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Márcia Fernandes Ribeiro

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 87-89)

É cedo quando o homem levanta, trôpego, imerso numa vertigem que não é nem de sonho nem de realidade. A campainha o acordou e ele se inclina para enxergar pelo olho mágico, numa tentativa vã de reconhecer quem o procura. Olhando assim, no distorcer desse olho, o sujeito que está diante da porta é irreconhecível – uma barba tão rígida que parece que surgiu antes mesmo do rosto, cabelos escorridos, terno e gravata, mas quem ele conhece que anda vestido assim? Soma-se à figura uma imobilidade incô- moda. O homem olha, observa e sabe que conhece o visitante, só não se lembra de onde. Volta ao quarto aos tropeços e ouve o agudo da campainha novamente. Volta à porta, põe-se mais uma vez a observar pelo tal olho mágico e sabe que assim, de pijama e com a mente enevoada, consegue ser mais visto que o sujeito postado diante do olho mágico. O visitante desiste, vai embora, toma um táxi. Nosso protagonista olha pela janela, vacila o momento certo de cruzar o corredor e fugir dali. Começa assim uma fuga inexplicável – sem saber quem é o perseguidor e o motivo da caçada, o homem foge pelo caos da cidade pós-moderna.1

O protagonista do romance Estorvo, de Chico Buarque, não tem nome declarado no texto. A ausência desse nome não desqualifica o personagem – pelo contrário –, apenas de observar o título sabe-se quem é esse sujeito que foge. O protagonista é um estorvo. Mais que isso, é o Estorvo, sem nome, emprego, rumo ou ancoragem.

Em 1979, em uma entrevista, Caetano Veloso comentou a produção de Chico Buarque. Enquanto a Tropicália buscava renovação, Chico man- tinha-se fiel à tradição. Caetano disse que o romancista “anda para a frente arrastando a tradição, isso é bem do signo dele, que é Gêmeos”.2 Esse tradi-

cionalismo torna a produção de Chico reconhecidamente promissora. Está aí o desafio da leitura proposta nesse ensaio: identificar na obra de Chico

1 Livre interpretação feita da leitura das primeiras linhas do capítulo um de Estorvo (1991). 2 Entrevista dada a Régis Bonvicino, publicada em 1980 em um dos números da revista Código.

Buarque as características da inovação pós-moderna. Ainda que seja uma tarefa difícil, quem observa pelo olho mágico a obra literária3 de Chico

Buarque pode perceber a construção de personagens pós-modernos. Bauman (1998, p. 119) descreve a existência de uma figura pós- moderna: o vagabundo. Ele não se adapta a essa nova sociedade, hedonista, violenta, consumista. Move-se constantemente, sem nunca se adaptar ao meio inserido. Em Estorvo, a pós-modernidade se entrelaça à trama já na apresentação desse enigmático personagem, que pode ser interpretado como um vagabundo pós-moderno. Um “João-ninguém”, como indica Schwarz (1991). Ele não é bem-vindo na casa da mãe, da ex-mulher ou da irmã. Move-se para o sítio e para a cidade, num transitar circular incômodo, sem nunca se adaptar ao cenário. Não se identifica com identidade alguma.

Se eu soubesse que minha irmã dava uma festa teria ao menos feito a barba. Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo que é jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de adoles- cente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de mili- tar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropo, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de contrabandista, de publicitário, de viciado, de fazendeiro, de literato, de astróloga, de fotógrafo, de cineasta, de político, e meu nome não constava na lista (HOLLANDA, 1991, p. 58).

Outro aspecto ressaltado por Bauman (1998, p. 56) nos estudos sobre a pós-modernidade é a criminalidade e a violência. Quem não tem acesso ao consumo e está sitiado em favelas e guetos se rebela contra a realidade e vai à luta em busca de um quinhão de prazer. A criminalidade assim se propaga, e com ela, a violência. Em Estorvo, a cidade, cenário comum da pós-modernidade, sofre com a crueldade da violência cotidiana. Uma violência tão corriqueira que se tornou “talvez o tema mais evidente na cul- tura produzida no Brasil contemporâneo”, como aponta Resende (2008, p. 32). No romance Estorvo, essa violência está pontilhada capítulo a capítulo e assim como na pós-modernidade é cruel, incômoda e assustadoramente comum. Como no trecho que o personagem descreve um dos empregados da casa da irmã depois de ter sofrido um assalto.

Ao se virar para estender meu cálice, exibe um hematoma na face direita, que vai da têmpora ao maxilar; em torno de uma cavidade de pele amarelada,

3 Este escrito limita-se à análise de dois romances: Estorvo e Budapeste. O que não impede outros estudiosos de reconhecerem características da pós-modernidade em outras obras literárias de Chico, inclusive as produções literárias do cancioneiro buarquiano.

estamparam-se três arcos salientes, grená, violeta e negro, sendo que o canto da boca é uma boca de sangue pisado (HOLLANDA, 1991, p. 125).

A biografia de Chico Buarque aponta que o compositor e escritor foi um leitor voraz: serviu-se da biblioteca do pai para ler clássicos de Balzac, Gustave Flaubert, Céline, Tolstói, Dostoiévski e Kafka (HOLLANDA;

WERNECK, 2006, p. 24). O leitor tornou-se um romancista reconhecido: publicado em 2004, Budapeste recebeu o prêmio Jabuti de Literatura como melhor livro de ficção de 2004. O romance, publicado em 19 países, ficou meses na lista de obras mais vendidas. Mais uma vez, a obra pode ser interpre- tada como uma reunião de personagens marcadas pela pós-modernidade. Hall (1992) aponta que, na pós-modernidade, o sujeito não tem anco- ragem ou identidade fixa. “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’ ” (HALL, 1992, p. 12). Buscar a identidade significa tentar solidificar o que está em estado fluido, como explica Bauman (2001, p. 97).

Em Budapeste, o ghost whiter José Costa tem a identidade fluida, fragmentada, que desfacela sua realidade em um duplo (MOREIRA; RIOS, 2007). Ora José Costa é brasileiro, morador da zona sul do Rio de Janeiro, escritor anônimo, casado com a morena Vanda. Ora ele é Zsoze Kósta, mero funcionário de uma academia, imigrante na distante Budapeste, casado com Kriska, uma mulher “branca, branca, branca, (...) bela, bela, bela” (HOLLANDA, 2003, p. 41).

Há o duplo dos fragmentos do Rio de Janeiro e Budapeste. Uma, quente e bela por natureza. A outra, seca, fria mas igualmente bela. Por um lado, o mar que esbraveja na praia. Por outro, o Danúbio, escuro e frio. No Brasil, Costa é um literato com ampla experiência na leitura, oralidade e escrita. Na Hungria, se aventura numa língua difícil e precisa aprender desde os primeiros fonemas.

No livro mostarda, o duplo se revela: na capa, Budapeste, romance de Chico Buarque (ou seria do ghost writer José Costa?). Na contracapa espe- lhada, Budapest, romance de Zsoze Kósta. Além disso, a multifragmen- tação é exposta na profissão de ghost writer do protagonista. Nela, Costa expõe sua capacidade de assumir novas máscaras. Ele é capaz de entender o que pessoas em inúmeras situações sentem e transcrever em objetos lite- rários. Sua identidade se fragmenta em cada personagem que assume. Ele troca de identidades como quem troca de roupa.

Para mim valiam como exercício de estilo aquelas monografias e disserta- ções, as provas de medicina, as petições de advogados, as cartas de amor, de

adeus, de desespero, chantagens, ameaças de suicídio. (...) Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre estive destinado à sombra, mas que pala- vras minhas fossem atribuídas a nomes mais e mais ilustres era estimulante, como progredir de sombra (HOLLANDA, 2003, p. 15-16).

Outro aspecto da pós-modernidade perceptível na obra é a globaliza- ção. Costa cruza oceanos e países e vai “dar em Budapeste” (HOLLANDA, 2003, p. 6) por acaso. No romance, ele vai e vem por terras, cruza frontei- ras, telefona, assiste TV e o mundo está conectado de uma forma tão íntima

que o protagonista o cruza com passos despretensiosos. Como quem cami- nha pela orla de uma praia.

De comum, o que podemos observar nos dois romances é uma composi- ção entrecortada, fragmentada também na não-linearidade da narrativa, que ainda assim é, de certa forma, circular. E, sobretudo, uma linguagem elegante. Chico Buarque é um grande trovador: não é preciso grandes estudos para observar que o Chico, compositor que constrói cidades, narra as periferias, descreve mulheres e ironiza a política, faz isso com uma linguagem elegante. É esse mesmo Chico que escreve romances e imprime com a mesma medida fluidez e coloquialismo, despretensão, força e requinte na obra literária.

referências bibliográficas

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1992.

HOLLANDA, Chico Buarque de. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ______. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

HOLLANDA, Chico Buarque de; WERNECK, Humberto. Tantas palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

MOREIRA, Renata; RIOS, Otávio. Jogos identitários: cruzamento entre linguagem, narração e autoria. Espéculo. n. 37, 2007.

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira do século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. Revista Veja, São Paulo, ago. 1991. VELOSO, Caetano. Entrevista concedida a Régis Bonvicino. Disponível em: <http://

www.regisbonvicino.com.br/catrel.asp?c=12&t=337>. Acesso em: 20 nov. 2014.

No documento Chico Buarque, sinal aberto! (páginas 87-89)