante e fundamental da criação lírica. Centrando o fazer poético na transformação das estruturas linguísticas isoladas em si mesmas, dissociadas das estruturas de realidade inerentes a elas, acabaram por desarticular os polos linguagem e realidade, suporte básico de articula- ção do projeto poético brasileiro, levando a série literária a um fechamento.

Resistir ao poder das vanguardas no próprio espaço literário seria inoperante, uma vez que a série literária se ressentia ainda do excesso de

manifestos em que, diga-se de passagem, as vanguardas também foram pródigas – que cobrem, quase sem interrupção, o período de 1922 a 1960. De modo que lançar mais um manifesto, mesmo com o intuito de deflagrar uma nova postura poética, seria inútil e ineficaz, devido à falta de resposta da série literária a esse tipo de apelo. Diante de tal quadro, as alternativas para os poetas da geração de 19602 que não comungavam com as ideias for-

malistas da vanguarda, comprometidos que estavam ainda com a tradição verbal da poesia feita de palavras e versos, eram produzir e publicar sua obra em silêncio, afrontando os padrões ditados pelas vanguardas, ou bus- car outros campos de atuação. Foi assim, por tais injunções, que a poesia invadiu o setor música popular e ganhou o rádio e a televisão, e o palco dos festivais da canção virou plataforma de lançamento dos manifestos poéti- cos da geração 1960. Rompe-se o paralelismo entre a manifestação poética literária, a poesia, e a manifestação paraliterária, letra poética, que passam a utilizar conjuntamente os canais de comunicação de massa, o rádio e a televisão. A uniformidade de canal não significa uma identidade das mani- festações, mas uma coexistência de duas formas de lirismo apenas, sem prejuízo de suas características específicas.

As vanguardas e a MPB não foram, todavia, as únicas propostas poé- ticas da geração de 1960. Há uma outra, representada por uma produção pessoal e bastante irregular, denominada poesia marginal. Em termos crí- ticos, a poesia marginal pode ser definida como uma produção poética desvinculada da série literária, mas que cumpria, ainda que parecesse à revelia, uma imposição da tradição literária. A marginalidade desses gru- pos decorre também do fechamento da série literária que excluía de seu âmbito qualquer proposta poética descomprometida com o experimen- talismo formal das vanguardas. Com isso, abriam-se duas opções para os poetas não vanguardistas da geração de 1960: invadir o setor música popular e gravar discos, ou fazer da marginalidade mesma a condição de sua permanência, exibindo-se em precárias edições populares, inclusive mimeografadas ou mesmo datilografadas, não raro distribuídas e vendidas pelos próprios autores nas faculdades, nos bares, na porta de cinemas e de teatros e em eventos populares. Daí a identidade poética entre a poesia marginal e a música popular, sustentada na recusa do experimentalismo

2 Minha intenção é configurar a Geração de 1960 historiograficamente, dentro e fora da série literária, a partir das propostas poéticas de ruptura e do posicionamento dos diferentes gru- pos atuantes, e não a formulação crítica de um conceito de geração poética.

formal das vanguardas e no aproveitamento de suporte da comunicação paraliterária. A poesia marginal, embora caracterizada pelo isolamento da produção individual, formava, todavia, agrupamentos distintos de poetas da geração de 1960, vinculados não por uma identidade poética de movi- mento, mas pela participação em publicações coletivas, entre os quais se destacam Violão de Rua, Poesia Viva, Ex-Poesia e Poesia do Mimeógrafo. Este último, englobando folhetos individuais e também coletivos como

Frenesi (1970), Nuvem Cigana (1972) e Vida de Artista (1974). Há que men-

cionar ainda o grupo de sustentação da continuidade da série literária, constituído pelo grande número de poetas que não participaram dos movi- mentos de ruptura, mas produziram uma obra poética pessoal relevante.

A música popular e a poesia marginal participam, igualmente, do pro- cesso de ruptura com o Modernismo, realizando o esgotamento da menta- ção lírica sobre a realidade, de forma equivalente ao esgotamento da men- tação lírica sobre a linguagem, operada pelas vanguardas. As vanguardas em seus desdobramentos (Poesia Concreta, Poesia Práxis, Poema Processo e Poesia Semiótica) de um lado, a MPB e a Poesia Marginal em seus desdo-

bramentos (Violão de Rua, Poesia Viva, Ex-Poesia e Poesia do Mimeógrafo) do outro, sustentaram, nos extremos, a desagregação do suporte básico de evolução do projeto poético, obrigando a poesia brasileira a desmembrar- se e atuar, ao mesmo tempo, na série literária, com a primeira, e na série paraliterária, com as duas últimas. A visão crítica do movimento moder- nista, desdobrado em suas diversas fases evolutivas, impunha o reconhe- cimento da fragmentação do projeto poético em sua fase de esgotamento e, consequentemente, a integração definitiva da MPB, juntamente com as vanguardas e a Poesia Marginal, ao percurso literário brasileiro. O crítico e o historiador de nossa literatura que não levassem isso em conta perde- riam também a perspectiva crítico-evolutiva da própria poesia brasileira, mesmo porque a atuação da geração de 1960 nos diversos setores mencio- nados decretava o fim do movimento modernista brasileiro. Foi essa tese que defendi na Lírica modernista e percurso literário brasileiro (1980), obra em que traço a trajetória lírica do modernismo desde sua implantação até o seu esgotamento, avaliando o papel das diversas gerações poéticas que atuaram em suas manifestações.

Muitos elementos marcaram essa presença da poesia no setor música popular, num efetivo congraçamento das séries literária e paraliterária. São exemplos disso: a presença na MPB de reconhecidos poetas da série

literária, por si mesmos, como Vinicius de Moraes e Capinam, ou através de parceria musical, como João Cabral de Melo Neto e Cecília Meireles, com obras musicadas por Chico Buarque; Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, com obras musicadas por Paulo Diniz; Gregório de Matos, Sousândrade, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos e Ferreira Gullar, por Caetano Veloso; Cassiano Ricardo e Fernando Pessoa, por João Ricardo; Castro Alves, por Carlos Imperial, e tantos outros; a atuação simultânea em livro e disco de poetas como Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar, José Carlos Capinam, Torquato Neto, Jorge Mautner, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro e outros; a participação nas discussões teóricas que agitavam o panorama artístico brasileiro, como nos famosos debates do Teatro Opinião, e outros por aí a fora, como entrevistas, ensaios e, até mesmo, a criação de movimentos poéticos dentro da MPB, de que é exemplo o Tropicalismo.

Vinculando a produção poética da geração de 1960 na MPB, na Poesia Marginal e nas Vanguardas ao projeto poético brasileiro, eu pugnava não apenas pela legitimação dessa geração como um todo, mas também pelo reconhecimento e a integração de uma produção poética que estava aparen- temente apartada da série literária. Expressava a opinião, defendida durante esses anos todos, de que a avaliação da produção poética da geração de 1960, dentro e fora da MPB, tinha de ser feita no âmbito da Literatura Brasileira, de acordo com os padrões críticos que definem a evolução das formas literá- rias, e não apenas no contexto paraliterário. E é com satisfação que constato a incorporação definitiva dessa postura crítica à nossa historiografia literá- ria, comprovada na farta bibliografia, incluindo teses, antologias, songbook, ensaios críticos e históricos, além da inclusão da MPB nos livros didáticos de ensino de segundo e terceiro graus, efetivando, assim, a integração de toda a produção poética da geração 1960 no curso da lírica nacional.

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 52-54)