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1 Direito e Literatura

1.2 Direito como Literatura

Neste modo de abordagem, inicialmente é importante destacar a linguagem como ponto convergente entre o Direito e a Literatura. A partir daí, verifica-se que o fenômeno jurídico pode ser observado na qualidade de Literatura.

Partindo disso, percebe-se que uma peça jurídica é também literária, vez que se vale da narrativa, para contar fatos, elaborada de maneira lógi- ca, contendo personagens e enredo. Narrativa esta cujo impacto e efeitos podem reverberar diretamente no resultado final do processo, influencian- do, inclusive, na interpretação nas decisões.

Diante disso, há a abordagem da questão hermenêutica, mais um ponto de semelhança entre o Direito e a Literatura, visto que uma das metas precípuas da interpretação jurídica é a identificação “dos

significantes dos significados”3, assim como ocorre no mundo literário,

3 Conforme lições do Prof. Dr. Luiz Edson Fachin, ministradas oralmente em sala de aula, do

Curso de Mestrado em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, no ano de 2008.

Direito e Literatura: o retrato do direito de família, nos contos de Dalton Trevisan 59

levando também à valorização do ambiente, para a aplicação da semiótica4.

Afirma Ronald Dworkin (2000, p. 217):

Diz ainda que a interpretação literária tem como objetivo demonstrar como a obra em questão pode ser vista como a obra de arte mais valiosa, e para isso deve atender para características formais de identidade, coerência e integrida- de, assim como para considerações mais substantivas de valor artístico. Uma interpretação plausível da prática jurídica tam- bém deve, de modo semelhante, passar por um teste de duas dimensões: deve ajustar-se a essa prática e demonstrar sua finalidade ou valor. Mas finalidade ou valor, aqui, não pode significar valor artístico, porque o Direito, ao contrário da literatura, não é um empreendimento artístico. O Direito é um empreendimento político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço social e individual, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu go- verno.

Outro foco em que se vislumbra a abordagem de Direito como Lite- ratura é a visualização do Direito como exercício retórico, no sentido de convencer o receptor de que a informação é correta, ou seja, o modo como

4 “Conforme a moderna corrente inaugurada por Charles S. Pierce (1839-1914), a semiótica é

a doutrina dos signos, tendo por objeto o estudo da natureza, tipos e funções de signos. Devido aos desenvolvimentos das últimas décadas na linguística, filosofia da língua e semiótica, o estudo dos signos ganhou uma grande importância no âmbito da teoria da comunicação. Basicamente, um signo é qualquer elemento que seja utilizado para exprimir uma dada realidade física ou psicológica; nesta relação, o primeiro funciona como significante em relação à segunda, que é o significado (ou referente); as relações entre significantes e significados podem ser de 2 tipos: denotação e conotação”. Disponível em: <http://www.univ- ab.pt/~bidarra/hyperscapes/video-grafias-6.htm>. Acesso em 2 abr. 2010. Ainda emergindo da cientificidade filóloga, a Análise do Discurso, que permite a identificação dos jargões jurídicos, como mecanismo isolacionista e, portanto, discriminador, afastando os destinatári- os da norma, do conhecimento pleno dos seus direitos, motivando, assim, iniciativas de políticas públicas como a que se disseminou pelo Brasil, com o apoio da Associação dos Magistrados Brasileira, em prol da mitigação do “juridiquês”, em franco privilégio à demo- cratização do acesso ao efetivo conteúdo processual. Contudo, eis um tema que remete a questões filosóficas de base, estampando parte da hipocrisia que fermenta os setores profis- sionais do Direito (não que a hipocrisia seja privilégio exclusivo da classe jurídica), afinal, que advogado será respeitado pela Corte e obterá o proveito processual pretendido, se renunciar ao vocabulário técnico, em suas petições, ainda que se atenha ao verdadeiro teor do texto e da figura? Ou que magistrado recebe o respeito de seus pares, quando reduz a sua linguagem a um conjunto “simplório” de palavras mais populares? Alguma virtude, em sentido inverso, tem emanado dos Juizados Especiais, onde prevalece o princípio da Oralidade e da Simplicidade. Mas é desejável que a democratização do acesso à linguagem, ensino e conhecimento jurídicos se opere em caráter não discriminatório, em favor de toda a sociedade.

o caso é apresentado a fim de conduzir à certeza do fato. Juan Antonio

Garcia Amado5 explica:

Quando defendemos em qualquer âmbito da atividade jurí- dica que a interpretação correta da norma x é esta ou aque- la, ou que o verdadeiro alcance do direito e o que o texto constitucional consagra de modo tal ou distinto, não descre- vemos realidades preexistentes ao discurso, sendo que per- suadirmos o destinatário do nosso discurso de que a reali- dade é assim como contamos (t.n.).

Muitos outros pontos de contato há entre ambas as áreas do Co- nhecimento que privilegiam a abordagem do Direito como Literatura, a exemplo da retórica, da variação intencional dos estilos narrativos dentro de uma mesma estrutura, com a finalidade de convencimento etc. Eis a lição de François Ost (2005, p. 49):

Um autor como R. Weisberg não hesita em escrever que ela contribui diretamente para inculcar “competências primor- diais de nossa disciplina”: a capacidade de escuta, a apti- dão de fazer um discurso que leve em conta a sensibilidade dos ouvintes, o dom de convencer tendo em vista atingir a meta que se fixou. J. B. White, por sua vez, insiste na apren- dizagem da tradução: pelo confronto que opera entre o re- lato dos queixosos e o texto da lei, o juiz está numa situação comparável à do leitor que, por sua leitura, atualiza um clás- sico: a tarefa é ao mesmo tempo necessária e parcialmente aporética, de modo que o exercício serve de iniciação à fun- ção de “integração” inerente ao direito: reconhecer a diver- sidade dos pontos de vista ao mesmo tempo em que se bus- cam convergências e campos de acordo.

Do confronto dos futuros juristas com os métodos e os textos literários, espera-se portanto a aquisição de competências técnicas (melhoramento do estilo escrito e oral, capacidade de escuta e de diálogo) bem como a difusão das capacida- des morais necessárias à profissão de juristas: a atenção mais fina dirigida à diversidade das situações e, em particular, a dos mais marginalizados, o refinamento do senso de justi- ça, a aquisição de um sentido das responsabilidades políti- cas inerentes às funções de juiz e de advogado.

5 Em vernáculo: “Cuando defendemos em cualquier âmbito de la actividade jurídica que la

interpretación correcta de la norma x é esta o aquella, o que el verdadero alcance del derecho y que el texto constitucional consagra es de tal modo otal outro, no describimos realidades preexistentes al discurso, sino que tratamos de persuadir al destinatario de nuestro discurso de que la realidad es así como la contamos.” (GARCIA AMADO, 2003, p. 369).

Direito e Literatura: o retrato do direito de família, nos contos de Dalton Trevisan 61

Na intersecção entre os relatados dos primeiros métodos de aborda- gem do Direito e Literatura, figura a obra mais lida e vendida no mundo: a

Bíblia Sagrada, em sua concepção cristã. No âmbito do Direito na Litera-

tura, nas mais profundas narrativas e análises psicológicas das persona- gens ali retratadas, fala do Direito e da Justiça, aplicados ou negados, por reis e sacerdotes, que exerciam o papel de autoridades judiciárias, na soci- edade israelita do Antigo Testamento. E como esquecer o processo, julga-

mento, condenação e execução6 mais famoso de todos os tempos? O justo

e inocente Jesus de Nazaré é sentenciado por uma autoridade romana que, sem medo, afirmava que “[...] nada (de ilícito) havia encontrado nele (Jesus) [...]”, mas, no fim do dia, ainda que atuando contra o seu conven- cimento jurídico, agia por razões políticas e de Estado.

No âmbito do Direito como Literatura, o decálogo ético mais difundi- do do mundo ocidental (e parte do oriental): Os Dez Mandamentos, escri-

tos pelo “Dedo do Eterno7” e, sequencialmente, reproduzidos pelo patriarca

Moisés, jurista de produção literária profícua, que na Torah, ou Pentateuco8,

com estilo literário bastante próprio, mescla a prolação de normas e regras de conduta civis, negociais, processuais, trabalhistas, criminais e ambientais, com narrativa histórica, lições morais e religiosas.