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a letra poética e a melodia

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 54-56)

A Lírica Buarquiana é poética e musical, logo há, incontestavelmente, uma íntima relação criativa entre a letra poética e a música da canção, o que tem levado muita gente a condenar uma abordagem dissociada, como a que empreendo aqui, sob alegações diversas, algumas até defensáveis, mas não o bastante para invalidar tal procedimento. Considerando que, numa aná- lise textual, a música integra o plano de expressão do poema, concordo, por

exemplo, que, numa análise conjunta, os recursos musicais, como estímulo significante da estrutura verbal, ampliam o efeito de sentido e vice-versa, já que, de igual modo, numa análise musical, a letra poética funciona como sig- nificante da estrutura melódica. Quando letra e música nascem juntas, acre- dito que haja influência interativa recíproca entre as duas, mas, concluída a criação, são duas formas artísticas independentes. Não concordo, por isso, com a afirmação de que não podem ser estudadas separadamente como dois diferentes sistemas sígnicos que são, ou de que a dissociação cause danos artísticos a uma ou a outra, impedindo a interpretação das duas linguagens em seus respectivos campos discursivos, o musical e o verbal. Cada poema é um signo, vinculação de uma unidade de expressão (o significante) a uma unidade de conteúdo (o significado), de modo que os elementos formais do poema (rima, métrica, matrizes sonoras etc.) podem integrar os recursos musicais na prosódia do poema, assimilados na construção do significante poético, sem que isso impeça estabelecer um paralelo entre eles.

Algumas considerações da nossa tradição cultural recente são impor- tantes para encaminhar o pensamento sobre a questão. Por exemplo, quando Chico Buarque musicou o poema “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, criou-se uma nova estrutura sígnica indissolúvel que impõe a consideração da estrutura melódica para o entendimento e a interpretação da estrutura poética, invalidando as abordagens críticas dissociadas anteriores e posteriores? As letras de Manuel Bandeira para músicas de Villa-Lobos invalidam a análise musical sem considerar a letra, e vice-versa? Acontecerá o mesmo com poemas de Drummond musicados por Paulo Diniz, de Gregório de Matos, Oswald de Andrade e Castro Alves por Caetano Veloso, e de Vinicius por Tom Jobim ou por Gerson Conrad? E que dizer de uma música de Sivuca ou de Tom Jobim, com gravação instrumental independente, que depois ganham letra de Chico Buarque, ou de uma música clássica na qual um poeta põe uma letra? E da grava- ção instrumental de músicas de Chico Buarque com o violão de Paulinho Nogueira ou com o piano de Camargo Mariano? E da publicação de letras de Chico e Caetano, por exemplo, sem as respectivas partituras, em antolo- gias poéticas, alinhadas com poemas outros que nunca tiveram música? E o songbook reunindo letra e música em volumes separados? Os exemplos poderiam se multiplicar ao longo de dezenas de páginas, arrolando dife- rentes músicos e poetas.

Entendo que Chico Buarque, por uma compulsão criativa, reúne num único ato de criação artística dois de seus talentos, o de músico e o de poeta, o que não significa, rigorosamente, que não possa utilizá-los sepa- radamente. Não é o que ele faz quando cria uma letra para a música de um parceiro ou quando acontece, embora raramente segundo ele, de fazer pri- meiro a letra ou a música e só depois completá-las, tornando-se parceiro de si mesmo? E, como se não bastasse, há um “Tema para Morte e vida Severina” sem letra e, também, há os quase cinco mil versos da peça Gota

D’água, rimados e metrificados, mas não musicados.

Poesia e música nasceram juntas e constituíram, durante muito tempo, uma só expressão artística, inclusive com adição da coreografia em tempos mais recuados. Na segunda época medieval, elas se separam e passam a constituir duas artes distintas, a música e a poesia. A poesia trovadoresca reúne uma produção de milhares de poemas, de centenas de autores, sem o correspondente musical da criação original. Ora, negar a impossibilidade da dissociação de letra e música em Chico Buarque, certamente se negaria, sob essa mesma argumentação, o reconhecimento dos trovadores e jograis medievais como poetas e de suas respectivas canções como poesia.

No caso brasileiro, a invasão da MPB por um grupo poético da geração de 1960 proporcionou o reencontro de música e poesia, que foi importante, sobretudo, para a poesia, primeiro por recuperar a oralidade do poema e, segundo, por utilizar um poderoso canal de comunicação de massa. O canal gráfico, via tradicional da comunicação literária, em que pese o aper- feiçoamento das técnicas gráficas, está sensivelmente defasado se compa- rado aos canais de comunicação de massa, o sonoro e o visual, uma vez que a leitura continua sendo um ato solitário. Se no passado o gráfico era o único canal de informação, se quem não soubesse ler era considerado cego, surdo e mudo, a criança dispõe hoje, antes mesmo de ser alfabeti- zada, de um acervo informativo tal que a escola se lhe afigura uma institui- ção ultrapassada.

O setor Música Popular apresentava-se com todas as características do lirismo paraliterário,3 de modo que as canções não ingressavam no campo

da música erudita nem no campo da literatura. De um lado, a crítica musi- cal não reconhecia qualidade na melodia, de outro lado, a crítica literária não reconhecia qualidade na letra poética. Junte-se a isso o caráter refe-

3 A formulação teórica está em SILVA, 1975.

rencial e a linearidade da mensagem, a ausência de tensão verbal e o não questionamento da sua significação, a emoção fácil e a sentimentalização como formas de evasão e alienação. Em termos estruturais, a letra redupli- cava as estruturas líricas românticas já esgotadas, produzindo mensagens redundantes como convi te à evasão das relações cotidianas. Reafirmava a perspectiva subjetiva diante das paixões não correspondidas e das traições sentimentais. Tecni camente utilizava canal de comunicação de massa, o que lhe assegurava rápida difusão. De acentuado caráter comercial, sua valoração, em termos de sucesso e consumo, dependia da consagração pública, daí os traços simplificadores do produto.

Não se trata, portanto, de defender uma evolução qualitativa da letra poética dentro do setor Música Popular, até atingir, em termos estruturais e criativos, o estatuto da manifestação literária que a transformaria em poe- sia, mas de defender a invasão do setor, por um grupo de poetas da geração de 1960, que elege a MPB e não o livro como canal de comunicação literária. Refiro-me à presença da poesia na MPB, que produziu o poema musicado, e não à produção paraliterária própria do setor. A canção é uma articulação de letra e música e, como tal, é possível considerar uma separada da outra, mas isso não vai alterar a natureza paralitéraria da obra, do mesmo modo que, no poema musicado, a análise da letra separada da música não altera a natureza poética do texto.

Não vejo argumentação crítica ou teórica que invalide o estudo sepa- rado da letra e da música, negando a elas a capacidade de gerarem os efei- tos de sentido independentemente, introduzindo um elemento redutor do efeito poético no processo de criação de uma e de outra. Por isso, mesmo para uma análise integrada de letra e música, é necessário reconhecer, num primeiro passo, a individualidade discursiva das duas obras para, em seguida, comparar uma mesma motivação poética expressa em duas lin- guagens diferentes, buscando uma correspondência entre as duas formas de produção de sentido. A motivação poética, em princípio, independe da linguagem através da qual se manifesta, mas, uma vez conformada à vinculação sígnica indissolúvel, assume a natureza dessa linguagem (seja verbal, musical, pictural etc.) e confunde-se irremediavelmente com ela. Cada obra, conformada à elaboração significante de uma linguagem, cons- titui uma expressão artística única, de modo que, na análise do poema musicado, se a construção do sentido se fizer a partir da letra, a melodia integrará o plano da expressão verbal, e vice-versa, ou então se constrói

o sentido em cada um isoladamente, a partir dos recursos de expressão e conteúdo que lhes são próprios, e faz-se, depois, uma análise comparada de dois objetos semióticos distintos. Nesta última hipótese, seria como, por exemplo, fazer as análises individualizadas de uma fuga de Bach e de um poema de Gôngora e, em seguida, uma análise comparada das duas obras. Para concluir, reafirmo que minhas considerações assinalam um momento de inserção do setor MPB no percurso literário brasileiro,

mediante a invasão poética da geração de 1960, mas isso não quer dizer que nunca aconteceu anteriormente, sob novas injunções culturais, ou que, no futuro, não venham a acontecer outras invasões poéticas deliberadas no referido setor.

referências bibliográficas

SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A paraliteratura. In: PORTELLA, Eduardo et al. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

______. A lírica brasileira no século XX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Opus, 2002.

Mia Couto, leitor de Chico Buarque: um novo

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 54-56)