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Brunna Guedes Marques de Lima

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 75-79)

Tenho como objetivo apresentar reflexões que têm permeado a pesquisa de doutorado que realizo, intitulada “A cidade toda em contramão: uma leitura da hipermodernidade nas canções contemporâneas de Chico”, que procura identificar de que formas o imaginário coletivo, em meio ao con- texto hipermoderno, é representado a partir do simbólico construído nas letras do álbum Chico (2011), de Chico Buarque de Hollanda.

Considerando as reflexões de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2011) sobre os contínuos movimentos de ruptura, deslocamentos e descontinui- dades propiciados pelo século XX, investigou-se as alterações em diferen- tes conceitos vinculados à hipermodernidade: as identidades, o consumo, a mídia, a globalização e os relacionamentos. Os filósofos atribuem a desar- ticulação contemporânea às fraturas nos três grandes marcos referentes aos domínios da arte, dos costumes e da economia que comandam a organi- zação do mundo e da cultura. A primeira fratura ocupa-se do liberalismo

artístico total, observa-se a destruição da arte burguesa e dos códigos das

formas expressivas tradicionais. É o triunfo da “arte contemporânea”. O libe-

ralismo cultural marca a segunda fratura, a partir de 1960. Vê-se a escalada

do hiperindividualismo sustentado no abalo das normas da vida rotineira, dos ideais burgueses e dos relacionamentos entre os sexos. A terceira e última fratura evidencia o liberalismo econômico na virada dos anos 1970-80.

Assim tem origem a “hipercomplexidade” caracterizada por uma sociedade liberal regida por uma lógica paradoxal: de um lado o movi- mento, a fluidez, a flexibilidade, o desapego diante dos modelos estruturais da modernidade (como a nação, o Estado, a religião, a família, a política), do outro lado a crispação, a reação, o retorno a uma tradição reciclada pela lógica da modernidade. A hipermodernidade é também a memória revisitada, a remobilização das crenças tradicionais, a hibridização indivi- dualista do passado e do presente. A desconstrução dá lugar ao reemprego

das tradições, livre de qualquer imposição institucional, ao ininterrupto rearranjar delas de acordo com o princípio da soberania individual.

O estudo textual das letras poéticas proposto na pesquisa verifica de que forma o artista Chico Buarque de Hollanda representa esse tumultuado contexto, como conduz as questões existenciais que o fazem produzir no século XXI e que sentidos mobiliza na dinâmica multifacetada de sua cria- ção. Chico produz uma obra rica em imagens e símbolos, munida de grande cuidado formal, conteúdo denso, tensão verbal e abrangência ilimitada. O poder e a força do lirismo de um eu poético sensível e constantemente atua- lizado, imerso na realidade dos sujeitos de seu tempo, revela a experiência de ser humano, compondo seu acervo textual, seja por meio do lirismo, do humor, do drama ou da tragédia. Por tudo isso, a obra de Chico Buarque é exemplar graças a uma multiplicidade de vozes que se articulam com o objetivo de submeter texto e leitor em um determinado contexto social e histórico, capaz de estabelecer sentidos e interpretações do Brasil.

Considerar uma análise cronológica de alguns dados biográficos rele- vantes do artista possibilitou o entendimento das transformações sofridas por ele ao longo do tempo e a compreensão de como a “persona”, formada em meio à vida pessoal, é revelada como voz discursiva em sua obra. Em seu último álbum, Chico Buarque recorre à memória, seja a memória poé- tica da lírica de suas composições passadas ou as memórias da sua própria experiência existencial, como matéria das letras das canções, o que atualiza e alinha sua obra ao contexto hipermoderno. Em Chico as memórias do momento de luta e violência do passado, de engajamento artístico das déca- das de 1960 e 1970, ficam retidas no esquecimento da memória poética. A maturidade torna o poeta um sujeito pacífico, que retira a carga dramática das canções dos tempos políticos. Contudo, o sujeito Chico Buarque do século XXI não é passivo. Ele segue engajado enquanto observador e crítico dos novos tempos, fazendo uso da memória poética nas canções de Chico. O artista reinterpreta e transfigura imagens, gêneros, discursos, linguagens artísticas, atualizando os diversos sentidos da sua obra, no intuito de reve- lar uma outra faceta do seu projeto poético de criação.

De todo o modo, uma das hipóteses investigadas é que, apesar de todas as transformações nos modelos de comportamento, a canção atual de Chico Buarque permanece como uma forma de resistência, desta vez contra a homogeneização da tradição cultural brasileira.

Em um dos primeiros ensaios sobre a poesia de Chico, “Chico Buarque: a música contra o silêncio”, Affonso Romano de Sant’Anna (2004,

p. 161-162) explica como as letras do artista, até aquele momento, podiam ser divididas em duas fases. No primeiro momento, o simbólico presente nas imagens da banda, do samba e do carnaval, tão recorrente nas letras, traduz o “instante de utopia [...] cria o estado de exceção”. No segundo momento, o lirismo de “A banda” dá lugar “à dramaticidade do ‘Cotidiano’ e à tragédia da ‘Construção’”. As “considerações líricas sobre os pequenos incidentes do dia a dia” dão lugar ao sujeito engajado “no exercício da cons-

trução musical, articulando tijolo com tijolo num desenho lógico”.

Propõe-se a analisar uma terceira fase da obra musical de Chico Buarque, das composições nascidas em plena hipermodernidade, nas quais noções de hibridismo, individualismo e urbanismo se fazem pre- sentes nas letras a partir da década de 1990. Os versos de “Querido diá- rio”1 (2011) servem como demonstrativo exemplar desse novo momento

das composições do artista que dialogam com o espaço e a sociedade con- temporânea, sem abandonar o lirismo da primeira fase, movimento esse que atualmente se converte num dos principais recursos de resistência e denúncia social das angústias e da pressão vividas pelo sujeito hipermo- derno, numa reciclagem que remete a segunda fase da sua obra. Nota-se, principalmente por meio da nostalgia e do retorno à tradição, um novo modelo da canção buarquiana fundamentado numa espécie de releitura das fases anteriores. A letra é composta pelo relato de um eu lírico sobre seu cotidiano no tempo hipermoderno – tão bem descrito por Lipovetsky – das disfunções sociais (“Hoje a cidade acordou toda em contramão”), das angústias existenciais (“Hoje pensei em ter religião”), das relações fluí- das e da necessidade de completude (“Hoje topei com alguns conhecidos meus/ Me dão bom-dia, cheios de carinho/ Dizem para eu ter muita luz, ficar com Deus/ Eles têm pena de eu viver sozinho”). Daí surge um novo paradoxo contemporâneo: sujeitos que procuram a reintegração do ser em meio ao fragmentado mundo “hiper”. Os indivíduos vivem assolados pela imediatez, confusão e velocidade desse tempo, sem abandonar a busca pela compreensão da condição humana em completude.

1 Hoje topei com alguns conhecidos meus/ me dão bom dia cheios de carinho/ dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus/ eles têm pena de eu viver sozinho. Hoje a cidade acordou toda em contramão/ Homens com raiva, buzinas, sirenes, estardalhaço/ De volta a casa na rua/ Recolhi um cão/ Que de hora em hora me arranca um pedaço/ [...] Hoje afinal conheci o amor/ E era o amor uma obscura trama/ Não bato nela, não bato/ Nem com uma flor/ Mas se ela chora/ Desejo me inflama/ Hoje o inimigo feliz veio me espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me quebrar/ Mas eu não quebro não/ Porque sou macio, viu?”

Diversas temáticas povoam a composição, todas envolvidas no turbu- lento contexto hipermoderno tão bem descrito por Lipovetsky: a solidão, os relacionamentos, a traição, a confusão e pressa das grandes cidades, os ideais religiosos em meio à falta de referenciais do passado, o amor, entre outros. O eu poético narra os acontecimentos do seu “Hoje”, registro lin- guístico comum nos diários, que ganha ênfase ao ser repetido nos primeiros versos de cada uma das cinco estrofes da canção e que serve “como suporte de configuração rápida das lembranças memoráveis do poeta, guardadas na memória poética da lírica buarquiana” (SILVA, 2013, p. 78). A letra poética pode ser dividida em cinco registros autônomos, cada estrofe representa um contexto da vida do eu lírico. O primeiro apresenta a relação do sujeito poético com a comunidade próxima: “os conhecidos”. O segundo revela uma imagem da sociedade contemporânea: o espaço e comportamento social. O terceiro está relacionado ao contexto de fala da transcendência, observa-se o conceito de elevação espiritual por meio da sublimação da relação amorosa. O quarto aborda a “obscura trama” do amor. E o quinto sobre o comportamento do eu lírico frente às adversidades atuais.

Logo na primeira estrofe nos é apresentado o eu lírico que, apesar dos contatos passageiros com “conhecidos”, revela “viver sozinho”. Essa é uma imagem típica da contemporaneidade onde os indivíduos vivem relacio- namentos cada vez mais fluídos, fugindo dos vínculos que levam ao risco da decepção diante do rompimento. O sentimento de solidão, frequente na sociedade hipermoderna, está ligado à individualização dos modelos de vida, ao enfraquecimento dos vínculos coletivos e ao esvaziamento das instituições familiares e religiosas.

Na segunda estrofe o sujeito apresenta um olhar voltado para a Cidade, sua pressa, confusão, frieza. O cão toma conta da vida do eu lírico já que todo o sentimento que ele não recebe dos “conhecidos” (nota-se que ele não diz “amigos”) é introjetado por meio da presença do cão apanhado das ruas. Um “pedaço” da ternura contida no sujeito é “arrancado” pela figura do cão, o seu único companheiro.

Já a metáfora polêmica da “mulher sem orifício” merece diferentes interpretações, pois é disso que a metáfora se alimenta, da liberdade de sig- nificação, mas, após mencionar a necessidade de “ter religião” e a figura da “estátua” pela qual teria adoração, podemos pensar que a “mulher sem ori- fício” é a Virgem Maria que concebeu seu filho, Jesus, sem pecado. Outra possível interpretação é a da mulher que apenas ama, sem o ideal carnal

que, sobretudo em tempos hiper, acompanha o relacionamento amoroso. Nota-se que o eu poético parece querer retomar comportamentos e ideais do passado que estão em descrédito nos dias hipermodernos. No século

XXI, a lógica tem apontado para viver o máximo possível e o mais inten- samente possível. A existência resume-se em uma simples experiência. Entretanto, o sujeito hipermoderno carece dos alicerces espirituais e religio- sos para enfrentar as asperezas e desilusões do seu tempo. Em uma entre- vista (HOLLANDA, 2010), Chico revelou: “Eu não tenho crença. Eu fui criado na Igreja Católica, fui educado em colégio de padre. Eu simplesmente perdi a fé. Mas não faço disso uma bandeira. Eu sou ateu como o meu tipo san- guíneo é esse”. Entretanto, ele afirmou: “Hoje há uma volta de certos valores religiosos muito forte, acho que no mundo inteiro”, indicando a mesma ten- dência que persegue o eu lírico da letra: “Hoje pensei em ter religião”.

Em suas composições, o artista usa da hibridação textual e contextual, além do diálogo interiorizado com a própria obra, compondo o perfil con- temporâneo da lírica buarquiana. O trovador de “Querido Diário” é um típico sujeito contemporâneo oscilando entre o arcaico e o moderno, cons- tatando a caótica urbanidade em que está imerso. Até mesmo a melodia é vítima desse modelo paradoxal quando a sofisticação melódica do início da canção dá lugar, já na segunda estrofe, ao singelo ritmo violeiro caipira. A canção ganha um quê de toada sertaneja, rural, em clara oposição com a “cidade toda em contramão”. Ao mesmo tempo, observa-se o uso da lingua- gem informal, popular, como o verbo “topar”, muito característico do coti- diano, ao invés de “encontrei” (“Hoje topei com alguns conhecidos meus”). A descoberta do amor possibilita ao eu lírico abandonar sua complexa e pedante observação do mundo, suas angústias e problemáticas (Deus, o trânsito, o cão), tornando-se parte dele. Apesar de todas as dúvidas, o amor faz com que ele abandone a frieza e a distância característica de um obser- vador, expondo seus desejos. Ainda assim, o sentimento amoroso é visto como “uma obscura trama”, visto que esse sentimento em qualquer época e lugar sempre terá algo de intrigante e indecifrável:

As imagens míticas do amor constituem inscrições simbólicas na cultura e nela circulam permeadas por fatores tais como força de representação da problemática humano-existencial, aceitação do grupo social em que cir- culam, injunções sociopolíticas relacionadas aos canais de sua circulação, entre outros. A representação literária, por sua vez, conjuga, de diferentes modos, o prazer estético e o papel social, em obras nas quais se reconhecem

as transformações das relações pessoais. É possível por essa via investigar os deslizamentos de sentido que o amor sofre na difícil integração do desejo dos indivíduos na ordem social (CYNTRÃO, 2013).

Desta vez, o eu lírico tem um inimigo oculto, que “Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me quebrar”. Evidencia-se novamente nesse diário de um homem comum o imaginário sertanejo presente na literatura regionalista. Mas ele consegue livrar-se da “tocaia” porque é “macio”, flexível. O sujeito revela que sabe viver as contradições e se adequar.

Nessa letra, Chico Buarque produz uma singular metalinguagem, já que em uma entrevista concedia a Revista Trip,2 em abril de 2006, o

artista já dava pistas sobre seu sentimento diante da crítica da imprensa que, segundo ele, o incomodava com “muita porrada” e que sentia como se algo o espreitasse “a cada esquina”, mas com o tempo foi ficando “mais calejado”, ou mais “macio”, conforme a letra. Nota-se a similaridade com os acontecimentos vividos pelo eu lírico de “Querido diário”: “Hoje o inimigo veio me espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio”.

Nos anos 80 foi barra-pesada. Você cansa, né? Tomando muita porrada, você vai perdendo a vontade de se expor a mais porrada. Eu tinha de ler o Jornal do Brasil com capacete, porque tinha porrada em tudo que era seção. Até a seção de gastronomia dava porrada. A Folha de S. Paulo, numa época, tam- bém era uma coisa barra-pesada. Isso, durante uns dez anos, foi muito chato. Principalmente uma certa imprensa paulista muito, muito agressiva. Depois melhorou um pouco. Hoje, não sei. Às vezes tenho a intuição de que algo está se armando [risos], que estão ali atrás, na esquina, espiando, “ele vai passar agora”, prontos para dar porrada. Mas as porradas também com o tempo vão doendo menos, você vai ficando um pouco mais calejado.

A pretexto de uma luta simbólica vivida pelo solitário eu lírico, pre- sente num primeiro nível de significação, o autor mostra enfrentar sua guerra particular contra os entraves da própria obra: a crítica, o tempo, a realidade, os caprichos da arte. Confirmando seu compromisso com o futuro e com as exigências estéticas impostas, porque é “macio, viu?!”.

referências bibliográficas

CYNTRÃO, Sylvia Helena. O que será que lhe dá?/ O que será que me dá?/ O que será que dá dentro da gente? Tradução da tradição amorosa na canção de

2 Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br/144/chico/01.htm>. Acesso em: 26 ago. 2014.

Chico Buarque. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos. São Paulo: Leya, 2013. p. 364.

HOLLANDA, Chico Buarque de. Podendo, vou até os 95. Revista Brazucaonline. São

Paulo, abr. 2010. Entrevista. Disponível em: <http://www.chicobuarque.com. br/texto/mestre.asp?pg=entrevistas/entre_brazuca_0410.htm>. Acesso em: 4 set. 2014.

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SANT’ ANNA, Affonso Romano de. Chico Buarque: a música contra o silêncio. In:

FERNANDES, Rinaldo de (org.). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as can- ções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/ Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 161-162.

SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A lírica buarquiana. In: FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos persegui- dos. São Paulo: Leya, 2013. p. 78.

documentos sonoros

HOLLANDA, Chico Buarque de (Compositor, intérprete). Chico. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2011. 1 CD.

“Ode aos ratos”: a exaltação

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 75-79)