• Nenhum resultado encontrado

Lemuel da Cruz Gandara

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 84-87)

Todos juntos somos fortes Somos flecha e somos arco Todos nós no mesmo barco Não há nada pra temer

chico buarque

Chico Buarque está presente em todos os âmbitos da arte brasileira. Sua palavra cantada, recitada, encenada, filmada e respondida ao longo dos anos se tornou basilar para nos compreendermos enquanto nação que, aos poucos, se restaura de épocas obscuras de nossa história. O movimento dialógico da palavra de Buarque encontrou solo fértil no cinema durante as décadas de 1970 e 1980. Conforme Adélia Bezerra de Meneses (2002), no período ápice da ditadura militar implantada no país, Chico Buarque passava por uma evolução política que também se configuraria como evo- lução poética.

Segundo Sylvia Helena Cyntrão, “o engajamento, a militância política da arte de Chico Buarque foi circunstancial, embora qualquer expressão literária contenha nos signos utilizados a marca do tempo em que foi pro- duzida. Se havia um papel a ser cumprido nesse sentido, Chico Buarque o realizou” (2000, p. 123). Essa perspectiva, que converge as duas facetas que elencamos, contribui para entendermos que a palavra do artista está marcada pelo seu momento de enunciação, mas nem por isso está restrita a ele. No contexto brasileiro, o golpe militar de 1964 despertou nos jovens daquela época um movimento que até então não se vira, e isso se refletiu na arte produzida por eles. Ainda conforme Cyntrão, os estudantes uni- versitários passaram “a representar a maior oposição social à ditadura. No âmbito cultura, os festivais universitários foram os grandes divulgadores das canções que veiculam o protesto dessa camada social. Assim, letras em tom épico transformam-se em hinos contra-ideológicos” (2000, p. 90).

A partir dessa constatação sobre letras musicais em tom épico que tra- zem em seu interior uma posição contra a ideologia opressiva da época, queremos pensar sobre como a música de Buarque começou a habitar a literatura e o cinema na década de 80. Com isso, chamamos a atenção para nosso conceito in progress sobre o cinema literário e a tradução coletiva. Compreendemos o artista como membro de uma coletividade criadora que traduz o texto literário para o cinema. Nesse contexto, tendo em vista que nosso autor compôs músicas originalmente para filmes brasileiros que adaptaram as páginas dos livros, podemos conjecturar o cinema literá- rio de Chico Buarque. No nosso caso, o foco é Os saltimbancos trapalhões (1981), filme dirigido por J. B. Tanko.

O cinema literário é composto pelas adaptações de obras da literatura, nesse sentido, nós consideramos as traduções coletivas como parte sinto- mática dessa atividade. No entanto, também vislumbramos que o cinema literário está conectado às várias formas de diálogo entre essas duas artes. Nesse viés, Robert Stam, no livro Bakhtin: da teoria literária à cultura de

massa, faz uma leitura muito pertinente sobre a relação do dialogismo

bakhtiniano com o cinema:

O conceito multidimensional e interdisciplinar do dialogismo, se aplicado a um fenômeno cultural, como um filme, referir-se-ia não apenas ao diálogo dos personagens no interior do filme, mas também ao diálogo do filme com filmes anteriores, assim como ao diálogo de gêneros ou de vozes de classes no interior do filme, ou ao diálogo entre várias trilhas (música e imagem, por exemplo) além disso, poderia referir-se também ao diálogo que conforma o processo de produção específico (ator, diretor e equipe) assim como o dis- curso fílmico e conformado pelo público (STAM, 1992, p. 33-34).

Stam ajuda a concebermos que o cinema engloba vários discursos e inúmeras possibilidades de conversação. O texto literário, escrito na soli- dão, é respondido por uma coletividade de inúmeras formas. Esses diá- logos podem surgir dentro do filme, com a atividade dos personagens e o desenvolvimento da narrativa; nos elementos que compõem a estética fílmica, como a trilha sonora e a fotografia; e também entre os indivíduos envolvidos que levam suas memórias de leitura para seu ofício.

Dessa maneira, o cinema é uma das artes que se propôs, desde o seu surgimento, a movimentar leituras de obras literárias. Os filmes advindos delas apresentam-se em um como leitura e interpretação materializados no plano audiovisual. O fato de o cinema e a literatura instaurarem um

intercâmbio estético possibilita enxergar no filme não apenas uma adapta- ção do texto, mas também uma resposta, uma variante crítica e uma atua- lização. Ou seja, o cinema literário parte da obra e tudo aquilo à sua volta que “responde” artisticamente por meio do visual, do sonoro e da tela em um longo processo de tradução coletiva, pois a obra será, também, rece- bida por uma coletividade.

A tradução coletiva, por seu turno, talvez seja a mais completa forma de manifestação do cinema literário, pois concentra inúmeras leituras de um mesmo texto e engendra múltiplas interpretações dele em uma nova obra, o filme, nesse viés, “é uma concatenação das várias recepções dela em uma obra única” (GANDARA; SILVA JR., 2013, p. 160). A noção benja- miniana de que “o filme é uma criação da coletividade” (2010, p. 172) e a recepção ativa-criativa preconizada por Bakhtin (2003) permitem pensar na função do leitor/tradutor durante o processo de criação da obra fíl- mica. Assim, essa tradução se preocupa com a recepção de uma obra no âmbito de um grupo (ou parte dele) envolvido em uma arte coletiva, como é caso de Chico Buarque.

Nesse sentido, a tradução coletiva da fábula da cultura popular alemã

Os músicos de Bremen, transposto para os livros pelos irmãos Grimm, é uma

obra acabada, pois conclui em si um fazer artístico; mas também é inaca- bada, porquanto passa a alimentar o grande tempo, dimensão bakhtiniana para o tempo da arte (2003). Se a tradução coletiva no cinema literário exige várias mãos, múltiplas vozes e uma multiplicidade de ações e olhares, se torna necessário perceber que todos os envolvidos em uma tradução cole- tiva reverberam no resultado final. No nosso contexto, a trilha sonora é resultado de uma leitura musical que Chico Buarque fez da adaptação de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov, e também da escrita dos Grimm.

Ao considerarmos que o cinema literário de Chico Buarque, mani- festado em suas composições para o referido filme, propõe levar para as telas uma leitura musical não somente do texto, mas também uma crítica à política opressiva que se estabelecera no país com a ditadura, podemos inferir que, além do processo poético, Chico também evoluía sua posição política, como fora aludido por Meneses (2002).

A música fora adaptada por Chico Buarque a partir da versão que Sergio Bardotti fez para o teatro da fábula dos Grimm. É justamente em “Todos juntos” que, na versão para o teatro, são apresentadas as principais características de cada um dos personagens. Ou seja, é nessa música onde

acontece o maior enlace entre a peça teatral e o texto fonte. A coletividade do teatro deu vida às palavras da literatura em uma peça que marcou o Rio de Janeiro em sua estreia, no Canecão, em 1977.

A coletividade cinematográfica, por sua vez, transpôs a obra qua- tro anos depois. O grupo de comédia televisiva Os trapalhões, que já era famoso pelos filmes que parodiavam obras literárias nacionais e interna- cionais, marcou sua parceria com o compositor e corroborou que o sucesso do filme levasse a mensagem política da música a um total de 5.218.478 de pessoas (dados do Observatório do Cinema e do Audiovisual – OCA, 2013). É bom salientar que em 1981, ano da obra, a população já passava a mudar sua percepção acerca da ditadura no país.

Para caber no formato fílmico, a música sofreu algumas alterações, como a substituição dos animais pelos personagens circenses, que fazem parte do contexto espacial onde o filme acontece, ou seja, no Circo Bartholo. Assim, eis como a música ficou no instante de projeção:

E o valente dos valentes/ ainda vai te respeitar/ Todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer/ ao meu lado há um amigo/ que é preciso proteger/ Todos juntos somos fortes/ não há nada pra temer/ O acrobata, o que é que é?/ – Confiante/ Trapezista, o que é que é?/ – Valente/ Não é grande coisa realmente/ Para um circo levantar/ E o palhaço, o que é que é?/ – Gozadis/ E a plateia, o que é que é?/ – Vibrante/ Tá ficando mais interessante/ Vamos ver no que é que dá/ Todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer/ ao meu lado há um amigo/ que é pre- ciso proteger/ Todos juntos somos fortes/ não há nada pra temer/ E o valente dos valentes/ ainda vai te respeitar/ Todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/ Todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer/ ao meu lado há um amigo/ que é preciso proteger/ Todos juntos somos fortes/ não há nada pra temer (01:32:33).

Ao consideramos que uma música dentro de uma narrativa terá um efeito sobre o público (GORBMAN, 1987), podemos definir que o teor de “Todos juntos”, quando encenada e cantada na obra, convida a um levante em termos épicos. Na sequência do filme, os saltimbancos saem do meio de uma mata, se encontram com outros profissionais circenses e chegam caminhando à cidade. Lá, seguem em direção ao circo, que é comandado pelo Barão. Os famintos e pobres saltimbancos, agora multiplicados, se impõem a este chefe valente que, então, deve respeitar a todos, que juntos não mais o temem.

Percebemos que ficam quase explícitas perspectivas marxistas como a luta de classe, mas, traduzidas para o contexto de Chico, está mais para uma população que precisa se unir para se livrar do julgo ditatorial que, já nesse período, fizera um número imenso de mortos e “desaparecidos”. A música, escrita para uma fábula infantil e um filme popular, procura alertar o povo sobre seu poder diante da opressão. Essas questões são próprias de Chico Buarque nessa época e ecoaram dentro do teatro e do cinema, duas artes coletivas. Conforme já foi dito antes sobre as músicas que se apresen- tavam como hino da juventude dessa época, podemos considerar que a forma como “Todos juntos” entra no longa-metragem vem a corroborar a ideia de uma canção para celebrações, nesse caso a vitória dos mais fracos sobre os valentes, ou melhor, a vitória da liberdade diante da ditadura.

Chico Buarque, como um tradutor coletivo, propõe se unir à cultura televisiva daquele momento histórico, pois a televisão se popularizara antes mesmo da alfabetização da maioria dos brasileiros, conforme salienta Antonio Candido (2006). Assim, temos um músico que dialoga com seus pares e com a população, e responde à fábula alemã em um contexto total- mente distinto, o que acrescenta novas nuances ao próprio texto literário e ajuda a forjar o cinema nacional em tempos que pediam por uma união das forças para que todos juntos mudassem a história do país.

referências bibliográficas

ANCINE. Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA). Disponível em:

<http://oca.ancine.gov.br/>. Acesso em: 17 out. 2014.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Obras escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2010.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

CYNTRÃO, Sylvia Helena. Poetas e cancionistas: universo simbólico em contágio.

2000. 179 p. Tese (Doutorado em Literatura) – Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília. Brasília. 2000.

GANDARA, Lemuel da Cruz; SILVAJR., Augusto Rodrigues. Calças, saias e quin- quilharias mundanas: análise do vestuário do filme Lavoura arcaica pelo viés da Tradução coletiva. Orson, p. 153-167. Disponível em: <http://orson.ufpel. edu.br/content/05/artigos/o_processo/03_augusto_junior.pdf.> Acesso em: 10 out. 2014.

GORBMAN, Claudia. Unheard melodies, narrative film music. Indiana: Indiana University Press, 1987.

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Os músicos de Bremen. Tradução de Maria

Heloisa Penteado e ilustrações de Anastassija Archipowa. São Paulo: Ática, 2012.

HOLLANDA, Chico Buarque de. Os saltimbancos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

MENESES, Adélia Bezerra. Poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

filmes

OS SALTIMBANCOS TRAPALHÕES. Direção de J. B. Tanko. Brasil, 1981. 95 minutos.

STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Tradução de Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992.

Pelo olho mágico: uma visão pós-moderna

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 84-87)