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1 A Transformação da Sociedade Norte-Americana

Os Estados Unidos presenciaram profundas mudanças políticas, eco- nômicas e sociais na metade final do Século XIX. O país projetado pelos

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proprietários independentes e artesãos que trabalhariam visando a autossuficiência, viu-se atingido pelos resultados da crescente industriali- zação e foi abalado pelo surgimento da economia de massas.

O crescimento das cidades é evidenciado pelo autor já na abertura do segundo capítulo, quando diz que:

Outrora existiram Babilônia e Nínive; eram construídas com tijolos. Atenas, toda ela era colunas de mármore e ouro. Em Constantinopla os minaretes ardiam como grandes velas, em volta do Corno Dourado... Aço, vidro, tijolo, cimento, serão os materiais dos arranha-céus. Amontoados na ilha estreita, os edifícios com milhões de janelas erguer-se-ão rebrilhantes, pirâmide sobre pirâmide, quais nuvens brancas dominando a tempestade.(PASSOS, 1960, p. 24).

No período subsequente à Guerra da Secessão, os norte-america- nos presenciaram a reconstrução do Sul, a migração de camponeses para os centros urbanos e um formidável aumento da atividade econômica, entre outros acontecimentos.

Entre 1860 e 1900, a população nacional aumentou de 31 milhões para 77 milhões de habitantes, enquanto a proporção de habitantes mo- rando nas cidades passou de 6,2 milhões para 30,2 milhões. Nesse mesmo período, a renda per capita mais que duplicou, superando até mesmo a proporção de ganho ocorrida entre 1790 e 1860. Em 1890, 7 milhões, de um total de 12,5 milhões de famílias, possuíam ganhos anuais de mais de 1.500 dólares, constituindo uma vasta classe média a estimular o merca- do interno (OLIEN; OLIEN, 2000, p. 5).

A imigração para os centros urbanos e a necessidade de assimilação desses imensos contingentes humanos são fielmente retratadas em passa- gens do livro, como aquela em que o atendente do restaurante diz a Bud, o qual havia vindo “do Norte”, que

[...] faça a barba, corte o cabelo e sacuda as sementes de feno antes de começar a procurar [emprego]. Ser-lhe-á mais fácil arranjar emprego. Essas coisas têm importância nesta cidade.(PASSOS, 1960, p. 17).

Seguindo com sua procura, Bud indaga a um homem perto de uma construção:

[…] – O senhor não poderia me indicar um bom lugar para procurar emprego?

– Não há bons lugares para procurar emprego, meu jovem... Trabalho, lá isso há... Terei sessenta e cinco anos dentro de um mês e quatro dias, e trabalho desde os cinco anos e ain- da não encontrei um bom emprego.(PASSOS, 1960, p. 37)

Mostrando que nem todos os recém-chegados adaptavam-se à nova vida, o autor desenvolve o diálogo entre Mac e Gus:

[…]– Como vai o negócio?

Gus emborca o copo de cerveja e, antes de limpar a boca com a mão, leva-a toda aberta ao pescoço:

– Farto até aqui... Eu te digo o que vou fazer; vou para o Oeste, ocupo um terreno no Norte Dakota ou qualquer coisa para aquelas bandas e ponho-me a cultivar trigo... Tenho jei- to para os trabalhos agrícolas... Isto de viver na cidade não presta.(PASSOS, 1960, p. 59)

A industrialização fez com que houvesse uma drástica redução na quantia de trabalhadores que adquiriam seus rendimentos de maneira autônoma. Enquanto em 1910 menos de um terço da força de trabalho norte-americana era composta por trabalhadores independentes, esse nú- mero alcançava a marca de 88% em 1860 (OLIEN; OLIEN, 2000, p. 18). A ascensão contínua de uma forte classe média fica clara no deva- neio de Ed Thatcher:

[...] Se Susie estivesse aqui, ele falar-lhe-ia dos montes de dinheiro que haveria de ganhar e dos dez dólares que en- tregaria todas as semanas na Caixa de Depósitos, exclusi- vamente para a pequenina Ellen; isto faria quinhentos e vinte dólares por ano... Logo, em dez anos, sem contar com os juros, seriam cinco mil dólares. Tenho de calcular os ju- ros de quinhentos e vinte dólares a quatro por cento. Muito excitado, andava às voltas no quarto acanhado.(PASSOS, 1960, p. 18).

O crescimento econômico deveu-se também, em parte, à atuação do Estado. Contrariando o mito histórico de que, no século em questão, os princípios liberais vigoravam em sua máxima plenitude nos Estados Uni-

dos1, as políticas protecionistas federais beneficiavam os produtores do

país, por intermédio da imposição de altos impostos aos produtos estran- geiros. Além disso, a criação de um novo sistema bancário simplificou a

1 Nesse sentido, ver: NOVAK, William J. The People’s Welfare: law and regulation in

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tomada de crédito por fazendeiros e empresários, cujos débitos a inflação do pós-guerra ajudou a pagar (OLIEN; OLIEN, 2000, p. 5).

A estrutura de transportes e comunicação foi incrementada veloz- mente. Em 1860, a malha ferroviária cobria 15.000 quilômetros, saltando para 112.000 quilômetros apenas dez anos mais tarde e para 322.000 quilô- metros em 1900. Enquanto consumidoras, as estradas de ferro impulsiona- ram as indústrias de aço, carvão e madeira (OLIEN; OLIEN, 2000, p. 5).

Somados esses fatores, os produtores americanos tinham acesso a mercados protegidos e em expansão, mão de obra abundante – embora semiqualificada – e crédito barato. Tais fatores contribuíram para o fato de que, em 1900, os Estados Unidos, produziam aproximadamente 33% da quantidade mundial de produtos manufaturados (OLIEN; OLIEN, 2000, p. 5).

A percepção do advento e dos impactos trazidos pelo progresso não escaparam do diálogo entre o Sr. Perry e o agente de negócios:

[...] Quer queiramos quer não, Sr. Perry, estamos a ser ar- rastados por uma grande onda de expansão e progresso. Muita coisa vai acontecer nos próximos anos. Todas estas invenções mecânicas – telefones, eletricidade, pontes de aço, veículos sem cavalos –, tudo isto a alguma coisa conduz. Depende de nós o estarmos dentro, na vanguarda do progresso...(PASSOS, 1960, p. 28).

Igual sinal do progresso é mostrado quando o personagem Congo acaba “[...] escondendo nos braços cruzados o rosto negro de fuligem” (PASSOS, 1960, p. 33), denotando um aumento nas atividades indus- triais.

As dúvidas em relação a esse mesmo progresso são apresentadas pelo nervoso rapaz com avental de açougueiro ao conversar com Bud:

– O Diabo me carregue se sei... Mais uma dessas histórias de automóveis, creio. Você não lê os jornais? Eu não os cen- suro, e você? Que direito têm estes estupores dos automobi- listas de percorrer a cidade a toda a velocidade, derrubando mulheres e crianças?(PASSOS, 1960, p. 37)

Foi também nessa época que:

[…] empreendimentos comerciais de tamanhos sem prece- dentes cresceram através de combinações verticais e hori- zontais. As companhias que administravam as estradas de

ferro foram as primeiras dessas grandes consolidações, se- guidas por firmas de processamento e distribuição, e então pelos grandes empreendimentos manufatureiros integrados. Em 1890, grandes “trustes” dominavam os setores de petró- leo, óleo de semente de algodão, óleo de linho, açúcar e whiskey, além das principais indústrias de processamento.2

Essas empresas estavam imbuídas de intenções que variavam desde a melhoria da escala de produção até o puro e simples domínio do merca- do consumidor. Mesmo o monopólio sendo exceção em uma época de mudanças tecnológicas e expansão comercial, as grandes corporações tornaram-se hegemônicas na economia americana, gerando influências sociais e políticas (BRINGHURST, 1979, p. 1-6).

Tais combinações empresariais, embora despertassem suspeições da maioria da população, buscaram legitimação nos escritos de especialistas tanto da ciência do Direito quanto da Economia. Arthur Hadley, econo- mista e reitor de Yale, chegou a afirmar que o período histórico em questão foi “uma era de monopólio industrial, embora tentemos fechar os nossos

olhos para esse fato”3.

A riqueza produzida no período era, muitas vezes, vista como uma mácula na até então pacata sociedade norte-americana. Uma série de intelectuais, bem como movimentos civis organizados, advogavam a tese da concentração excessiva da riqueza. Um dos expoentes do movimento Granger chegou a afirmar:

[…] O país está agora dividido em dois grupos. Um grupo é composto por pessoas fortes apenas em quantidade e na de- terminação de lutar por seus direitos. O outro é composto pe- las corporações, negociadores de ações, corretores de títulos e capitalistas, cuja força consiste na organização e consolidação de seus interesses, seu controle das finanças do país e dos diferentes setores do governo.(OLIEN; OLIEN, 2000, p. 7)

2 MILLON, David. The Sherman Act and the Balance of Power. In: SULLIVAN, Thomas E.

(Org). The Political Economy of the Sherman Act: The First One Hundred Years. New York / Oxford: Oxford University Press, 1991. p. 88. No original: “Business enterprises of

unpreccedent size grew through horizontal and vertical combination. The railroads were the first of these huge consolidations, followed by processing and distribution firms, and them by massive integrated manufacturing enterprises. By 1890, great ‘trusts’ dominated the petroleum, cottonseed oil, linseed oil, sugar, whiskey, and lead processing industries”.

3 HADLEY, Arthur Twining. Railroad transportation: its history and its laws. New York /

London: G. P. Putnam’s Sons, 1899. p. 65. No original: “[...] an age of industrial monopoly,

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O problema dos grandes conglomerados industriais e dos monopóli- os foi colocado sob perspectivas sociais, políticas e morais, insuflando o discurso de jornalistas e cientistas sociais contra a avareza e a luxúria. A moralidade pública precisava ser restaurada, e, argumentava-se, talvez a única maneira de fazê-lo seria admitir certo controle estatal sobre a competição e o mercado.