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Introdução: Justiça de transição e a literatura argentina

última ditadura militar argentina começou em 1976, com a derruba- da de Isabelita Perón, até 1983, quando tomou posse Raúl Alfonsín. A redemocratização ocorreu contempo-raneamente à brasileira, que é apenas um pouco posterior (em 1985 toma posse o primeiro presidente brasileiro civil após a ditadura militar). No entanto, os dois Estados

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iriam diferir significativamente no tocante ao ajuste de contas com seu próprio passado.

Alfonsín, de forma muito distinta do primeiro presidente civil após a ditadura militar brasileira, José Sarney (que, não por acaso, havia sido presidente do partido de sustentação do regime autoritário), ocupou-se em enfrentar o terror de Estado. A Argentina tornou-se pioneira no tocante

à justiça de transição.1 A disparidade continua: ainda hoje no Brasil, a jus-

tiça de transição tem-se limitado à dimensão indenizatória, a partir das leis n. 9.140/1995 e 10.559/2002; além disso, as Forças Armadas nunca expres-

saram arrependimento a respeito do período ditatorial.(MEZAROBBA, 2009,

p. 372-385)

A experiência argentina foi conflituosa. O próprio Alfonsín desta- cou a oposição, política e teórica (com autores como Huntington, que elogiou a ditadura militar brasileira nos anos 1970 por seu alegado suces- so econômico, Juan Linz e Bruce Ackerman) feita contra essa experiência

de justiça “retroativa”.(ALFONSÍN, 2006, p. 18-19).Carlos Santiago Nino,

um dos grandes nomes da teoria do direito do Século XX, foi Ministro da Justiça de Alfonsín, e tomou parte ativamente na responsabilização dos autores pelo terror de Estado na Argentina. Pois a justiça de transição ocupa-se de apurar e sancionar as violações maciças contra os direitos humanos, os crimes contra a humanidade, praticados ou encorajados pelo Estado durante um regime político autoritário.

Esse enfrentamento do passado recente argentino sofreu retroces- sos; ainda no governo Alfonsín, foram aprovadas as leis de Ponto Final e de Obediência Devida, de 1986 e 1987, que limitaram em termos tempo- rais e de hierarquia (excluindo os escalões baixo e médio) a responsabilização dos agentes da repressão. O presidente Menem, poste- riormente, aprovou indultos contra militares condenados.

No entanto, no início do Século XXI, as medidas de justiça de tran- sição ganhariam novo fôlego com o caso Poblete, a respeito de uma filha de desaparecidos; nessa demanda patrocinada pelo CELS (Centro de

Estudios Legales y Sociales), o juiz Gabriel Cavallo declarou em 2001 a

nulidade das duas leis com base no Direito Internacional dos Direitos

Humanos.(CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES (CELS),

2008, p. 105). Depois disso, em 2003 o próprio Poder Legislativo anularia

1 Como autores que compartilham essa opinião, podem-se apontar ROHT-ARRIAZA, Naomi.

Foreword; MERWE, H. van der; BAXTER, V.; CHAPMAN, A R. Assessing the Impact of

Transitional Justice. Washington: United States Institute of Peace, 2009, p. vii e VARSKY,

Carolina; BALARDINI, Lorena. La fuerza de la verdad, el tiempo de la justicia. In: CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES (CELS). Derechos Humanos en Argentina: Infor- me 2010. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. p. 62.

essas leis e a Suprema Corte Argentina confirmaria essa anulação, apli- cando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2005.

O quadro está longe de ser encerrado, contudo. Na Argentina, em- bora estejam ocorrendo as apurações dos crimes contra a humanidade durante a ditadura militar, ao contrário do Brasil, onde nenhum agente

da repressão foi condenado,2 os processos têm corrido de forma muito len-

ta. Dos 1.422 réus e denunciados até 31 de dezembro de 2009, apenas 68

haviam sido condenados e 7, absolvidos; 226 faleceram.3 Processos se ar-

rastam em primeiro grau e também na fase de debates orais nos tribunais. O CELS calcula que tais processos podem arrastar-se por mais vinte anos. De fato, recente estudo sobre justiça de transição na América Latina, en- comendado pelo Tribunal Penal Internacional, apontou que, mesmo no Chile e na Argentina, que estariam mais avançados em termos de proces- sos criminais, os resultados até aqui são “muito precários” e a “grande maioria das vítimas” ainda não encontrou uma “resposta judicial ade-

quada”.(LUZULA, 2010)

Note-se, no entanto, que, se essas medidas de justiça de transição ao menos existem, tal se deve à atuação da sociedade civil, por meio de organizações como as Mães e as Avós da Praça de Maio e Hijos.

Nessa viva atuação, devemos incluir a literatura argentina contem- porânea. Como lembra Beatriz Sarlo, “[...] boa parte da literatura argentina dos últimos dez anos [...]” (o texto de é 1997) trata dos crimes da ditadura

militar(SARLO, 2005, p. 32). Nessa significativa parte, incluem-se autores

que eram crianças durante esse período autoritário, como Julián Axat.

1 Julián Axat: poesia, testemunho e direito à memória e à

verdade

Nascido no ano do golpe militar, filho dos desaparecidos Ana Inés Della Croce e Rodolfo Jorgge Axat, Julián Axat foi criado por seus avós. Desde 2008 Defensor Público em La Plata, ocupa-se do direito da infância

2 No Brasil, em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal considerou válida a lei de anistia da

ditadura militar, em explícita desconsideração da Constituição atual, julgada inferior à Emenda Constitucional n. 26 de 1985, e em desprezo às normas de Direito Internacional Humanitário e de Direitos Humanos.

3 CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES (CELS). A 34 años del golpe del Esta- do. Adelanto del Informe 2010 sobre la situación de los derechos humanos em Argentina.

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e da adolescência. Como editor, coordena um projeto de recuperação de documentos literários relativos ao terror de Estado, em especial de desa- parecidos como Carlos Aiub (Versos aparecidos, City Bell: de la talita dorada, 2007) e Joaquín Areta (siempre tu palabra cerca, City Bell: de la talita dorada, 2010), e o assassinado pela Triple A (o equivalente argentino do Comando de Caça aos Comunistas) Jorge Money (En la exacta mitad de

tu ombligo, City Bell: de la talita dorada, 2009). Também poetas contem-

porâneos são nela publicados, entre eles o próprio Axat e seu último livro,

ylumynaria (City Bell: de la talita dorada, 2008). Podemos ler no projeto

da coleção seu propósito estético e político:

Luego del holocausto llevado a cabo por el nazismo, Theodor W. Adorno se preguntaba si era posible escribir poesía después de Auschwitz. ¿y después de la ESMA?, ¿se puede escribir poesía después de la ESMA?

Una de las consecuencias del terrorismo de estado y el genocidio es el temblor filológico sembrado a posteriori: la agrafía o imposibilidad de una escritura hacedora de rela- tos y estilos (sea o no como testigos, víctimas de lo ocurrido), lo fragmentario, el silencio, o ciertos lugares comunes que se repiten en el mercado literario de la memoria.

De alguna manera, semejante interrogante: qué quedó de la escritura después de la ESMA, es una pregunta por el vaciamiento de la palabra anterior a la ESMA; y eso se encuentra de algún modo vinculado con este proyecto que aquí presentamos y la posibilidad de ir recuperando voces silenciadas y desaparecidas con anterioridad a ese terror.(LOS DETECTIVES SALVAJES, s/d.)

A ESMA era a Escola de Mecânica da Armada, conhecido centro de tortura e extermínio da ditadura militar argentina. À famosa indagação de Adorno, poetas como Paul Celan responderam com uma poética do fragmento. Contudo, de acordo com o projeto, se a ESMA pôde silenciar, é porque, entre outros motivos, houve um silenciamento anterior a ela, e a coleção deseja recuperar esses textos desaparecidos.

Essa coleção tem o título de um dos livros de Roberto Bolaño, Los

detectives selvajes. No romance de Bolaño, dois poetas, Arturo Belano e

Ulises Lima, buscam uma poeta mexicana desaparecida, Cesárea Tinajero. Em ylumynaria, a metade final do livro corresponde ao poema longo “Gui Rosey”, para o qual importa mais diretamente outro livro de Bolaño, Putas

asesinas, com seu conto “Últimos entardeceres en la tierra”, em que a

relação entre pai e filho e o desaparecimento de Rosey são combinadas de forma quase assombrada. No conto, o filho, no final, se dá conta de que o

pai não estava sozinho, ao contrário de Gui Rosey. Em Axat, lemos que “[...] yo conozco/ un hijo que/ encontró un poema/ de su padre y/ se lo fumó en/ una noche/ de angustia” (p. 58). Essa experiência é marcada pelo terror, que não poupou, é claro, os poetas, cujas vozes são evocadas. As estátuas dos mortos desprendem-se da luz e enlouquecem: “el terror puede cortar el espacio y tiempo de tal forma/ que el cuerpo y la voz – a distancia – coincidam” (p. 64).

O corte do tempo e do espaço corresponde ao trauma familiar, mas também coletivo e político, dos desaparecimentos forçados, como um “peso formidável”:

Te espero: Pai

os ruídos causados pela derrota não conseguem quebrar-nos embora seja por um instante essa incrível luz de teus olhos

esperança ou fulgor de a cada instante ser grito Sonho:

estamos em algum lugar você papai e eu

me conta que ontem o preveniram

me diz que com certeza estão para vir buscá-lo rogo-lhe a fuga

vamos para longe bem longe lhe digo mas me responde que...

o sangue dos companheiros não se negocia e não tem jeito

Pai

não te convenço

e a cena que se repete muitas noites às vezes chegamos a discussões acaloradas e parece que não tem jeito

Pai

não posso salvar-te nem nos sonhos4

4 Tradução nossa do poema XXX. In: AXAT, Julián. Peso formidable. Buenos Aires: Zama,

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O pai tornou-se memória do desaparecimento, que retorna inces- sante. Se ele pudesse ser salvo, não haveria esta poesia, que é feita (para aludir a Kafka) simultaneamente desta impossibilidade de salvação e da impossibilidade de deixar de salvar.

No chileno Bolaño, que não será objeto deste pequeno trabalho, e em Axat, o terror de Estado deve ser contraposto à literatura como exercí- cio de uma memória e de uma verdade reconstruídas. A justiça de transi- ção, por seu turno, tem como primeiro passo o direito à memória e à verda- de: para poder sancionar, é preciso apurar o que ocorreu.

A luta pela memória e a verdade ocorreu na Argentina – o protagonismo das Mães da Praça de Maio foi notável – mas também em outros países da América Latina, onde houve preocupação com a justiça de transição. No Brasil, por exemplo, o Congresso Nacional pela Anistia, em plena campanha pela anistia dos presos políticos (a lei somente viria em 1979, sem atender a maior parte das reivindicações do movimento), incluiu entre suas resoluções o que hoje caracterizaríamos como o direito à memória e à verdade:

Elucidação da situação dos desaparecidos e dos mortos. Apoiar a luta dos familiares e demais setores interessados, na elucidação do paradeiro dos cidadãos que se encontram desaparecidos por motivação política. Lutar pelo esclareci- mento das circunstâncias em que ocorreram as mortes e os desaparecimentos.5

Os desaparecimentos forçados, aliados à ocultação ou à destruição dos documentos da repressão política, deixam, no entanto, esse direito em suspensão.