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Elizabete Barros de Sousa Lima

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 79-82)

A contradição da vida cria seres iguais para viverem e se inscreverem em histórias diferentes. Somos sujeitos de um mesmo meio, mas que cons- truímos possibilidades de vida diferenciadas, não habitamos os mesmos espaços, não usufruímos dos mesmos privilégios, somos agentes de nossa história, de experiências diversas. Logo, desenhamos nossa trajetória em uma constante luta pela própria sobrevivência, partilhando de espaços e memórias que muito nos determinam e diferenciam dos outros. Isso pos- sibilita a construção de sistemas de classes, os quais nos tornam inferiores ou superiores aos outros. Somos todos animais racionais, mas que na festa da vida experienciamos mundos diferentes.

Frente a essas possibilidades de vida, a classe que está abaixo acaba sendo considerada inferior, a popular. Considerações importantes sobre a cultura popular foram realizadas por Mikhail Bakhtin, pensando a obra de François Rabelais, pois, para o pesquisador, o popular estava totalmente direcionado às classes populares, possuía um caráter não oficial, fugindo, nesse sentido, da espécie de caráter oficial que estava centrado no poder. Atribuindo atenção especial à sociedade da Idade Média, o pesquisador ressalta que a existência das classes foi o que possibilitou essa diferenciação entre os sujeitos e a forma de fugir a esse ideário foi, exatamente, a presença do cômico, a qual equaliza todos os seres, constituindo uma nova forma de vida que os universaliza, tornando os discursos da vida, mesmo que pro- visoriamente, iguais. É o que Bakhtin vai chamar de riso carnavalesco, não aquele que atinge uma parcela, mas o todo, é universal.

Nesse contexto é importante assinalar que as primeiras produções de Chico Buarque procuram, de alguma forma, responder aos problemas sociais de seu tempo, com atenção especial a figura do popular. No período marcado pela ditadura militar brasileira, o jovem Chico, com idade entre 20 e 30 anos, constrói suas canções em forma de protesto ao sistema político

vigente. Logo, suas obras se tornaram fontes de ironia, sendo esse fazer poé- tico os caminhos para fugir da ação da censura. Em linhas gerais, as pro- duções do compositor desse período procuraram, por meio da ambivalên- cia, construir uma roupagem para desviar o sentido original. Pois segundo Gilberto Carvalho (1982), “Chico, tendo transcendido sua própria técnica de exprimir o duplo, passou a exprimir também o triplo, o quádruplo.”

Assim, as composições originárias em tempos de ditadura militar se tornaram sintoma de um tempo, de um momento político em que a nova geração, sufocada pelo poder da censura, procurava um novo ídolo para se firmar. Na perspectiva de Carvalho, essas canções ganharam tamanha dimensão dentro do público ouvinte que tornaram-se as vias de respostas almejadas pelos jovens naquele momento. Mesmo que não visassem exata- mente a apresentar um determinado ponto de vista, passavam, de alguma forma, a compor e a construir o sentido crítico libertário simbolizado pelo público, em que a compreendiam e atribuíam os sentidos que necessita- vam. Nesse sentido, Chico constrói suas primeiras canções, para dialogar- mos com Moacyr Scliar (2004), com uma variação de sentidos, em que o situado nas entrelinhas é o que mais significava.

A canção de análise, “Ode aos Ratos”,1 composta por Chico Buarque

em 2001, é construída por um jogo de imagens que denunciam um sis- tema de vida à qual foge a qualquer concepção de classe, igualando o ser humano em que, dentro de uma determinada festa popular, perde todas as características consideradas elevadas e se equipara ao animal, marcado pelo irônico que detecta a situação grotesca em evidência e a denuncia por meio da linguagem. O que o compositor procura demarcar nessa letra de canção é o rebaixamento do ser à condição de animal, revelando essa outra face do ser humano por meio da imagem grotesca animalizada do sujeito.

Partindo para análise propriamente da letra da canção, é possível apontar que o próprio título, por si, já impõe um desafio ao leitor. Por que escrever um poema para os ratos, quais são as características que possibili- tam a ode? Nesse sentido, já podemos rastrear a presença do cômico desde o título, pela constante ambiguidade de definição. Sendo que a forma de descrição, construída a cada estrofe, ao mesmo tempo que exalta, vai dese- nhando os elementos de rebaixamento, equalizando os vários discursos e demonstrando a imagem do humano se diluindo na figura do animal.

O discurso manifestado na estrofe inicial procura, de alguma forma, justificar a alusão do título ao ressaltar a inquietude do animal em busca constante por alimentação. “Rato de rua/ irrequieta criatura/ tribo em frenética proliferação/ lúbrico, libidinoso transeunte/ Boca de estômago/ Atrás do seu quinhão.” Chico flagra nessas primeiras linhas poéticas a tra- jetória apresentada para o rato, propondo-se a comprovar seu difícil coti- diano para, com essa descrição, justificar o motivo da realização da ode. Na leitura da primeira estrofe dessa letra de canção, embora procuremos ligar nosso pensamento diretamente às ações humanas, nos é permitido atribuir estas características principalmente à figura do animal.

Quando nos encaminhamos para a leitura da segunda estrofe, nos deparamos com uma grande quebra da alusão do rato enquanto roedor. A tessitura da canção nos direciona para o outro lado, para o lado do humano, que causa terror, que se reúne em grupo para conseguir os obje- tivos almejados. “Vão aos magotes/ A dar com um pau/ Levando o terror/ Do parking ao living/ Do shopping center ao léu/ Do cano de esgoto/ Pro topo do arranha-céu.” Nesse momento já estamos diante do rebaixamento do homem à condição de animal, principalmente quando faz referência a sua origem de habitante dos esgotos. É o homem-animal que procura sua sobrevivência atacando o outro, invadindo os espaços sociais a procura de conseguir sua subsistência, como aludido pelas expressões magotes, paus, terror, esgoto. É construído por meio das imagens grotescas o retrato humano animalizado, fora da civilidade cotidiana.

Ao pensarmos essas duas partes da canção, encontramos um lado muito particular de Chico. Essa forma de fazer poético, em que conjuga vários significados para uma mesma canção, já é motivo de vários estudos. Esses estudos se propõem a destacar a plurissignificacão que as canções do compositor passaram a adotar como meio de fuga da censura. Tratar inicialmente o humano como animal, destacar a sua constante busca por alimentação, é também equiparar essas duas facetas do homem, aquele que age enquanto um animal, que, em busca de alimentação, supera o outro, mata, causa terror, diferente do civilizado, que possui o que necessita e não encontra necessidade para praticar determinados atos. Essa é uma das questões debatidas por Mikhail Bakhtin e que procura destacar uma cul- tura popular universalizadora, mas também integrante de um mundo às avessas, onde as coisas não funcionam no seu ritmo normal, um mundo

em que não há espaço para o rico e para o pobre, para o civilizado e o não civilizado, todos passam a integrar a mesma festa popular.

A sequência do texto poético configura uma parte mais acintosa de pensamento crítico e o rebaixamento se faz evidente discursivamente. “Rato de rua/ Aborígene do lodo/ Fuça gelada/ Couraça de sabão/ Quase risonho/ Profanador de tumba/ Sobrevivente/ À chacina e a lei do cão.” Neste momento o homem é apontado como originário do lodo, desres- peitador de sepulturas, mas principalmente fica demonstrado o drama da vida, a condição de sobrevivente do meio, subordinado à lei do mais forte, à lei do cão, destacando-se multidões que vivem das migalhas dos mais fortes, que lutam cada dia para continuarem integrando a sociedade. O que o compositor procura destacar nesse momento é a presença da luta de classe, fazendo do retrato carnavalizado forma de aproximação entre os indivíduos, meio de exclusão momentânea da alienação, para pensarmos com Mikhail Bakhtin.

A cada estrofe tecemos novos significados para a canção, a linguagem grotesca nos proporciona a imersão em um mundo animalizado, marcado pelo símbolo do rato, que se torna alegoria do homem. Esse discurso car- navalizado e reafirmado pelas imagens aponta as vias do rebaixamento já evidenciados no pensamento de Mikhail Bakhtin, e assinala a presença da figura de Chico enquanto cancionista popular. Nas linhas da composição, percebemos como o homem vai sendo diminuído à condição de animal. Dizer que sua origem é o lodo, que são habitantes dos esgotos é trazer ao patamar mais baixo. O jogo de palavras, a brincadeira com os sentidos é muito evidente nas canções de Chico, e compõe um projeto estético do compositor, que faz da palavra meio de acesso ao público.

Na quarta estrofe é possível destacar a construção de um sujeito objetivado. “Saqueador da metrópole/ Tenaz roedor/ De toda esperança/ Estuprador da ilusão/ Ó meu semelhante/ Filho de Deus, meu irmão”. Percebe-se aqui grande dualidade pois, ao mesmo tempo em que conti- nua a manutenção do discurso crítico já evidente ao longo da canção e que conduz ao rebaixamento, reafirmadas pelas expressões “saqueador de metrópole”, “roedor de esperanças”, apropriando-se de uma grande vio- lência discursiva, a canção nos encaminha para a dramaticidade. Quando o eu lírico se equipara ao rato, descrito por imagens grotescas nas linhas poéticas anteriores, acaba humanizando sua figura, mas ao mesmo uni- versalizando, aproximando dois polos que pareciam opostos. O retrato de

um sujeito inacabado é apresentado agora como filho de Deus e integrante da sociedade, assim como qualquer uma outra pessoa. Logo, procura-se justificar sua ação com essa similitude existente entre suas figuras, sendo as drásticas condições impostas pelo meio, o que o levou a perder as espe- ranças pela vida, a praticar diversas atrocidades sobre seu semelhante à condição de ser equiparado a um animal.

A estrofe final equaliza os dois discursos, aproximando o sujeito ao animal, resultando na quebra do conceito de classe que causava o distan- ciamento. O jogo que o autor faz com as palavras visa exatamente essa aproximação, os elementos que caracterizam a figura do humano se mes- clam, agora, com as do animal. “Rato/ Que rói a rapa do rei do morro/ Que rói a roda do carro.” Caso paremos para pensar em quem é esse rato, podemos pensar apenas na figura do roedor, entretanto, se nos aprofun- damos no sentido que procura ser destacado por essas linhas poéticas, podemos perceber que quem sobrevive à custa de restos dos grandes é o pobre, é o habitante das ruas, saqueador de lixeiras e catador de migalhas jogadas ao longo das ruas. O drama vai aumentando a cada linha, a forma grotesca como suas vidas vão sendo determinadas justifica os problemas e riscos que percorrem a cada momento, as necessidades pela sobrevivência, tornando evidente a carnavalização do cotidiano, rastro da miserabilidade que percorre a vida humana.

O final aponta exatamente para o símbolo do rato que vai roendo tudo, chegando a roer seu semelhante, a tirar o sorriso do outro, a destruir suas vidas nessa constância pela sobrevivência que é a própria vida, espaço de disputas e necessidades. Logo, podemos perceber ao longo da canção o riso do eu lírico, a devastação da natureza humana, que para a manutenção de sua sobrevivência se equipara ao animal. Passa por cima de seu próximo, destrói todas as outras formas de vida em busca da própria subsistência. Nesse momento, não estamos a falar de um homem específico, ou de uma classe social específica, mas da natureza humana, que passou a ser retra- tada nessa letra de canção de forma grotesca, destacando acontecimentos sérios por meio da comicidade e da ironia carnavalizada, é o retrato inaca- bado de uma vida inacabada. O discurso carnavalesco que se faz presente aliado à descrição grotesca da natureza humana apenas vem no sentido de colocar Chico Buarque no rol dos grandes pensadores do popular e que faz de seu discurso ferramenta descritiva da natureza devastada do homem.

referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o con- texto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2013.

CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.

FERNANDES, Rinaldo de. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

HOLLANDA, Chico Buarque de. Ode aos ratos. Disponível em: <http://letras.mus. br/chico-buarque/>. Acesso em: 3 de set.

MENESES, Adélia Bezerra de. Poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

Um cálice de versos e imagens:

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 79-82)