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José Castello

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 46-49)

Os personagens da ficção de Chico Buarque estão metidos em intensas aventuras que aproximam suas vidas da poesia. Na literatura de Chico, a vida não guarda a concretude e a regularidade que, por hábito, lhe atri- buímos. É, ao contrário, uma experiência instável e aflitiva, infiltrada pelo desconhecido e pela surpresa. A vida não transcorre em linha reta, mas em bruscas guinadas e aos sobressaltos. Também a palavra – instrumento precioso com que tentamos controlar a realidade é maleável, disforme e inconstante. Também ela – imitando os fatos da vida – é indigna de con- fiança. É tensa e turbulenta a relação entre literatura e vida. É dessa tensão – disso que está sempre prestes a se romper – que Chico arranca uma fic- ção que se confunde com a poesia.

Na ficção de Chico Buarque, há um constante vazamento entre realidade e fantasia, entre real e memória, entre presente e passado. Os personagens são seus próprios obstáculos. Como ninguém pode fugir de si mesmo, eles não têm saída. Chico escreve como se habitasse um pântano. Seus romances guardam a estrutura ambígua dos sonhos – em particular, dos pesadelos. Opõem-se, assim, à estética realista que dá as cartas hoje na literatura brasileira. Desvia-se do novo padrão dominante da “literatura internacional”. Essa nova literatura – dos best

sellers, das traduções a toque de caixa e das adaptações – exclui a poesia

e, assim, se torna dura e redutora. Mesmo que não tenha essa intenção, Chico escreve contra ela. Em seus livros, infiltrada pelo sonho, a realidade se racha e se fragmenta. As coisas deixam de ser apenas o que são. Tornam-se mais complexas, mais paradoxais, mais “poéticas”. Tornam-se menos vendáveis e exigem, por isso, mais esforço de seu leitor.

Os personagens de Chico vivem em estado de constante turbulên- cia. Eles experimentam uma elevação – eles perdem o chão. Essa elevação pode ser também uma queda. Ao escrever ficção, Chico Buarque não deixa de ser poeta. Ao contrário: ele expande o domínio da poesia para além da

grade dos versos e, com isso, se torna mais poeta ainda. Com suas associa- ções harmônicas de palavras, ritmos e imagens, a poesia dilata o domínio da realidade, tornando-a ainda mais enigmática e mais perigosa. As fron- teiras se racham, as certezas vacilam. Na ficção de Chico, a memória se confunde com a invenção – ela é alimentada pela invenção, é “uma inven- ção da invenção”. “A memória é uma vasta ferida”, diz Eulálio d’Assumpção, o protagonista de Leite derramado. Eulálio vive perdido em uma cadeia de antepassados homônimos. As fronteiras entre eles se quebram. As figuras, antes nítidas, aparecem borradas.

Também o leitor não sabe onde está pisando e justamente por isso não consegue largar o livro que tem nas mãos. Já em Estorvo, romance de 1991, o protagonista se vê diante de um obstáculo insuperável. De um entrave.

Estorvo é a história de um homem que, um dia, através do olho mágico de

seu apartamento, vê um desconhecido. Descreve: “Tem barba. Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto”. A máscara se torna mais convin- cente que o real. A visão se transforma em perturbação. O personagem de Chico passa a viver entre o sono e a vigília. Torna-se, assim, uma vítima de sua própria percepção deformada do mundo. De sua ignorância e de seus limites. É vítima de si mesmo – é o seu próprio estorvo. Também o romance guarda a estrutura de um pesadelo. Um primeiro olhar desenca- deia uma longa série de fatos desconexos e incompreensíveis. O homem barbudo que ele vê através do olho mágico se transforma em uma obses- são. Inundado por ideias fixas, o mundo se torna incompreensível. A partir daí, o protagonista de Chico já não sabe mais o que faz. Ele persegue ou é perseguido? Procura ou se esconde? Experimenta um grande incômodo, um forte desconforto. Não há uma origem precisa para seu mal. No mundo desfigurado que ele passa a habitar, as figuras se tornam intercambiáveis. O estorvo é o que o impede de avançar, mas também o que o faz avançar.

Estorvo é um romance sobre o desespero. Fala de algo que, em um mundo

despedaçado, disperso e poluído, nós, habitantes do século 21, conhecemos muito bem. Aqui se rompe, também, a fronteira entre personagem e leitor. O leitor não apenas lê o livro – ele está dentro do livro.

Também em Benjamin, de 1995, o protagonista Benjamin Zambraia se encontra retido em uma rede desconexa de obsessões. Nada em sua exis- tência é muito nítido. A vida tem a estrutura de um trauma. Benjamin vive sufocado por impressões vagas e por sentimentos que não consegue

nomear. Tem, por exemplo, a impressão de que sua vida é filmada. Essa duplicação (real = ficção) confere ao mundo uma grande fragilidade. Como classificar de real uma experiência que se duplica e se dissolve? Benjamin é um ex-modelo fotográfico – tem a vida, portanto, marcada pelas imagens, reproduzindo assim um atributo central do mundo contemporâneo. Ele vive perdido nas lembranças de um amor do passado. Trinta anos depois, não consegue se livrar da presença ostensiva de Castana Beatriz – que na verdade está morta. Um dia conhece outra mulher, Arieta Masé, uma cor- retora de vendas. Imediatamente se convence de que ela é filha de Castana. As obsessões se desdobram e o mundo se torna cada vez mais pantanoso. Estamos em um salão de espelhos que imita as imagens repetidas ao infi- nito pelas paredes espelhadas dos elevadores.

“Benjamin” é uma narrativa dominada por identidades difusas e infiéis, que vacilam entre o que são e o que pensam ser. Como se o mundo não passasse de um “reality show”, no qual o falso ocupa o lutar do ver- dadeiro e o extermina. Benjamin vive espremido entre o presente e um passado que não passou. O passado o devora – o passado devora sua exis- tência. Sempre fixado na imagem de Castana Beatriz, ele toma Arieta Masé como sua substituta. Entra, assim, em um universo no qual as figuras são intercambiáveis e em que a noção de verdade se evapora. Em vez de “ter uma vida”, Benjamin oscila entre vidas que não lhe pertencem. É arrastado por elas e se afoga. Culpa-se, todo o tempo, pela morte de Castana Beatriz, que teria morrido porque o amor que ele lhe deu não foi suficiente. É, ele também, um ex-modelo fracassado e insuficiente, que não chegou a ser o que é. Em sua busca obsessiva de Arieta, passa ver Castana em todas as mulheres que encontra. As identidades se desfazem, já não é mais possível dizer “Eu”. Benjamin é um romance sobre a insegurança do existir – outro sentimento que nosso mundo contemporâneo conhece muito bem.

O crítico Roberto Schwarz definiu os personagens de Chico, certa vez, como sujeitos “que cultivam a disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis”. Como sustentar um Eu em um mundo que não para de se fragmentar e de se liquefazer? Como saber quem somos em um mundo no qual as imagens – o virtual – tomam nosso lugar e parecem mais reais do que nós mesmos? O fracasso da identidade é também o tema de Budapeste, romance de 2003. Conta a história de um ghost writer, certo José Costa. Ao vender suas palavras e sua assinatura, ele se transforma em um fantasma ou, pelo menos, em uma máscara. Carregado para Budapeste,

Hungria, ele se torna Zsoze Kósta – transforma-se, assim, na falsificação da falsificação. O mundo é cheio de armadilhas: habitamos um poço sem fundo. Quem é Costa afinal? Nada é garantido, a realidade é não só imperfeita, mas traiçoeira. Com José Costa, Chico, mais uma vez, coloca em questão os per- sonagens realistas que sempre deram a marca da literatura brasileira. A rea- lidade é fluida e, por isso, não se deixa retratar. A realidade é um enigma.

Ao contar a história de José Costa, Chico sincroniza com nossa rea- lidade atual que é, ela também, duplicada, pulverizada e inconstante. Apresenta-nos um mundo – o nosso mundo – que se define por uma grande turvação. A realidade é turva e indigna de confiança. Com isso, a vida de Costa se transforma em um beco sem saída. Escrever é perder-se nesse beco. A ficção já não consegue capturar a realidade. Narrar é per- der-se. A mesma experiência é vivida por Eulálio d’ Assumpção, o prota- gonista de Leite derramado, romance de 2009. Enquanto agoniza em um leito de hospital, Eulálio narra sua vida para uma mulher indefinida, que tanto pode ser a filha Maria Eulália, a ex-mulher Matilde, ou uma enfer- meira. As identidades não são fixas – mas isso não o impede de narrar. A própria realidade é móvel: Eulálio está ditando, ou delirando? Sua história se mistura com a história do Brasil contemporâneo. O público e o privado se dissolvem e se confundem.

“Qualquer coisa que eu recorde vai doer. A memória é uma vasta ferida”, diz Eulálio. Onde está Eulálio? Qual é, afinal, sua história? Em vez de aproximá-lo de si, a memória o afasta de si mesmo. Nem mesmo seu corpo lhe pertence – no chuveiro, de repente, ele se sente tomado pelo corpo do pai. “É uma tremenda barafunda”, resume. Eulálio não é mais um sujeito, tornou-se um objeto. Um joguete nas mãos das circunstâncias e de seus próprios delírios. A vida não é reta, mas insensata. Dissolve-se como uma espiral. Gira e gira sempre em torno do mesmo ponto e sem nunca sair do lugar. Uma fotografia de Matilde dos tempos de colégio, na qual ela mesma não aparece porque estava de castigo, ilustra a inconsistência e a precariedade da existência. Eulálio agoniza, ou enlouquece? Ao narrar a própria vida, ele se encontra, ou se perde? Nada se sustenta. No fundo, o relato de Eulálio é só uma maneira que ele inventou para preencher o tempo. Para que ele se torne mais aceitável e nos forneça uma ilusão de sentido. Lembrar é iludir-se. Viver é construir sua própria ilusão.

Os romances de Chico Buarque traçam, assim, um retrato assustador do mundo contemporâneo. Não se limitam às luzes frenéticas da superfície,

mas penetram com coragem em suas sombras. Não acreditam nas ima- gens – em vez de venerá-las, eles as estilhaçam. Desse modo, a ficção de Chico se aproxima muito mais da verdade do que os romances “de fatos e de ação” que hoje ditam a moda literária. Não é fácil ler a literatura de Chico Buarque, pois ela nos coloca frente a frente com um mundo no qual só com muito esforço conseguimos sobreviver. Talvez por isso a ficção de Chico nos pareça tão verdadeira: em vez de capturar o real e dominá-lo, ela encena a agitação interior e a fragmentação acelerada do mundo contemporâneo.

(Texto publicado originalmente no blog “A literatura da poltrona”, do Globo On Line, <http://www.oglobo.com.br/blogs/literatura>, no dia 1o de outubro de 2014).

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 46-49)